Por Luis Martin Cabrera, no site Rebelión.org – publicado mediante licença Creative Commons - Tradução de Cainã Vidor, da revista Fórum
Em “A Carta Roubada”, conto de Edgar Allan Poe, o chefe de polícia busca infrutiferamente em todos os aposentos de um dos ministros uma carta que foi roubada da rainha e que compromete sua honra. O chefe e sua equipe entraram várias vezes de maneira ilegal no quarto do ministro, registraram cômodo por cômodo, móvel a móvel, utilizaram inclusive agulhas para espetar as almofada em busca da carta e, meu favorito, desmontaram inclusive os pés da cama e da mesa para buscar no interior destas sem que a carta aparecesse em nenhum lugar. Desesperado o chefe pede ajuda ao primeiro investigador do romance policial, Auguste E. Dupin em busca de auxílio. Com sua característica sagacidade de jogar, Dupin resolve imediatamente o mistério, porque a carta estava simplesmente em cima de uma cômoda, a vista de todo o mundo.
Se pensarmos bem, o (teatro armado em cima do) recente assassinato de Osama Bin Laden não é senão uma versão grotesca e sinistra de “A Carta Roubada”. Depois de todos estes anos, Osama não estava (então) em uma caverna nas montanhas do Afeganistão?... fazendo hemodiálise duas vezes por semana?... e dirigindo as operações da Al-Qaeda por computador como quem joga a Jihad em um Playstation?... mas estava aí, debaixo de nossos narizes, instalado comodamente em uma mansão de alta segurança nos arredores de Islamabad (ora, ora...).
E às vezes olhar demais as coisas é uma maneira de não ver o que está acontecendo, uma espécie de cegueira induzida que nos deixa no escuro. Esta cegueira não é somente um problema epistemológico, mas também um problema ético, já que a busca daquilo que não se vê porque está logo adiante permite justificar, entre outras coisas, as guerras do Afeganistão, Iraque, Paquistão e Iêmen, a tortura, as prisões ilegais, Abu Graib, Guantánamo, os bombardeios com aviões não tripulados, a aprovação do Patriotic Act, as escutas ilegais, a islamofobia, o corte das liberdades civis, e os milhares de mortos derrubados na “guerra contra o terrorismo”.
Como no conto “A Carta Roubada”, os Estados Unidos colocaram o mundo de pernas pro ar, trataram de destruir a fábrica social de todo o Oriente Médio para cortar a cabeça de um monstro que estava diante de seus olhos e que, além disto, saiu de suas próprias entranhas. Não nos esqueçamos que ainda se pode ler a declaração do presidente Ronald Reagan chamando os Mujahidin “freedom fighters”, lutadores pela liberdade, em 1983, com motivo da invasão soviética do Afeganistão.
Que sentido tem, então, agora ter chegado ao fim da busca?
Como nas más histórias policialescas a resolução do crime ou o mistério pretende ser uma resposta tranquilizadora para a sociedade: justiça foi feita, o criminoso foi castigado por seus crimes, a ordem social foi restabelecida, os cidadãos podem voltar à pacífica mediocridade de suas insignificantes vidas e, sobretudo, podem voltar a dormir tranquilos. Além de todos estes efeitos político-literários, o assassinato de Bin Laden pretende, sobretudo ser construído como um gigantesco espetáculo midiático cujas luzes pretendem deixar-nos todos cegos. Algo sobre isto intuíram Paco Ignácio Taibo II e o Subcomandante Marcos quando escreveram em seu romance obscuro “Mortos Incômodos”:
“Burbank é a capital do cinema pornô dos Estados Unidos, um povoado próximo de Los Angeles, com motéis e empresas triplo-X, transa e transa, filma e filma, viva o capitalismo selvagem. E junto tudo e me digo: - Não estarão estes capanga de Bush e seus amigos fazendo os comunicados de Bin Laden, as mensagens do demônio, em um estúdio pornô em Burbank, Califórnia, que até deserto tem por ali? Não será tudo uma montagem, uma fábrica de sonhos de merda, com um ex-tanqueiro mexicano chamado Juancho como personagem central? Eu, de verdade, não engulo’, me dizia: ‘como vão acreditar?’, mas, por pouco não é bonita a história?”.
E é que quando as coisas vão mal, a “Pentágono Produções” põe em funcionamento sua máquina de sonho (melhor dizer pesadelos?) para tranqüilizar a população civil mediante altas doses de entretenimento imperial-militar. Não se trata de cair em teorias da conspiração, mas não é um pouco suspeito que o anúncio da captura e morte de Bin Laden se faça no Primeiro de Maio, um dia que além de tudo não se celebra nos Estados Unidos? Não é demasiado conveniente que o anúncio da morte do pior dos males se faça no mesmo dia que as forças da OTAN bombardeiam civis e matam um dos filhos de Gadaffi na Líbia?
Podem ser só coincidências, mas o que é inegável é que o aparato midiático militar dos Estados Unidos está espetacularizando o assassinato de Bin Laden com um propósito duplo: esconder, como em "A Carta Roubada", os problemas internos e externos do país e promover entre cidadãos um complexo melancólico agressivo que siga justificando as guerras imperiais pelos recursos do Oriente Médio.
