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segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Touradas, Tititica e o que nos espera


NOTA - Tenho postado pouco aqui no bloguinho, mas esse ensaio aqui eu quero compartilhar a guisa de manter como um libelo, para poder ser apreciado daqui a um tempinho, quando a merdeira se consolidar e não haver mais volta!...

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por Wilson Ramos Filho, no blog do Nassif , excerto inédito do livro Resistencia Intenacional ao Golpe de 2016
 

Na Espanha há aficcionados por touradas que sabem histórias, narram corridas antológicas, veneram toureiros e admiram touros valientes, os que lutam bastante antes do golpe final.

Durante o período de "instrução" da farsa do impeachment no Senado brasileiro, no início de julho de 2016, um toureiro desconhecido entrou para a história: ao invés de matar, morreu em Teruel, Aragon. Levou uma violenta cornada no peito e verteu sangue na areia tantas vezes lambuzada, há séculos, pelo viscoso e rubro sangue de miúras. O touro de Teruel, anônimo até então, também entrou para a história.

Muito provavelmente ninguém de fora de Teruel, ainda que fã da tauromaquia, saberia quem era o tal Victor Barrio que entrou para a história da pior maneira possível para um toureiro: foi corneado e estrebuchou na arena à vista de todos, de quem estava ao sol e dos que, à sombra, ensaiavam olés e bravos um pouco melhor acomodados.

Muitos dos que são contra touradas festejaram a morte de Victor Barrio; quem o conhecia passou a admirá-lo (mais pela morte que pela pouca vida de touradas medíocres, é verdade), pois também na Espanha defuntos costumam ser indultados pelos defeitos reais ou presumidos que lhes são atribuídos.

O certo é que o valente miúra que, morto, provavelmente teria suas duas orelhas oferecidas à autoridade presente, foi sacrificado nas cocheiras, como reza a tradição, sem qualquer pompa. Quem confiaria em quem mete chifres, corneia, usurpa o protagonismo que não lhe cabe? Passado o momento do aplauso, vem a sentença, inequívoca e severa: morrerá como uma vaca, suas orelhas não serão disputadas como troféu, nenhum taxidermista empalhará sua cabeça, ninguém reivindicará seu robusto rabo para guisar a tradicional cola de toro, tão mais saborosa quanto mais brigador for o touro. A dele foi uma morte sem glamour, sem memorização, uma expiração, nada mais, virou carcaça.

A morte do toureiro que entrou para a história como não pretendia, na conjuntura brasileira em que se desenvolve um Golpe de Estado, convida à reflexão. O Brasil tem uma elite econômica medíocre. Os políticos financiados por essa gente não são menos desprezíveis. Financiadores e financiados são como tiriricas, nome de uma praga que infesta plantações com raízes profundas que dificultam sua erradicação. Empresários corruptos e corruptores tramaram o Golpe de Estado por intermédio de um fraudulento processo de impeachment conduzido pela pior composição que o Parlamento brasileiro já teve.

Um palhaço, por profissão, chamado Tiririca, foi eleito Deputado Federal na atual legislatura. As elites econômicas e uma significativa parcela do estrato síntese da nova pequena-burguesia barnabé meritocrata, que sempre ridicularizaram o Deputado Tiririca por seu suposto analfabetismo, o aplaudiram quando - ao contrário do que havia anteriormente anunciado - resolveu apoiar o Golpe Parlamentar. Ignorante, Tiririca pensa que agora sim, agora será finalmente aceito por seus pares e pelas classes médias que até a semana passada dele desdenhavam. Barnabés incautos, espelhando-se no empresariado que tanto admiram, como Tiririca, baliram "fora Dilma" pensando que "agora sim" com o golpista entronado teriam seus holerites fornidos.

Sempre achei que Tiririca não destoava na Câmara dos Deputados. Conheço alguns deputados de raciocínio tão primário quanto o dele. Devo confessar, contudo, que nem nos meus piores pesadelos imaginaria a quantidade de tiriricas que infestou o Congresso Nacional nas últimas eleições. A falta de compostura daqueles tiriricas, acabrunhado admito, envergonhou-me quando tive acesso aos melhores jornais internacionais depois daquela memorável tarde de domingo, em que mais de trezentos corruptos autorizaram a abertura do processo de cassação da vontade popular.

Os empresários presos na “Operação Lava Jato”, de igual modo, não destoam da maioria do empresariado brasileiro. São aquilo: querem benefícios do Estado e defendem o livre mercado, consideram "normal" sonegar impostos e direitos aos seus empregados. Esses tiriricas que conspiraram para que sua ideologia chegasse ao governo, com o Golpe, desde há muito infestam a história de nosso país e nos envergonham.

O Brasil, por culpa desses tiriricas, foi ridicularizado mundialmente. E não por conta do Deputado Tiririca, nem sabem que ele existe. A imprensa de vários países preferiu destacar os votos criminosos dos irmãos Bolsonaro fazendo apologia da tortura, daqueles desqualificados da "bancada cristã", invocando um deus tão venal quanto eles (promete o paraíso e a salvação a quem pagar adiantado com sua fé e com seu dízimo), dos hipócritas que votaram "pela família", além de outras bizarrices que foram citadas com cruel ironia. Um vexame de proporções globalizadas. O mundo capitalista reconheceu o triste episódio em que o Brasil, por seus tiriricas, igualou-se a uma republiqueta: a bolsa de valores despencou e o dólar subiu. Os bregas que adoram "maiame" ficaram decepcionados, pois não vai dar para "toda hora comprar ternos", mal cortados, na meca dos medíocres.

