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quinta-feira, 26 de maio de 2011

Código florestal: Governo plantou omissão, colheu derrota


Analise de André Lima*, no site do IPAM – Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia

O plantio

O texto aprovado no Plenário da Câmara dos deputados na noite de 24 de maio é o texto dos sonhos da ala mais retrógrada do agronegócio brasileiro. Sucessivos erros do governo levaram ao alargado placar na aprovação da emenda substitutiva global de Plenário nº 186 e à derrota, inclusive, na emenda 164 que desintegra as Áreas de Preservação Permanente já ocupadas e as ainda não desmatadas. Fica evidente que a omissão do governo ao longo de todo processo foi o principal fator do alargado placar desse inesquecível 24 de maio. Explico:

No final de 2009 iniciou-se mais uma (de várias outras tentativas desde 1999) forte movimentação da bancada ruralista para reverter a pressão pela implementação do código florestal (em função do prazo do decreto de infrações ambientais para averbação das reservas legais). Por intermédio de um projeto de lei ruralista de código ambiental cujo autor foi o então presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, Deputado Valdir Collato (PMDB/SC), da base do governo, a discussão do código florestal retomou fôlego na Câmara, senão com o apoio, mas com o total descaso do governo. O governo deu de ombros e não operou para equilibrar as tendências na composição da comissão especial criada para apreciar o referido PL.

Por indicação do governo, o deputado Aldo Rabelo (PCdoB/SP, base do governo) foi nomeado relator da comissão especial, presidida pelo Deputado Moacir Micheleto (PMDB/PR, base do governo) que 10 anos antes já havia recebido o prêmio de deputado motosserra pela Campanha SOS Florestas. Aldo já tinha antecedentes no encaminhamento contrário ao governo em matéria ambiental envolvendo interesses do setor agropecuário (Lei dos Transgênicos).

Em nenhum momento o poder executivo acompanhou de perto seu trabalho, o processo de audiências públicas comandadas por parlamentares da bancada ruralista e na formulação do seu relatório ao longo do 1º semestre de 2010, véspera de eleições. O processo correu solto e disso resultou a aprovação do relatório do deputado Aldo em junho do ano passado na Comissão Especial. A saída do ministro Minc em março de 2010, que até então oferecia resistência pública e até constrangedora para do Presidente Lula às iniciativas ruralistas, e a fase de pré-campanha, talvez tenham ajudado a distanciar o poder executivo desse debate, o que explica, mas não justifica a omissão. Fosse assunto de alta relevância para o governo, certamente isso não teria ocorrido.

Mesmo depois de aprovado um relatório totalmente desequilibrado na Comissão Especial, o governo federal, via interlocutor de alto escalão do próprio Ministério de Meio Ambiente, afirmava que estava tudo sob controle e que tudo seria resolvido no âmbito interno do governo, sem grandes alardes públicos. Em lugar de trabalhar por um novo texto substitutivo mais equilibrado a ser apresentado seja por Aldo, ou até mesmo por outro relator de Plenário menos parcial, o governo insistiu em tentar compor com Aldo até o último minuto do segundo tempo, apesar dos vários sinais concretos de indisposição dele para com as principais propostas de reforma do seu relatório feitas pela Casa Civil e Ministério de Meio Ambiente. Essa estratégia se mostrou suicida quando, após ter negociado com a Casa Civil no dia 11 de maio, o deputado Aldo apresentou em Plenário, na mesma noite, a emenda global 186 que pouco incorporou as preocupações do governo federal, mas manteve na sua essência o tom original de isenções de reserva legal e anistia em áreas de preservação permanente. O que é pior, o relator alterou o texto nos últimos minutos antes de sua apresentação formal descartando alguns pontos importantes negociados com a Casa Civil.

Agravou-se a situação por fim quando o PMDB, na voz de seu líder na Câmara o deputado Henrique Eduardo Alves, o provável próximo Presidente da Câmara dos Deputados, contrariando determinação da Presidente da República, apresentou e defendeu veementemente a emenda 164 que abre uma rodovia imensa para a consolidação de ocupações e para novos desmatamentos em áreas de preservação permanente em todo País. O deputado Eduardo Alves disse, e foi enfático, que não falava na condição de "aliado", mas na condição de "governo", do governo do PT e do PMDB, pois o vice-presidente Michel Temer foi eleito e não nomeado.

Por fim, a defesa atrapalhada do líder do Governo deputado Cândido Vaccarezza com ameaça explicita de veto e enfrentando o parlamento e a oposição de forma desastrosa colocou uma pá de cal no debate na Câmara e deu a derrota ao governo. Portanto, uma sucessão de erros e omissões.

Mas o problema infelizmente não se reduz às atrapalhadas e omissões processuais. Em poucas e objetivas palavras resumo abaixo os principais pontos problemáticos do texto aprovado com sua emenda.

A colheita

Áreas de Preservação Permanente

O artigo 8º, inserido pela Emenda 164, permite que leis estaduais e municipais declarem quaisquer empreendimentos ou atividades de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto e, portanto, possam não somente consolidar ocupações ilegais anteriores a 2008, como também autorizar novas supressões de florestas e outras formas de vegetação nativa em Áreas de Preservação Permanente.

Mais que isso, com a nova redação dada ao artigo 8º pela emenda 164, outras atividades agrosilvopastoris poderão ser consolidadas ou até mesmo regularizadas ainda que os desmatamentos ocorram depois da data de julho de 2008. Se de fato a Presidente da República disse que essa emenda é motivo de vergonha nacional, ela tem toda razão. E contou com todos os votos do PMDB, partido do seu vice-presidente, que votou 99% a favor da emenda, totalizando 72 votos.

