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sexta-feira, 17 de junho de 2016

Agreste Psicodélico - o disco maldito de Lula Côrtes e Zé Ramalho




0:00 Trilha de Sumé/Culto à Terra/Bailado das Muscarias
13:06 Harpa dos Ares
17:01 Não Existe Molhado Igual ao Pranto
24:24 Omm
30:19 Raga dos Raios
32:49 Nas Paredes da Pedra Encantada, Os Segredos Talhados Por Sumé
40:14 Maracás de Fogo
42:40 Louvação à Iemanjá/Regato da montanha
47:52 Beira mar
49:26 Pedra Tempo Animal
53:35 Sumé

 
A trilha em busca das origens de Paêbirú, o disco maldito de Lula Côrtes e Zé Ramalho, hoje o vinil mais caro do Brasil. 

por Cristiano Bastos

No dia 29 de dezembro de 1598, os soldados liderados pelo capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, encalçavam índios potiguares quando, em meio à caatinga, nas fraldas da Serra da Copaoba (Planalto de Borborema), um imponente registro de ancestralidade pré-histórica se impôs à tropa. Às margens do leito seco do rio Araçoajipe, um enorme monólito revelava, aos estupefatos recrutas, estranhos desenhos esculpidos na rocha cristalina. O painel rupestre se encontrava nas paredes internas de uma furna (formada pela sobreposição de três rochas), e exibia, em baixo-relevo, caracteres deixados por uma cultura há muito extinta. Os sinais agrupavam-se às representações de espirais, cruzes e círculos talhados, também, na plataforma inferior do abrigo rochoso.

Inquietado com a descoberta, Feliciano ordenou minuciosa medição, mandando copiar todos os caracteres. A ocorrência está descrita em Diálogos das Grandezas do Brasil, obra editada em 1618. O autor, Ambrósio Fernandes Brandão (para quem Feliciano Coelho confiou seu relato), interpretou os símbolos como "figurativos de coisas vindouras".

Não se enganara. O padre francês Teodoro de Lucé descobriu, em 1678, no território paraibano, um segundo monólito, ao se dirigir em missão jesuítica para o arraial de Carnoió. Seus relatos foram registrados em Relação de uma Missão do rio São Francisco, escrito pelo frei Martinho de Nantes, em 1706.

Em 1974, quase 400 anos depois da descoberta do capitão-mor da Paraíba, os tais "símbolos de coisas vindouras" regressariam. Dessa vez, no formato e silhueta arredondada de um disco de vinil. A mais ambiciosa e fantástica incursão psicodélica da música brasileira - o LP Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol, gravado de outubro a dezembro daquele ano por Lula Côrtes e Zé Ramalho, nos estúdios da gravadora recifense Rozemblit.

Contar a história do álbum, longe da amálgama das pessoas, vertentes sonoras e, especialmente, da chamada Pedra do Ingá que o inspirou, é impossível. Irônico é que o LP original de Paêbirú também tenha se convertido em "achado arqueológico", assim como a pedra, 33 anos depois de seu lançamento. As histórias sobre a produção do disco, como naufragou na enchente que submergiu Recife, em 1975 e, por fim, se salvara, são fascinantes.

A prensagem de Paêbirú foi única: 1.300 cópias. Mil delas, literalmente, foram por água abaixo. A calamidade levou junto a fita master do disco para que a tragédia ficasse quase completa. Milagrosamente a salvos ficaram somente 300 exemplares. Bem conservado, o vinil original de Paêbirú (o selo inglês Mr Bongo o relançou em vinil este ano) está atualmente avaliado em mais de R$ 4 mil. É o álbum mais caro da música brasileira. Desbanca, em parâmetros monetários (e sonoros: é discutível), o "inatingível" Roberto Carlos. O Rei amarga segundo lugar com Louco por Você, primeiro de sua carreira, avaliado na metade do preço do "excêntrico" Paêbirú.

A expedição no rastro dos mistérios e fábulas de Paêbirú se inicia em Olinda (Pernambuco). O artista plástico paraibano Raul Córdula me recebe em seu ateliêr. Na parede do sobrado histórico, uma cobra pictográfica serpenteia no quadro pintado por ele. A insígnia foi decalcada da mesma inscrição que, há milênios, permanece entalhada na Pedra do Ingá. No mesmo ano de Louco por Você, 1961, o professor de geografia Leon Clerot apresentou o monumento a Córdula. O professor fizera o convite: "Me acompanhe, e verás algo que jamais se esquecerá".

Uma década depois, 1972, Raul Córdula se tornou amigo de José Ramalho Neto, o jovem Zé Ramalho da Paraíba. Os conterrâneos se conheceram no bar Asa Branca, que Córdula tinha na capital, João Pessoa: "O único boteco que ficava aberto na Paraíba inteira depois das oito horas da noite, à base de 'mensalão' pago à polícia". O Zé Ramalho compositor, atesta, nascera no Asa Branca. Córdula quis mostrar a Ramalho "algo que conhecera", e organizou uma ida ao município de Ingá do Bacamarte, localidade conhecida antigamente como Vila do Imperador, por causa da passagem de Dom Pedro II por lá.

A localização de Ingá do Bacamarte é a 85 km de João Pessoa, caatinga litorânea, na zona de transição do Agreste para o Sertão. Para "fazer a viagem", Córdula também convidou o artista recifense Lula Côrtes - jovem homem que já vivera muitas aventuras. Mas aquela, proposta por Raul, ainda não. Nenhuma surpresa foi para o guia o fato de Côrtes e Ramalho ficarem tão maravilhados com a rocha lavrada quanto os expedicionários do capitão-mor da Paraíba.

