Deixemos de lado, ao menos por um momento, as controvérsias sobre se a taxa de inflação deste ano vai ficar mais próxima de 6% ou de 6,5%, sobre se o PIB vai chegar a 4%, se as metas de inflação para 2012 e 2013 são adequadas ou não, se a próxima reunião do Copom vai aumentar o juro básico em 0,25% ou 0,5%. Tudo isso é um pouco como discutir se convém trocar a geladeira velha ou qual o quarto de hotel a ser reservado para as férias do ano que vem, enquanto se ouvem soar as sirenes de alerta.
A questão é: como deveríamos nos preparar para o tsunami financeiro que está a caminho?
Em 2008, o Brasil saiu quase incólume da crise financeira que pôs em pânico todo o Hemisfério Norte e também os países mais dependentes das exportações para os desenvolvidos, como o México. Quase, pois seu desempenho econômico no ano seguinte, mesmo sendo o sexto melhor do G-20, registrou ligeira queda (-0,2%) e sabe-se hoje como o Banco do Brasil foi forçado a socorrer grandes empresas como Sadia e Aracruz e pequenos e médios bancos que tiveram enormes perdas com derivativos (inclusive o Votorantim, que acabou absorvido). Um dos maiores grupos financeiros, o Unibanco, foi forçado a abrir mão da independência para o Itaú.
É praticamente certo que em um futuro não determinado, mas bem próximo – como no caso de um terremoto, não é possível precisar se daqui a três anos, ou já nos próximos meses –, o mundo enfrentará uma crise de proporções semelhantes ou maiores, tendo os grandes bancos europeus como provável epicentro, ainda que os EUA e o Japão também inspirem muitas preocupações. O tamanho exato da encrenca importa menos que o fato de que muitos dos principais países desenvolvidos exauriram sua capacidade de endividamento ao absorver o golpe de 2008. Desta vez, pode não haver rede de segurança capaz de deter a propagação de um colapso financeiro e amenizar a recessão. Para não falar dos limites da paciência dos eleitores.
A Grécia, supõe-se que todos saibam, é apenas a ponta do iceberg. Em 18 de junho, o presidente do Eurogrupo (conselho dos ministros da Fazenda da Zona do Euro), o luxemburguês Jean-Claude- Juncker, foi claro: “Brincamos com fogo. A falência (da Grécia) pode contaminar Portugal e a Irlanda e, por causa do endividamento, atingir a Bélgica e a Itália antes mesmo da Espanha”.
Mesmo depois de Giorgios Papandreou conseguir o voto de confiança do Parlamento para o novo ministério e o novo acordo e pacote de “austeridade” da troika UE-FMI-BCE, as opiniões não mudaram. “Nos próximos três anos, veremos diferentes economias enfrentarem diferentes problemas. Para as europeias, especialmente a Grécia, será pela moratória”, disse Mohammed El-Erian, presidente da Pimco-, maior operadora de títulos do mundo. “Se a insanidade é fazer a mesma coisa e esperar resultados diferentes, o acordo com a Grécia é insano”, escreveu Martin Wolf no Financial Times. E ao menos no caso da Irlanda, a situação piora até mais rápido.
“A maioria dos economistas não vê alternativa a algum tipo de moratória”, confirma Mike Wickens, consultor do FMI. “Calote ou reescalonamento, precisam fazer isso de algum jeito.” Para a Grécia, não precisaria ser o fim do mundo, observa o economista britânico: Argentina, Rússia e México renegociaram suas dívidas e isso os ajudou no longo prazo. O próprio Reino Unido terminou a Segunda Guerra Mundial com uma dívida de mais de 180% do PIB, que chegou a 238% entre 1946 e 1947. Renegociou com os EUA para estender seu prazo de pagamento em 30 anos e, na verdade, só acabou de pagá-la em janeiro de 2007. Mas os financistas da Europa e do mundo não estão preocupados com os gregos, e sim com os seus credores.