As empresas viram despencar seus ganhos depois que o usurpador assumiu o governo temporário. Os barnabés que bateram panelas e desfilaram com a camiseta da CBF, apesar de seus déficits cognitivos decorrentes da ideologia meritocrata, já começam a desconfiar que militaram contra seus próprios mesquinhos interesses. Esses e outros tiriricas que conspiraram para o Golpe que, ao final, só beneficiou o capital financeiro e as grandes indústrias, como Victor Barrio, foram corneados.

Não nos enganemos, todavia, não são todos tiriricas. Entre os golpistas há ainda os traidores mau-caráter (entre os quais os que até ontem detinham cargos no governo à custa de chantagens diversas) e há aqueles, muito piores, ideológicos, que conduziram os tiriricas à efêmera fama no teatro de horrores do dia 17 de abril e que passaram a ser os principais agraciados em um "novo" governo, muito parecido com os que tivemos até 2002. Estes são a minoria que conduz os tiriricas. Com tristeza reconheço que a imensa maioria dos deputados e deputadas que envergonharam o Brasil não é diferente do estrato social a quem eles representam.

Há milhares de tiriricas que, mesmo sabendo que estariam elegendo um mau-caráter traidor que teria por "vice" um escroque, estufaram o peito para gritar "fora PT" com um ódio irracional, digamos, típico do PSTU, mesmo sabendo que o oposto da socialdemocracia (petista) seria o neoliberalismo que reduz gastos públicos, que reduz a massa salarial, a quantidade de dinheiro que circula na economia. Foram centenas de milhares os que desfraldaram as bandeiras que a brisa do Brasil beija e balança, tangidos por uma onda fascista que objetivou acabar com as políticas públicas para pobres, para coletivos vulneráveis de populações campesinas, LGTB, indígenas, negros e deserdados de um modo geral.

Esse ódio é de classe, bem verdade, mas é também transversal: milhares de gays, de negros, de pobres, de funcionários públicos, de bolsistas do PROUNI e do FIES, de marginalizados historicamente pelo capitalismo brasileiro, contaminados pelo ódio difuso, no dia seguinte do afastamento da Presidenta festejaram a "vitória" contra o "governo do PT". Conheço vários que teriam todos os motivos racionais para serem contra o rompimento da ordem institucional e que se aliaram aos golpistas. São todos tiriricas. Nas eleições passadas vários candidatos se apresentaram como "renovação" empunhando causas específicas como a "do povo cristão contra a degradação dos costumes", a do "190 km/h é crime", a dos deficientes, a dos ciclistas, a dos "corretores de seguro", a "do povo assembleísta", entre outras.

Alguns foram eleitos e no espetáculo televisionado prestaram homenagem aos tiriricas que votaram neles. Muita gente inteligente que por motivos diversos havia votado naqueles deputados tiriricas se remoeu de raiva, de remorso. Esses não são tiriricas, só entraram na "moda pós-moderna" dos "reconhecimentos" de identidades quase tribais, sempre parciais e de grupos e estamentos. Doravante, antes de votar para deputado ou para vereador, se perguntarão a que classe social pretende servir o candidato. Aprenderam da maneira mais difícil. O slogan de campanha do Deputado que sintetiza o padrão intelectual e ético da atual composição do parlamento brasileiro era "vote em Tiririca, pior que tá não fica" e com ele teve uma votação assombrosa. Pois é. Ficou. O slogan "não vou pagar o pato" do grande empresariado paulista vingou. Com o Golpe e com a ideologia que o sustenta já aumentou a concentração de renda, o desemprego e a miséria. Para isso deram o Golpe.

Os demais, os pequenos empresários que dependem da renda dos trabalhadores para vender seus serviços ou produtos, os funcionários públicos, os profissionais liberais, todos perderam. Alguns já se deram conta disso. Outros, leitores da Veja, mais lentos, tardarão um pouco mais. Os intelectuais a soldo e os ultravaidosos que imaginavam ficar famosos aderindo aos golpistas, os que rasgaram suas biografias deixando de se contrapor frontalmente ao Golpe, como Victor Barrio, entraram para a história, mas não como pretendiam. Haverá quem festeje quando forem passados por inevitáveis chifres (quem confiaria em trânsfugas?), outros tentarão sem sucesso perdoar-lhes o golpismo, conclamando à temperança e à concórdia.

O Brasil passa uma enorme vergonha internacional por causa dos tiriricas que ainda estão comemorando, avoados, o prenúncio do que - se não houvesse a resistência - poderia ser um desastre para os Direitos Sociais, para as políticas públicas para pobres e para os Direitos dos Trabalhadores. O governo do Usurpador e as cúpulas dos partidos que representam a maioria tiririca dos deputados já descartaram o Tiririca e o escroque que presidiu a abertura do processo de impeachment. O empresariado delinquente que conduziu o Golpe descartará parte dos tiriricas que infestam o Congresso. Como o touro que corneou o medíocre toureiro em Aragon, estes e outros tiriricas, inclusive o camisa preta que por enquanto ainda é incensado, serão oportunamente sacrificados, sem honras. Os golpistas não terão tanta sorte.

Sobreviverão para escutar, pelo resto de suas vidas, que são golpistas e serão responsabilizados pelos retrocessos sociais que não conseguirmos evitar. Entraram para a história como o toureiro de Teruel, da pior maneira possível.

*Wilson Ramos Filho, doutor, professor de Direito do Trabalho na UFPR (Curitiba) e no Doctorado en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo na UPO (Sevilha), advogado de sindicatos e movimentos sociais.