A charada talhada na parede de pedra lançava-lhes o provocante desafio: como decifrariam tais arcanos - nunca compreendidos e tão majestosos - numa música que, se não codificasse, ao menos devesse tributar à remota ancestralidade brasileira? Fora essa a centelha que incendiara as idéias. Acampados na caatinga sertaneja, frente a frente com a Pedra do Ingá, Ramalho e Côrtes se decidiram pela produção de um "álbum conceitual". O único jeito de conhecer lula Côrtes é ir visitá-lo no seu habitat: o ateliêr em Jaboatão dos Guararapes. "A Pátria Nasceu Aqui", divulga a enorme placa na divisa com a capital, Recife. O apartamento onde mora, pinta e compõe com a atual banda, Má Companhia, tem vista frontal para o Oceano Atlântico. É no primeiro apertar de mão que Côrtes deixa patente quem é: "espírito indômito". Solta a frase para se pensar: "O mar e eu somos uma coisa só desde menino".

Aos 60 anos, sua voz é profunda e roufenha. A cabeça alva, um dia revestida de pretos cabelos mouriscos. E a magra, porém resistente, compleição física remete ao obstinado homem de O Velho e o Mar. Lula tem o velho de Ernst Hemingway, entretanto, como "altruísta demais". Mais impressionado ficou com o nietzscheniano capitão Lobo Harsen, de O Lobo do Mar, romance de Jack London. Os arquétipos marítimos de London, de fato, combinam mais com ele: "Nasci à beira do mar. Ele me despertou para o cumprimento das fantasias. Nele, um dia, cacei baleias", conta, jubiloso.

É esse homem que segue narrando a mais homérica jornada de sua vida, até agora: a concepção do álbum Paêbirú. Guiados pelo parceiro mais velho, Raul Córdula, Zé Ramalho e Lula Côrtes, recém-amigos, logo de cara perceberam a fantástica mística que as inscrições da Pedra do Ingá exerciam sobre a população às cercanias do sítio arqueológico. Foi por intermédio da arquiteta, hoje cineasta, Kátia Mesel, sua companheira na época, que Lula Côrtes veio a conhecer Zé Ramalho. Junto, o casal abriu o selo Abrakadabra, pioneiro na produção de música independente no Brasil.

A "sede" do selo ficava nas dependências de um prédio pertencente ao pai de Kátia, que, nos tempos da escravatura, fora uma senzala de escravos. Para se mergulhar na saga de produção que foi Paêbirú, é obrigatório antes se falar da simplicidade do instrumental Satwa - o álbum gerido, um ano antes, por Côrtes e o violonista Lailson de Holanda. É o début do selo Abrakadabra. Lula faz a estréia fonográfica da sua cítara popular marroquina, o tricórdio, instrumento que trouxera da recente viagem ao Marrocos com Kátia.

Em Satwa, o violão nordestino de 12 cordas de Lailson dialoga em perfeita legibilidade com o linguajar oriental do tricórdio de Lula. É, provavelmente, o encontro mais fino entre o folk e a psicodelia do qual se tem registro gravado na música brasileira. Lailson, premiado cartunista, traduz: "Satwa é expressão do sânscrito: quer dizer 'interface e equilíbrio'". Em 2005, a norte-americana gravadora Time-Lag Records reeditou Satwa, a partir da master original. Só o nome, na realidade, foi remodelado: Satwa World Edition.

Como previsto, a edição esgotou como mágica. Após Satwa, Lula tinha aprimorado suas concepções musicais. Achava-se apto para o grande projeto que andara tramando com o parceiro Zé Ramalho desde a visita à "pedra encantada". Não perderam tempo e investiram em sérias pesquisas nas imediações. Eles caçavam a interpretação local, folclórica, mitológica sobre o admirável monólito escrito.

Nas adjacências vivia um grupo de índios cariris. Os músicos foram até eles, atrás da peculiaridade do seu tipo de música. Ouvindo, descobriram que os traços de uma cultura africana tinham se fundido à sonoridade dos indígenas. Se fundamentado em registros arqueológicos, Zé Ramalho e Lula Côrtes concordaram que, a partir daquele ponto, haveria um caminho, que partia de São Tomé das Letras (onde existem registros da mesma escrita rupestre traçada na Pedra do Ingá) e conduzia até Machu Picchu, no Peru. A trilha que os Cariris chamavam de "Peabirú".

Chegar à mística Pedra do Ingá, hoje em dia, é fácil. Seguindo pela BR 101, no trecho Recife - Paraíba, as condições de tráfego são admissíveis, mesmo sem via duplicada. Pela estrada federal, as pequenas localidades vão se cruzando: Abreu e Lima, Goiana, Itambé, Jupiranga, Itabaiana, Mojeiro. Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Pedra do Ingá (Pedra Lavrada, ou Itaticoara) é um dos sítios arqueológicos mais soberbos do mundo. O arqueólogo Vanderley de Britto, da Sociedade Paraibana de Arqueologia, já aguarda, no local, minha chegada. Segundo ele, as inscrições são originárias de sociedades pré-históricas, nativos anteriores aos encontrados no Brasil pelos europeus. "Certamente, essas gravuras" , diz, apontando o imenso painel de rocha, "são obra de sacerdotes ou pajés. Visavam ritos mágico-religiosos que visavam sortilégios para tribo", Brito explica, com sua proficiência.

Próximo à pedra, sem ter de tocá-la, o arqueólogo continua sua explanação: "As representações registram o canto mágico solfejado pelos sacerdotes nas cerimônias", prega. A pedra, na opinião do arqueólogo, seria, para os nativos, um "meio de comunicação" com os deuses (ou deusas) da natureza. A estimativa da ciência é a de que as gravações já estejam ali por volta de três a seis mil anos. "Datação exata não é possível, porque o monólito está em meio ao riacho", esclarece o professor. Vestígios, por ventura, deixados pelos gravadores, ao cinzelar a pedra, foram arrastados no trespassar das águas do ancião Araçoajipe.