A ordem de grandeza da dívida grega, 340 bilhões de euros (145% do PIB), é quase a da falência do Lehman Brothers, que ao quebrar devia 613 bilhões de dólares ou 410 bilhões de euros. Mas é apenas uma fração do problema em potencial. Em estimativa de 2010, os bancos da França detinham 575 bilhões de euros em dívidas dos PIIGS, os da Alemanha 385 bilhões, os do Reino Unido 174 bilhões e os dos EUA 88 bilhões. O total dessas dívidas é de 4,5 trilhões, nas mãos de bancos e outras instituições, europeias ou não. E hoje, tempos de PIIGS do B, é preciso somar ainda a Bélgica, que deve cerca de 1 trilhão de euros. Ao todo, 5,5 trilhões, perto de 65% do PIB da Zona do Euro.
É a dispersão dos credores que inviabiliza uma concordata organizada e leva a troika a teimar com planos inviáveis. Segundo o ministro da Fazenda alemão, Wolfgang Schäuble, o sonho é convencer os maiores credores da Grécia (e, eventualmente, de outros devedores) a trocar “voluntariamente” seus títulos por outros de vencimento mais longo e menor rendimento, aceitando o inevitável prejuízo contábil. Na vida real, a protelação serve, no máximo, para ganhar tempo para que os bancos privados se livrem de parte de seus títulos, se encontrarem otários, quer dizer, compradores (provavelmente, o setor público), ou ajeitem sua contabilidade dando baixa em seus títulos.
Uma renegociação poderia ter funcionado até os anos 1970, quando grande parte das dívidas externas era contratada com governos ou grandes bancos fortemente regulamentados. Hoje, os títulos ao portador e derivativos neles baseados estão nas mãos de bancos grandes e pequenos muito desregulamentados, fundos de pensão, fundos especulativos, empresas industriais e pessoas físicas. É impossível fazê-los concordar – muitos deles não admitem sofrer um prejuízo e outros especulam de maneira a ter muito a ganhar com uma moratória ou mesmo com o colapso do euro.
Uma renovação não “voluntária” fará as agências de classificação declararem a dívida em moratória. Será legalmente impossível ao BCE (e outras instituições análogas no mundo) aceitar seus títulos como colaterais, ou seja, garantias de empréstimos do Banco Central aos bancos privados. Quando vier uma corrida bancária, não poderão ser socorridos pelos bancos centrais dentro das normas atuais, o que pode gerar falências em cascata e uma reação em cadeia maior que em 2008. E é ilusão, claro, pensar que em tempos de globalização o problema pode ser confinado à Zona do Euro.
Nos Estados Unidos e no Reino Unido, o setor público também está sobrecarregado de dívidas, assumidas ao socorrer bancos e grandes indústrias privadas, distribuir pacotes de estímulos ou apenas manter os serviços sociais e a máquina pública em funcionamento diante da queda da arrecadação na crise de 2008. E, ao contrário do que esperavam seus governos, suas economias não tiveram uma recuperação convincente. Ao contrário, parecem voltar a se deteriorar depois de uma breve retomada que não chegou a reduzir substancialmente o desemprego.
O dilema britânico, apesar de grande, não é dos mais urgentes. O crescimento é baixo, o endividamento é alto (60% do PIB) e continua a subir (para 100% em 2012, estima-se) e o governo conservador está descobrindo que não será tão fácil quanto esperava forçar goela abaixo dos eleitores os cortes na educação, saúde e assistência social que pretende impor, mas ainda não está muito desgastado e a oposição tem sido bem cordata.
Os Estados Unidos são outra história. O PIB cresce, mas em ritmo muito inferior ao costumeiro na saída de uma recessão e muito abaixo dos cerca de 3% ao ano necessários para repor empregos. A dívida líquida está em 62% do PIB, caminhando para 69% em 2020 e os indicadores econômicos de maio foram ruins, apontando queda do número de empregos e dos preços dos imóveis. Mas a questão decisiva não é econométrica.
Em outros tempos, dava-se como axiomático que os títulos de dívida dos EUA, ou T-Bonds, eram tão seguros quanto barras de ouro, se não mais. Devedor na própria moeda que emite, na pior das hipóteses, o Tio Sam sempre poderia imprimir dólares para pagá-los. Com algum risco de inflacioná-los, mas até o preço do ouro sofre flutuações. Agora já não é bem assim: o risco de moratória dos EUA começa a ser pensado e medido e não parece tão baixo assim aos especuladores. No curto prazo, maior que o do Brasil, para ser exato: em 15 de junho, os CDS (derivativos de garantia contra moratória) dos EUA com prazo de um ano eram negociados em 49,8 pontos-base, ante 48 da Itália, 39 do Brasil, 38 do Japão, 19 do Reino Unido e 5 da Suécia.