A confusão obscura que produziu o assassinato de Bin Laden tem por objeto, como assinalou Santiago Alba Rico, ocultar tudo o que está ocorrendo no mundo árabe, desde as revoltas na Tunísia, Egito, Síria ou Bahrein à intervenção militar da OTAN; Hillary Clinton teve inclusive a desfaçatez de conectar, em sua aparição, o assassinato de Bin Laden com a luta pela liberdade do povo árabe. Mas além de encobrir e tirar proveito de tudo o que está ocorrendo no Oriente Médio, a novela de Bin Laden tem outro objetivo crucial, ocultar que as coisas em casa vão muito mal. O desemprego segue crescendo, as prisões estão cheias de afro-americanos, latinos e brancos pobres, Obama deportou mais latinos que Bush em seus oito anos de mandato, milhões de pessoas foram despejadas, muitoz mais não têm acesso ao seguro médico e cada vez se torna mais evidente que o neoliberalismo somente pode sobreviver a custa de ser cada vez mais agressivo e de transferir mais bens comuns a mãos privadas: atacar os sindicatos de trabalhadores públicos, destruir as universidades públicas e produzir, definitivamente, mais miséria, desigualdade e exclusão.
Depois dos ataques de 11 de setembro, se tornou muito difícil ter uma conversa sossegada sobre o acontecido ou apresentar objeções à nascente guerra contra o terror, as poucas pessoas que saímos às ruas para protestar contra a guerra no Afeganistão encontramos um ambiente hostil e intimidador. Ainda não tinha caído a segunda torre gêmea quando Peter Jennings, o correspondente da ABC News, advertia que se tratava de um “ato de guerra” e exigia vingança. Desde então a cidadania norte-americana foi submetida sem interrupção a uma chantagem emocional cujo objetivo é instalar na sociedade civil um complexo melancólico agressivo que justifique o programa neo-imperial da oligarquia norte-americana.
Desde o 11 de setembro todos e cada um dos cidadãos dos Estados Unidos foram desafiados pelo Estado a se transformarem em receptáculos das vítimas dos atentados das torres gêmeas. Os mortos não estão em nenhum memorial, estão criptografados em cada um dos cidadãos, e é precisamente porque estão dentro que não podem ser esquecidos nem velados, para defendê-los de seu esquecimento somente resta atuar agressivamente contra aqueles que pretendem colocar em perigo nossa segurança e a das vítimas do 11 de setembro que carregados cá dentro.
Este complexo de medo e agressão serviu não somente para justificar as guerras, mas também produziu inacreditáveis resultados eleitorais para George W. Bush. Por isso, coincidência ou não coincidência, o fantasma dos mortos do 11 de setembro volta a se agitar sobre nossas cabeças, nos interpela outra vez com a euforia e o medo produzidos pelo espetáculo da morte de Bin Laden para que voltemos a nos unir em torno do complexo melancólico-imperial e sua maquinaria de morte. Chega a ser patético escutar Obama apelar para a unidade nacional como durante o 11 de setembro ou na tentativa de assassinato da congressista Gabriel Giffords, agora que a “justiça foi feita”. Que significa unir-se em torno ao assassinato de Bin Laden? Formar uma comunidade afetivo-política em torno de um desaparecido (o corpo foi lançado ao mar como durante a ditadura argentina)? Justificar a tortura (a confissão que supostamente levou ao descobrimento de Obama foi obtida sob tortura em Guantánamo)? Naturalizar a violação da soberania de um país (hoje é o Paquistão amanhã poderia ser a Inglaterra em busca de Assange)? Confundir a justiça com a vingança? Celebrar a morte?
Sim, é certo que muitas pessoas, induzidas pelos fogos de artifício de todos os meios, liberais e conservadores, se lançaram às ruas para celebrar o assassinato de Bin Laden, é certo que os estudantes da Universidade de Ohio se jogaram num lago para celebrar, é certo que Glen Beck, o comentarista conservador da Fox, abriu seu programa com uma banda de música, pediu que fosse exibido o corpo de Bin Laden de cidade em cidade como na Idade Média e derramou uma lágrima enquanto exibia na tela os nomes de todas e cada uma das vítimas do 11 de setembro, mas também é certo que a metade da população se nega a celebrar tanto por cansaço emocional quanto por não aceitarem as conseqüências deste pacto sinistro de morte. Há esperança (???)
Adendos botocudos – (entre parênteses em itálico no texto) e mais:
U'a operação espetacular, que superou em mídia o casamento real e a beatificação do Papa Pop...
O atestado de óbito de Osama substituiu com vantagem a certidão de nascimento de Obama.
Ao contrário do que se alardeia, a operação americana no Paquistão não foi uma vitória contra terrorismo. Quando um Estado se concede licença para matar, se vangloria do uso da tortura para obter resultados, viola a legislação internacional, atropela a soberania alheia, sem dúvida, pratica uma fieira de crimes que alimenta o ciclo do terror.
Isso é o terrorismo de Estado, que quase só os EUA e Israel praticam.
Vergonha... vergonha!
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