Dinossauros, o arqueólogo também confirma, habitaram a região. A probabilidade - nada prosaica - de me banhar no regato que, num dia qualquer da pré-história um tiranossauro rex sorvera metros cúbicos de água, passa agora de jornalismo a uma aventura que, com prazer, obrigo-me pôr em prática. A água é morna. A sensação, arrepiante. "Animais de grande porte, como a preguiça e o tatu-gigante, no período mezosóico, habitaram a região: mastodontes, cavalos nativos e outros mega-animais também circulavam por aqui", ele lembra. Submerso na tepidez do plácido regato pré-histórico, um túnel do tempo dentro de minha cabeça fazia a imaginação vagar por mundos arcaicos desaparecidos na vastidão temporal.

De frente para o mar, lula Côrtes gosta de acreditar na epopéia interplanetária narrada em "Trilha de Sumé", a abertura de Paêbirú. "As gravações na Pedra do Ingá foram feitas com raio laser mesmo", afiança o artista, que cantarola a introdução da música, o alinhamento dos planetas: "Mercúrio/Vênus/Terra/Marte/Júpiter/Saturno/Urano/Netuno e Plutão".

Os versos seguintes cantam a saga de Sumé, "viajante lunar que desceu num raio laser e, com a barba vermelha, desenhou no peito a Pedra do Ingá". A cada descoberta que faziam com suas explorações, Côrtes e Ramalho notavam, na variedade de lendas, que todas eram sobre Sumé - entidade mitológica que teria transmitido conhecimentos aos índios antes da chegada dos colonizadores. "Todos os indícios levavam a Sumé. Até as palmeiras da região, por lá, são chamadas de 'sumalenses'", observa Lula. Para "libertar" os indígenas da crença pagã, os jesuítas pontificaram Sumé como "santidade": virou São Tomé. O que explica, no Nordeste, o fato de muitos lugarejos terem sido batizados de São Tomé. "Aqui é o lugar de São Tomé!", os padres costumavam anunciar, ao chegar numa região nova.

Na Paraíba, resta uma cidade chamada Sumé. "Seja lá quem tenha sido Sumé, o que mais se sabe, no entanto, é que muito andou por essas bandas", brinca Raul Córdula. A despeito da evangelização católica, a memória do Sumé indígena segue viva em todo o Nordeste. A crença indígena diz que, quando o pacifista Sumé se foi embora, expulso pelos guerreiros tupinambás daquelas terras, deixou uma série de rastros talhados em pedras no meio do caminho. Os índios acreditam que Sumé teria ido de norte a sul, mata adentro, descerrando a milenar trilha "Peabirú" - em tupi-guarani, "O Caminho da Montanha do Sol".

O historiador Eduardo Bueno, que passou anos de sua vida "veraneando" na praia de Naufragados, no sul da ilha de Santa Catarina, conta que tomou conhecimento da trilha lendo a aventura de Aleixo Garcia, o qual, após um tempo vivendo naquela praia, fora informado da existência de uma "estrada indígena" que conduzia até o Peru. Após muitos verões chuvosos contemplando o lugar de onde o bravo Garcia havia partido em sua jornada épica, Bueno decidiu acompanhá-lo - mas na mente: "Mergulhei em todas as fontes que traziam relatos de sua viagem. Ficção não era. Tais fontes, embora, eventualmente, contraditórias entre si, eram da melhor qualidade". O resumo mais interessante da história, diz, é o que define Peabirú como "um ramal da majestosa Trilha Inca, que ligava Cuzco a Quito e, por sua vez, outra corruptela - de 'Apé Biru'".

Em tupi-guarani, Apé significa "caminho", ou "trilha", e Biru é o nome original do Peru. Portanto, Peabirú significaria "Caminho para o Peru". Havia três inícios principais desse caminho: um, partindo de Cananéia (litoral sul de São Paulo) e, outro, da foz do rio Itapucu, nas proximidades da ilha de São Francisco do Sul (litoral norte de Santa Catarina). Um terceiro saia da Praça da Sé, em São Paulo, seguia pela rua Direita, dava na Praça da República, subia a Consolação, descia a Rebouças, cruzava o Rio Pinheiros e... chegava no Peru. "Fico pensando porque nos roubaram o prazer de desfrutar essa história no colégio", brinca Bueno. "Pensando bem, não foi esse o único prazer que nos roubaram, foi?" Muitas vezes procurado, Zé Ramalho declarou que "não quer mais falar sobre o assunto Paêbirú" - para ele, encerrado. Em algumas entrevistas, no entanto, coteja Paêbirú à Tropicália.

Um dos comentários é sobre o jeito artesanal, "como se costurado à mão", que o álbum foi feito. Agendo uma "audição comentada" de Paêbirú no ateliêr de Lula Côrtes. Enquanto, pacientemente, pinta o quadro de um farol, vai me explicando como tornaram possível (e viável) a engenhosa gravação do disco.

O álbum - duplo - é dividido em quatro lados, de acordo com os elementos Terra, Ar, Fogo e Água. Em "Terra", o resultado "telúrico" foi conseguido com tambores, flautas em sol e dó, congas e sax alto. "Simulamos, com onomatopéias, 'aves do céu', 'pássaros em vôo' e adicionamos o berimbau, além do tricórdio", ele conta.

Contrariando a prática dos "encartes vazios", a gama de instrumentos utilizados está descrita na ficha técnica de Paêbirú. Efeitos de estúdio, nem pensar: "Só havia as pessoas, vozes e instrumentos", comenta o artista. Certos efeitos, como o rasgar da folha de um coqueiro, por exemplo, muitos pensaram serem eletrônicos. No lado "Ar", além de "conversas", "risadas" e "suspiros", selecionaram-se harpas e violas sopros para músicas como "Harpa dos Hares", "Não Existe Molhado Igual ao Pranto" e "Omm".