Ao site Market Watch, Ethan Harris, economista do Bank of America Merrill Lynch, acha que uma moratória temporária dos T-Bonds não seria o pior dos cenários. Embora preferisse um ajuste moderado e um acordo para lidar estruturalmente com o déficit a longo prazo, Harris acha que o calote é preferível aos cortes selvagens de gastos públicos que a oposição tenta impor ao negar autorização para elevar o teto da dívida pública, impasse que tem prazo até 2 de agosto para ser superado.
Se na Europa é a pulverização das dívidas que inviabiliza a negociação, nos EUA é a política: os republicanos do Tea Party veem na crise apenas uma oportunidade de abalar um governo fragilizado e abrir caminho para uma pauta radical de abolição do bem-estar social. O resultado é semelhante: o risco de moratória não como uma reestruturação planejada, mas como um calote desorganizado, criando caos nos mercados cambiais e financeiros. A alternativa, suspender os serviços públicos para pagar a dívida, seria ainda pior para a economia dos EUA e do mundo. E se Wall Street precisar de novo socorro, não encontrará um governo em condições de salvá-la da embrulhada europeia ou de suas próprias mancadas.
O Japão é, hoje, a mais endividada das grandes nações (dívida bruta de 227% do PIB e líquida de 122%). É resultado menos da crise internacional de 2008 do que da crise nacional iniciada em 1991, da qual nunca conseguiu sair completamente. O quadro foi, porém, subitamente piorado pelo desastre natural de março deste ano. Tanto pelos inevitáveis danos diretos quanto pelos secundários, resultado de se ter subestimado os riscos de terremotos e tsunamis para as usinas nucleares, o governo japonês viu-se sobrecarregado por mais gastos ao mesmo tempo que o racionamento de energia derruba produção e exportações. Como a dívida japonesa é quase toda interna e seus juros são quase nulos, não há risco aparente de moratória, mas essa situação contribui para a estagnação da economia global e adia para um futuro ainda mais distante as esperanças de recuperação da economia japonesa.
Quanto à China, esta atravessa a fase na qual o crescimento quantitativo precisa ser transformado em qualitativo, com menos ênfase em exportações, investimentos e crescimento do PIB (deve cair de 10% ao ano para 7%, segundo os planos oficiais) e mais em consumo, desenvolvimento do mercado interno, distribuição de renda e bem-estar social. Por maiores que sejam os poderes do Estado para administrar a transição, acidentes de percurso podem acontecer. Empresas e investimentos planejados para o cenário antigo podem ser inviabilizados e a expansão do consumo pode resultar em uma bolha de crédito tão perigosa quanto a do Japão nos anos 1980 ou dos EUA nos 2000. Parece ser um problema para a próxima década, mas pode ser antecipado se o sistema político chinês mostrar fragilidades imprevistas.
Quando tantas coisas podem dar terrivelmente errado, algumas com maior, outras com menor probabilidade, é quase certo que uma delas vai acontecer. Não é tempo de business as usual: a prioridade não deveria ser discutir ajustes de rotina, minúcias das projeções de curto e médio prazo ou maneiras de obter melhores notas das agências de classificação de risco, mas quais medidas poderão ser tomadas quando a catástrofe vier.
Se grandes bancos europeus ou norte-americanos quebrarem de repente e o crédito sumir, o governo brasileiro tem como evitar a propagação da desconfiança para os bancos e empresas nacionais? Se os grupos financeiros internacionais tiverem, de repente, de sacar aplicações nos países periféricos para fazer frente à crise de confiança interna, o Brasil terá instrumentos para evitar o caos cambial? As repostas a essas questões, mais que a exata dimensão dos gastos públicos ou os preparativos para a Copa do Mundo, é que vão definir o fracasso ou sucesso do governo e do próprio País até 2014.
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