Em "Água", as músicas têm fundo sonoro de água corrente. No mesmo lado, cantos africanos, louvações à Iemanjá e a outras entidades representativas do elemento. Na mais dançante, o baião lisérgico "Pedra Templo Animal", Lula Côrtes toca "trompas marinhas". Zé Ramalho pilota o okulelê. "Fogo", como adverte o nome, é a faceta incendiária de Paêbirú. A mais roqueira também. Entram sons trovejantes: o wha-wha distorcido do tricórdio e a psicopatia do órgão Farfisa em "Nas Paredes da Pedra Encantada". "Raga dos Raios" conserva-se, mais de 30 anos depois, como a melhor peça de guitarra fuzz gravada no rock nacional: "Guitarreira elétrica & nervosa de Dom Tronxo", diz a ficha técnica. Onde andará Dom Tronxo?

O encarte sofisticado de Paêbirú é obra de Kátia Mesel. Além de designer, ela fez a produção executiva do álbum. "São mais de 20 pessoas tocando no disco - basicamente, toda a cena pernambucana e boa parte da paraibana", a cineasta enumera. O disco só deu certo, na opinião de Kátia, porque foi feito com a alma e a criatividade soltas. "Num estúdio de dois canais, baby? Era o playback do playback do playback! A gente se consolava: 'Se os Stones gravaram na Jamaica em dois canais, por que a gente não?'

Em 'Trilha de Sumé', Alceu Valença toca pente com papel celofane. [O disco] tem desses requintes", graceja. Foi o zelo de Kátia, na realidade, que garantiu o salvamento de 300 cópias de Paêbirú da enchente de 1975. Ela guardara parte da tiragem na Casa de Beberibe, onde o casal morava - o ambiente em que muitas canções foram, gradualmente, tomando forma. "A sorte é que eu tinha deixado os discos no andar de cima. São esses que, atualmente, valem uma fortuna mundo afora", pontua Kátia. Naquele tempo, Ramalho praticamente morava com o casal na Casa de Beberibe.

A concepção gráfica do álbum foi obtida após muitas idas do trio à Pedra do Ingá. Na verdade, um quarteto, já que o irmão de Kátia, o fotógrafo Fred Mesel, seguia junto em algumas viagens. "Eu filmava em Super 8 e Fred tirava fotos da pedra com filme infravermelho", ela conta. A técnica fotográfica explica a tonalidade azul-cítrica da capa e da parte interior de Paêbirú. Especial atenção foi dada à ficha técnica.

No encarte central, fotos de todas as pessoas que participaram das gravações. Um detalhe é que todos os títulos foram montados à mão, um a um, em letra set. A diferença é que, a essa altura, Kátia era mais experiente: além de Satwa, também produzira a arte do único álbum de Marconi Notaro, No Sub Reino dos Metazoá-rios (1973). "Para lançar Paêbirú, criamos o selo Solar", acrescenta. As substâncias psicodélicas, obviamente, foram muito importantes durante o processo de composição. Para Lula Côrtes, no entanto, só de estar perto da Pedra do Ingá, é possível sentir o xamanismo emanando do monumento rochoso: "Comíamos cogumelos mais como 'licença poé-tica mental'", justifica o artista.  

Crosby, Stills and Nash, T-Rex, Captain Beefheart, Grand Funk Railroad e The Byrds eram as bandas mais ouvidas pelo grupo na época. Em meados da década de 1970, a maquiagem do glitter rock já estava borrada e, nos Estados Unidos, a semente punk aflorava nos buracos sujos de Nova York. A disco music ensaiava os primeiros passos de dança. Psicodelia, no mundo, era coisa ultrapassada: encapsulara-se nos remotos anos 60. Zé da Flauta tinha 18 anos quando conheceu Lula e Kátia. No auge da repressão, a Casa de Beberibe era o templo da liberdade e da contracultura. "Aprendi muito sobre arte. Lá se conversava sobre tudo, inclusive se fumava muita maconha", confirma Zé. Ele tocou sax na vigorosa "Nas Paredes da Pedra Encantada". "Jamais me esquecerei, aliás: foi a primeira vez que entrei num estúdio e gravei profissionalmente como músico."

Outro que teve "participação relâmpago" foi o paraibano Hugo Leão, o Huguinho. Ele vinha das bandas The Gentlemen e os Quatro Loucos, nas quais Zé Ramalho tocava guitarra. Ramalho o chamou para participar como tecladista do "ousado projeto". Sua atuação ficou imortalizada no disco. São dele os riffs de órgão Farfisa em "Nas Paredes..." Para assumir a bateria, Ramalho recrutou Carmelo Guedes, outro parceiro seu nos Gentlemen. A mágica, lembra Huguinho, começou logo que entraram no estúdio.

As bases foram criadas na hora, como num susto: "Cravei um tom maior: Mi! O sonho começara. Os segredos da Pedra do Ingá, finalmente, pareciam que seriam desvendados. A guinada sonora ainda ecoa pelo espaço", acredita. Em minha jornada, sigo para a capital paraibana. Em João Pessoa, Telma Ramalho, a prima mais jovem de Zé Ramalho, diz não esquecer uma passagem da pré-adolescência: a mãe, Teresinha de Jesus Ramalho Pordeus, professora de História, conversava com o sobrinho em seu escritório: "Zé contava a ela como se desenrolavam as gravações de Paêbirú".Uma lembrança viva é ter ouvido o disco aos 12 anos: "Não entendi nada. Só lembro de 'Pedra Templo Animal' e 'Trilha de Sumé', as mais pop", diverte-se.

Outra memória é ter apresentado uma réplica da Pedra do Ingá na feira de ciências do colégio. A trilha sonora foi Paêbirú. "Levei a vitrolinha e botei para rodar." Telma faz a contundente revelação: "Tive caixas de Paêbirú em casa. Uma verdadeira fortuna cultural e financeira". Para Cristhian Ramalho, filho de Zé Ramalho e afilhado de Lula Côrtes, Paêbirú também tem significação especial: "Meu pai me levava à Pedra do Ingá quando criança. Ele ia para achar inspiração". Sem dúvida, diz Cristhian, Paêbirú e a Pedra ainda exercem influência sobre a sua obra. "Em 1975, ele escreveu uma poesia muito bonita, que diz: 'Venho de uma dessas pedras rolantes'. Houve, por parte dele, grande misticismo envolvido na minha chegada", conta, orgulhoso, o filho.

Uma das pessoas que, na época do lançamento, compraram o álbum foi a arquiteta Terêsa Pimentel. Aos 14 anos, em 1974, ela não sabia ao certo o que procurava na sua vida. Apesar disso, sabia "o que não queria". "Ouvíamos os locais: Ave Sangria, Marconi Notaro, Flaviola & O Bando do Sol, Aristides Guimarães, o 'udigrudi' nordestino. Vendi minha bicicleta Caloi verde-água para comprar Paêbirú. Hoje, sou feliz por ter vendido a bicicleta e ter adolescido naquela atmosfera", conta. Terêsa é irmã do músico Lenine, ao qual Lula Côrtes presenteou com sua última cópia de Paêbirú, há alguns anos. "Para tirar uns samplers", diz Lula.

De Jaboatão dos Guararapes, eu e Lula seguimos para a casa de Alceu Valença, no centro histórico de Olinda. Lula bate à porta do casarão. Festa quando Valença cruza o amplo saguão para saudar Lula, velho parceiro em Molhado de Suor, um dos seus primeiros discos. "A gente tocou em 'Danado para Catende', que depois virou 'Trem de Catende'", Alceu conta. "Até então Lula só compunha, mas não cantava. Fiz a cabeça do pessoal da Ariola: 'O cara é o máximo!' Na gravadora, ninguém tinha a menor idéia de quem era o cara, muito menos que fizera algo como Paêbirú." Souberam, no entanto, quando o álbum Gosto Novo da Vida, de Lula Côrtes, foi premiado como "a melhor venda do ano da gravadora Ariola", em 1981. Em três meses, vendeu 32 mil cópias. Depois, teve sua reedição emperrada por causa de um processo movido pela Rozemblit, que alegava plágio em uma música. "Foi o primeiro artista que vi fumar no palco, no Teatro João Alcântara", diz Alceu. Ambos riem. Lula acende um cigarro. "Participei de Paêbirú. Dei uns gritos lá", resume Alceu. "Foi na reza de 'Não Existe Molhado Igual ao Pranto'", Lula emenda. "O estúdio da Rozemblit tinha acústica maravilhosa. Era o ambiente mais natural possível: cheguei e fui me deitando num canto. A banda tocava. Sonolento, me espreguicei: 'Ommmmmmmm...'." "Foi como num mantra. Quando Alceu começou, todo mundo veio atrás e não parou mais", conclui Lula. É nessa tradição do "livre espírito" que Paêbirú foi realizado.

No texto homônimo - uma raridade datilografada só encontrada no interior dos LPs sobreviventes da cheia e escrito depois da ingestão de cogumelos colhidos no meio do caminho -, Lula Côrtes nos dá uma última idéia da grande aventura que foi Paêbirú: "Nós caçávamos o passado, e os corações se encheram de esperança com aquela visão. O caminho que havíamos abandonado mais atrás era o das Pedra de Fogo, outro pequeno aglomerado quase sem nenhuma chance de vida. A água é muito escassa. Conversávamos sobre as pedras. E ao longo, no horizonte, o lombo prateado da Borborema desenha curvas leves, demonstrativas de sua imensa idade. Os nativos tinham mapas nos rostos, o sol lhes rachou os lábios como racha a terra, as pedras duras e afiadas que dificultavam a caminhada lhes endureceu o riso. A informação parecia estar correta. Achamos o regato e acompanhamos o sentido. A água era clara e bastante salgada. A irrealidade se apossava cada vez mais dos nossos corpos e mentes, e toda a lenda que nos havia enchido os ouvidos, até aquele dia, parecia florar de tudo."

O desmonte da legislação de agrotóxicos e as ameaças para o povo brasileiro



 


por Cleber A. R. Folgado*, no EcoDebate




Na atual conjuntura temos visto a afirmação – da qual concordo – de que impeachment sem crime é golpe. Os áudios divulgados recentemente apontam para a existência de uma complexa trama, com intencionalidade clara, em torno da construção deste golpe. Há que se atentar, porém, para o fato de que existem outras tramas curso. Portanto não é apenas a democracia que se encontra ameaçada, mas um conjunto de outros direitos historicamente conquistados pelo povo brasileiro. O Projeto de Lei 3200/15 e o Projeto de Lei 1687/15 são alguns dos instrumentos da trama em curso que aponta para o desmonte da legislação de agrotóxicos, o que em outras palavras significa a ameaça de direitos sociais.

Antes de adentrar nos retrocessos que propõem o PL 3200/15 e o PL 1687/15, façamos um breve resgate histórico sobre como se formou a atual legislação de agrotóxicos.


Histórico de construção da lei de agrotóxicos

O sistema normativo de agrotóxicos brasileiro tem como pedra angular a Lei 7.802 de 11 de julho de 1989. Antes dessa lei, os agrotóxicos eram regulados por um conjunto disperso de normas que tinham como base principal o Decreto 24.114 de, 12 de abril de 1934, que tratava da defesa sanitária vegetal. Em virtude dessa dispersão de normas e da limitação das próprias normas em si, o sistema normativo de agrotóxicos da época era extremamente frágil. Essa fragilidade normativa somada aos programas de incentivo governamental para adoção do pacote tecnológico químico-dependente da revolução verde foram elementos fundamentais para que se consolidasse o uso de agrotóxicos como prática hegemônica nos processos produtivos no Brasil.

Na medida em que o ciclo vicioso de uso de agrotóxicos se consolidava no campo brasileiro, as contradições do modelo também iam aparecendo, de modo passa-se a identificar contaminações de mananciais de água, animais, pessoas, etc. Infelizmente a capacidade legislativa de criar normas de proteção a saúde e ao meio ambiente não acompanhava a velocidade com que os venenos se proliferavam na prática produtiva agrícola.

Fruto dessas contradições, no ano de 1982, descobre-se que as águas do Rio Guaíba, principal fonte de abastecimento de água potável da capital gaúcha – Porto Alegre – estavam contaminadas por resíduos de agrotóxicos, tais como heptacloro, endosulfan e outros produtos da família dos organoclorados, amplamente utilizados na produção agrícola da região. Este fato possibilitou que um conjunto de organizações, liderados pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) se mobilizassem e a partir de um longo processo de luta e pressão social aos parlamentares, fosse aprovada no dia 02 de dezembro de 1982 a lei estadual de agrotóxicos, que só viria a ser publicada no Diário Oficial do estado em 22 de dezembro de 1082 com a descrição de Lei nº 7.747. O texto sancionado pelo governador Amaral de Souza apresentava cinco vetos, que foram derrubados em votação no dia 14 de abril de 1983, mantendo-se na íntegra o texto aprovado.

Após a aprovação da Lei Estadual de Agrotóxicos do Rio Grande do Sul, vários outros estados da federação seguiram o exemplo e construíram suas legislações estaduais, tendo por base a Lei gaúcha. Dentre elas podemos citar: a Lei Paranaense nº 7.827, de 29 de dezembro de 1983; a Lei Paulista nº 4.002, de 05 de janeiro de 1984 (2); a Lei nº 6.452, de 19 de novembro de 1984, do Estado de Santa Catarina (3); as Leis Estaduais do Rio de Janeiro nº 801, de 20 de novembro de 1984, e nº 1.027, de 06 de agosto de 1986 (4); a Lei Estadual do Mato Grosso nº 4.638, de 10 de janeiro de 1984 (5); a Lei Estadual de Minas Gerais nº 9.121, de 30 de dezembro de 1985; dentre outras.

Diante da pressão social através da construção de leis estaduais para legislar especificamente os agrotóxicos, o governo federal se vê acuado e realiza a primeira tentativa de criar uma lei federal em 1986, quando o então Presidente José Sarney nomeou Pedro Simon como Ministro da Agricultura. O novo ministro tratou de reunir uma comissão especial afim de construir um anteprojeto que pudesse substituir o Decreto 24.114/1934. O Decreto nº 91.633, de 09 de setembro de 1985, criou a Comissão Especial composta por 27 membros, que tinham a tarefa de em 60 dias construir o anteprojeto de lei para os agrotóxicos. A comissão cumpriu o prazo e em ato solene, no dia 9 de janeiro de 1986, pelas mãos professor Flavio Lewgoy, decano representante da AGAPAN, entregou o anteprojeto ao Ministro Pedro Simon que o encaminhou a Casa Civil. Alegando vícios de constitucionalidade, a Casa Civil tentou devolver o anteprojeto à comissão que já havia se extinguido.

Logo em seguida Pedro Simon foi substituído no Ministério da Agricultura por Íris Resende, que aceitou a volta do anteprojeto para o Ministério da Agricultura, e autorizou, mesmo sob forte manifestação contrária de ex-integrantes da comissão especial, que alterações fossem feitas no anteprojeto. As alterações no anteprojeto atendiam com as pressões exercidas pelos representantes da indústria de agrotóxicos, no entanto, o anteprojeto ficaria parado no palácio por quatro anos, sem nenhuma movimentação para sua aprovação.

Apenas em 1989, devido a pressões sociais em torno da questão ambiental, incluindo o ainda recente assassinato de Chico Mendes em 1988, é que o anteprojeto da lei de agrotóxicos é retomado no âmbito do Programa Nossa Natureza. Em 24 de abril de 1989 ele é submetido pelo Poder Executivo ao reexame do Congresso Nacional, onde recebeu a caracterização de PL nº 1.924. Como o projeto foi enviado em regime de emergência, este teria então apenas 45 dias para sua apreciação, e caso não fosse apreciado, seria aprovado automaticamente por decurso de prazo e sancionado.

Durante o processo de tramitação o PL 1.924 recebeu 28 emendas parlamentares que em geral buscavam contribuir com a redação do texto, sem alterações de conteúdo, com exceção apenas do substitutivo proposto pelo Deputado Federal Jonas Pinheiro, que propôs um novo PL que ao tramitar foi recusado por todas as comissões que o apreciou.

Nas comissões em que tramitou o PL 1924, foram propostos três substitutivos. Frente as três propostas de substitutivo, acordou-se pela construção de uma única redação, afinal havia a necessidade de se chegar a um texto comum, haja visto que o prazo para apreciação parlamentar estava por exaurir-se, o que se ocorresse sem que os parlamentares tivessem aprovado teor consensual, o projeto inicial enviado pelo Poder Executivo é que terminaria por ser sancionado.

Assim, considerando as apreciações feitas durante o processo de tramitação, tais como as propostas de emendas e substitutivos, chegou-se a um texto comum para o Projeto de Lei 1.924, que por sua vez foi aprovado no dia 15 de junho de 1989 pela Câmara dos Deputados e enviado ao Senado, que o apreciou em caráter revisório e o aprovou no dia 06 de julho de 1989 sem nenhuma alteração. Assim, apenas cinco dias depois, o PL 1.924, já devidamente aprovado, foi sancionado pelo Presidente José Sarney como Lei Federal nº 7.802, de 11 de julho de 1989, tornando-se assim, a primeira Lei de caráter amplo e específica sobre os agrotóxicos, inaugurando uma nova concepção regulamentar sobre o tema e orientando a formação de um novo sistema normativo para agrotóxicos no Brasil.

Feito esse resgate, que aqui tem como objetivo demonstrar que a Lei 7.802/89 é fruto de um longo processo de luta social, das quais várias demandas estão incorporadas no texto de tal lei, vejamos do que se trata o PL 3200/15 e o PL 1687/15.


O desmonte da lei de agrotóxicos e o golpe dentro do golpe

Projeto de Lei 1687/15, é a numeração que recebeu na Câmara Federal o Projeto de Lei 679, protocolado no Senado Federal pela então Senadora Ana Rita, no dia 10 de novembro de 2011. O PLS 679/11 tinha como proposta alterar a Lei 7.802/89, para incorporar Art. 21-A na lei de agrotóxicos, criando a Política Nacional de Apoio ao Agrotóxico Natural, com o objetivo de estimular as pesquisas, a produção e o uso de agrotóxicos não sintéticos de origem natural.

No processo de tramitação do PLS 679, foram feitas três propostas de textos substitutivos que por sua vez alteram completamente o horizonte da proposta apresentada, de modo que ao invés de se construir uma política para incentivar a produção de verdadeiros defensivos naturais, o texto final garante mais investimentos para a produção de agrotóxicos e a destinação de recursos públicos para as empresas, repetindo assim, o que já foi feito no passado com a criação do Programa Nacional de Defensivos Agrícolas, em 1975, no âmbito do II Plano Nacional de Desenvolvimento.

Após os substitutivos, o texto final aprovado no Senado e encaminhado à Câmara, recebendo o número de PL 1687/15, dentre outras coisas, cria o art. 12-B para instituir a instituir a Política Nacional de Apoio aos Agrotóxicos e Afins de Baixa Periculosidade. Desse modo, é possível perceber que o processo legislativo no Senado alterou de forma drástica a proposta inicial do PLS 679, transformando-o num instrumento de incentivo para as empresas de produção de agrotóxicos, que já gozam de várias benefícios, tais como as isenções de impostos.

Tramitam no Congresso Nacional mais de 50 Projetos de Lei que apontam para algum tipo de alteração na Lei 7.802/89 (lei de agrotóxicos), em sua grande maioria tais PLs buscam desmontar o sistema normativo de agrotóxicos, flexibilizando a legislação existente e garantindo benefícios aos setores que defendem os venenos.

O famigerado PL3200

No dia 06 de outubro de 2015 foi protocolado pelo Deputado Federal Covatti Filho (PP/RS) o PL3200/15 que dispõe sobre a Política Nacional de Defensivos Fitossanitários e de Produtos de Controle Ambiental, seus Componentes e Afins, bem como sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de defensivos fitossanitários e de produtos de controle ambiental, seus componentes e afins, e dá outras providências.

O PL 3200 desmonta por completo a legislação atual de agrotóxicos, tornando-a frágil e permissiva, de modo que vários direitos sociais são atropelados pelo texto proposto. Em ato da presidência da Câmara dos Deputados, no dia 24 de fevereiro foi criada uma Comissão Especial para analisar o PL3200. Esta comissão aprovou vários requerimentos para a realização de audiências públicas acerca do tema. Todavia, no último dia 23 de maio, foi deferido requerimento determinando a apensação do PL 3200 ao PL 1687/15, que por sua vez encabeçará o bloco dos PLs em apreciação. Isso além de alterar o nome da comissão, que passa a constar como “Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei nº 1687, de 2015, do Senado Federal, que “altera a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, para instituir a Política Nacional de Apoio aos Agrotóxicos e Afins de Baixa Periculosidade”, e apensado (PL 3200/15)”, também determinou que o projeto de lei tramite em regime de prioridade, ou seja, os prazos até então vislumbrados serão reduzidos.

Trata-se de uma manobra legislativa que acelera a tramitação de ambos os PLs, inviabilizando ainda mais a participação da sociedade no processo de discussão. Além disso, invisibilizam o PL3200, visto que ele é o pior, pois propõe a revogação da Lei 7.802/89. Dentre as propostas deste Projeto de Lei, destacamos algumas:

a) Os agrotóxicos passam a ser chamados de “produtos defensivos fitossanitários e de controle ambiental”. Essa é uma manobra que tem como objetivo esconder o perigo dessas substâncias tóxicas. Agrotóxicos são biocidas, ou seja, são feitos para matar a vida. É inadmissível que voltemos a utilizar uma nomenclatura da década de 1930, quando muitos dos efeitos dessas substâncias não eram conhecidos como hoje. Agrotóxicos não são defensivos, são venenos que ameaçam a vida das pessoas e contaminam o meio ambiente.

b) Cria a Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito), que funcionará nos moldes da CTNBio. Será competência desta Comissão a edição e alteração de atos normativos referentes aos agrotóxicos; avaliação e homologação de relatórios de avaliação de risco de novo produto ou de novos usos em ingrediente ativo; avaliar os pleitos de registro de novos produtos técnicos, dos respectivos produtos formulados, pré-misturas e afins; emitir pareceres técnicos conclusivos nos campos da agronomia, toxicologia e ecotoxicologia sobre os pedidos de aprovação de registros de produtos, bem como as medidas de segurança que deverão ser adotadas;estabelecer as diretrizes para a avaliação agronômica, avaliação e classificação toxicológica e ambiental de produtos;promover, mediante pedido ou de ofício, a reavaliação de produtos, e de propor a sistemática de incorporação de tecnologia de ponta nos processos de análise, controle e fiscalização e em outras atividades cometidas aos órgãos registrante; etc.

A CTNFito ficaria alocada no MAPA e passaria a ser um super-órgão a quem compete quase tudo que diz respeito aos agrotóxicos, assumindo para si o que hoje é competência tripartite da ANVISA, IBAMA e MAPA. A composição proposta para a CTNFito é de 23 membros efetivos e respectivos suplentes, designados pelo MAPA. A divisão da composição é de 15 especialistas de notório saber científico e técnico, das áreas de química, biologia, produção agrícola, fitossanidade, controle ambiental, saúde humana e toxicologia. Além desses, completa a equipe representantes de cinco ministérios (Agricultura; Desenvolvimento, Indústria e Comércio; Meio Ambiente; Saúde e; Ciência, Tecnologia e Inovação) e representantes de órgão legalmente constituído de proteção à saúde do trabalhador; de órgão legalmente constituído representativo do produtor rural (muito provavelmente este representante será da CNA) e ainda um representante de associações legalmente constituídas de produtores de defensivos fitossanitários (diga-se representante das empresas).

c) Cria-se a possibilidade de prescrição de receita agronômica para aplicação de agrotóxicos antes da ocorrência da praga, ou seja, de forma preventiva, supostamente visando o controle de alvos biológicos que necessitam de aplicação de produto. Sem dúvidas este mecanismo vem para resolver a recorrência de emissão do que se conhece popularmente por “receituário de gaveta”, ou seja, quando o profissional emite a receita agronômica sem sequer ter pisado na lavoura para diagnosticar o problema. Essa é uma prática muito comum e extremamente perigosa, atualmente proibida por lei.

d) Para efeito de registro, passa-se a admitir um grau de risco aceitável em relação às características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas dos agrotóxicos. Atualmente isso é expressamente proibido pela art. 3º, parágrafo 6º, da Lei 7.802/89. Trata-se de uma ameaça ao direito à saúde, que coloca em risco a vida das pessoas, em especial das populações camponesas.

e) Será permitido também que o registro de um produto técnico possa ser feito por equivalência, com base nas diretrizes definidas pela CTNFito.

f) Passa-se a permitir o uso de agrotóxicos já registrados para uma determinada cultura, numa outra cultura para o qual ele não foi registrado. Trata-se do que estão chamando de “culturas com suporte fitossanitário insuficiente – CSFI”, em outras palavras, são os minorcrops.

g) Limita-se a competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios no que diz respeito a legislar sobre os agrotóxicos. A competência para controlar e fiscalizar o transporte interestadual torna-se exclusividade da União, e aos Estados, DF e Municípios compete legislar supletivamente sobre o uso, o comércio e o armazenamento, bem como fiscalizar o uso, o armazenamento e o transporte interno.Em relação ao texto da lei atual, é suprimido o mecanismo normativo que permitia os Estados e o DF legislar sobre a produção, bem como fiscalizar o consumo e o comércio de tais produtos. Aos Estados, o DF e os Municípios é vedado explicitamente a possibilidade de restringir o alcance do registro federal. Trata-se, portanto, de uma centralização das competências em nível federal, diminuindo o alcance das pressões sociais que com muita luta conseguiram aprovar leis estaduais e municipais, em alguns aspectos mais avançadas que a legislação federal.

h) As decisões dos órgãos registrantes de agrotóxicos (ANVISA, IBAMA e MAPA) passam a ser vinculadas aos pareceres da CTNFito, ou seja, os pareceres da comissão serão de cumprimento obrigatório por tais órgãos.

i) Passa a ser facultativa ao usuário a devolução das embalagens vazias de agrotóxicos, ou seja, ele devolve se quiser. Isso configura um enorme retrocesso no que se refere a proteção ambiental, visto que a devolução dessas embalagens para a reciclagem é um importante avanço, ainda obviamente, que acreditamos que devemos nos preocupar mais com o produto venenoso que havia dentro daquela embalagem, do que necessariamente com a embalagem em si.

Estes são alguns dos retrocessos que estão previstos no PL3200/15, que quando vinculado ao PL1687/15, representam enormes riscos e perigos para o campo brasileiro. Dentre os diversos problemas possíveis, caso estes PLs sejam aprovados, destacamos as seguintes ameaças ao campo brasileiro:

1- Haverá um aumento de circulação de agrotóxicos com maior teor toxicológico, ou seja, produtos cada vez mais perigosos estarão sendo usados no campo. Isso além de contaminar os alimentos, trará como consequência uma maior contaminação do ambiente, dos animais e das pessoas que trabalham no campo. Os assalariados rurais dos grandes empreendimentos do agronegócio, provavelmente serão as principais vítimas;

2- Como boa parte dos agrotóxicos são pulverizados por avião, e visto que 70% daquilo que se joga de avião nas lavouras torna-se deriva técnica, ou seja, é levado pelo vento e não atinge o alvo desejado, as populações que vivem próximas de áreas que usam pulverização aérea de agrotóxicos, serão extremamente afetadas com contaminação desses agrotóxicos cada vez mais perigosos;

3- O meio ambiente que atualmente já sofre as consequências do uso de venenos na agricultura, também ficará ainda mais vulnerável, de modo que problemas tais como o extermínio das populações de abelhas, mutações em peixes, contaminação dos lençóis freáticos, e até das águas das chuvas, dentre outras – situações estas que já são recorrentes – irão se tornar ainda mais frequentes e com níveis de contaminação ainda maior;

Em síntese, os dois PLs em questão além de desmontar o atual sistema normativo de agrotóxicos, irão consolidar uma legislação extremamente permissiva que representa apenas os interesses das grandes corporações do ramo dos agrotóxicos e aos grandes latifundiários do agronegócio. A população brasileira em seu conjunto será afetada, seja diretamente ou indiretamente. No campo brasileiro irá se concentrar os principais problemas, tais como a contaminação das pessoas e do ambiente, porém, o meio urbano também será vítima desse processo, visto que os alimentos que chegam aos centros urbanos estarão contaminados com venenos cada vez mais tóxicos.

Mobilizar-se contra esta trama em curso é uma tarefa histórica que cabe a toda a sociedade. Não podemos deixar com que golpes e retrocessos extingam direitos historicamente conquistados com muita luta pelo povo brasileiro.

*Cleber Folgado é integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS.

(2) A Lei Estadual de São Paulo sofreu algumas alterações através da Lei nº 5.032 de 15/04/86.

(3 ) Revogada pela Lei nº 11.069, de 29 de dezembro de 1998, atualmente em vigor.

(4) Ambas revogadas pela Lei nº 3.972, de 24 de setembro de 2002.

(5) Revogada pela Lei nº 5.850, de 22 de outubro de 1991.