Outro problema relevante é a possibilidade de pastoreio extensivo em áreas de preservação permanente em topos do morro, montes, montanhas e serras previsto no artigo 10. Atividade de baixíssima produtividade em área de preservação.

Ao retirar do CONAMA a competência para regulamentar limites e as exceções de uso em Áreas de Preservação Permanente, a proposta além de retroceder revertendo o caminho até aqui trilhado da intensificação democrática e da transparência nos debates de interesse nacional, trará impactos importantes como, por exemplo, os mangues deixam te ser considerados áreas de preservação permanente em toda sua extensão.

Reserva Legal

Toda defesa do relatório do deputado Aldo, inclusive feita pelo próprio PT, se deu sob o argumento de que ele não incentiva novos desmatamentos. Esse talvez seja um dos mais graves equívocos que deve ser reparado no Senado. Não se trata de haver um único dispositivo que libera novos desmatamentos, mas é o conjunto da obra e a leitura integrada de vários dispositivos que nos leva a essa conclusão.

Em vários momentos o relatório prevê a hipótese de consolidação de atividades ilegais em diferentes categorias de áreas de preservação permanente independentemente do tamanho do imóvel e de áreas de reservas legais em imóveis de até quatro módulos fiscais. Essa óbvia e inegável “anistia” em APPs e RL, que como acima demonstramos, vai além das multas e de crimes florestais, mas atinge a própria responsabilidade de recompor as florestas, que por si constituiria argumento suficiente para dizer que haverá estimulo a desmatamento em função do clima de impunidade gerado pela Lei. Mas é pior que isso. O texto traz inúmeros dispositivos que em lugar de restringir ainda mais novos desmatamentos cria mecanismos que flexibilizam e torna menos onerosa a regularização de novos desmatamentos. Vejamos:

O artigo 14 permite que as reservas legais em área de floresta na Amazônia possam ser reduzidas de 80% para até 50% com base nos Zoneamentos ecológico-econômicos (ZEE) para fins de “regularização”, sem estabelecer uma data limite para esse benefício. A lei hoje prevê que esse benefício vale somente para fins de “recomposição” e não para regularização que é mais ampla, envolvendo inclusive novos desmatamentos. Portanto, novos desmatamentos poderão ser beneficiados com a redução da reserva legal como está acontecendo no Mato Grosso, onde o ZEE acaba de ser aprovado e permite expressamente a regularização de desmatamentos até a sua entrada em vigor.

O incentivo aos novos desmatamentos também fica claro ao examinarmos com mais cuidado os artigos 38 e 58 da emenda global 186. O artigo 38 diz que a regularização dos imóveis que hoje não possuem reserva legal poderá se dar “independentemente da adesão ao Programa de Regularização Ambiental(PRA)”. Isso significa que ele pode buscar regularização mesmo tendo desmatado depois de 22 de julho de 2008 ou até mesmo depois da entrada em vigor desta lei. O problema é que essa regularização aos novos desmatamentos pode se dar mediante a recomposição em 20 anos, com 50% de espécies exóticas, ou com regeneração natural ou ainda com compensação florestal, inclusive por áreas localizadas em outros estados da federação, desde que no mesmo bioma. Vale lembrar que a Mata Atlântica, por exemplo, existe em 17 estados do Nordeste ao Sul do país.

Ora, se um proprietário pode se regularizar independentemente do prazo estabelecido para o PRA (julho de 2008), os desmatamentos ocorridos após a entrada em vigor dessa lei poderão ser com base nesse dispositivo (art. 38) regularizados. Essa regularização poderá se dar em até 20 anos, prazo em que deverá recompor 1/10 a cada dois anos. Ou seja, o proprietário-infrator poderá utilizar-se de 9/10 da área pelos primeiros dois anos, 8/10 da área depois de 2 anos, 7 décimos da área desmatada irregularmente depois de 4 anos e assim sucessivamente, auferindo ganhos econômicos com a utilização de áreas desmatadas ilegalmente depois da entrada em vigor dessa lei. O que justifica essa facilidade?

Mais que isso, poderá plantar 50% de espécies exóticas com alto valor econômico nas áreas que estarão em processo de recomposição. Me digam se isso não é um prêmio?! Principalmente porque o desmatamento de área de reserva legal não é crime pela Lei de Crimes e Infrações contra o Meio Ambiente. Outra possibilidade não menos interessante economicamente ao proprietário é continuar utilizando 100% da área desmatada ilegalmente depois da entrada em vigor da Lei mediante a compensação florestal com outra área de floresta no mesmo bioma, mas em outro estado, lá bem longe, onde o preço da terra pode ser bem menos oneroso. Se isso não for um convite aos novos desmatamentos, o que seria? Um artigo explícito e numerado dizendo que novos desmatamentos serão abençoados por Deus e premiados por natureza?

Agrava esse problema no artigo 58 que afirma que o poder público “poderá”, repito, “poderá” embargar novos desmatamentos ilegais, sendo que hoje o embargo é, por força de decreto, obrigatório. Ora, poderá ou deverá?

Portanto, fica claro que há dispositivos que distorcem os mecanismos atuais de proteção das florestas e que incentivam sim novos desmatamentos em função das facilidades que o texto oferece para a sua regularização posterior. Desmatar ilegalmente vai compensar economicamente.

Além disso, a anistia de recomposição de reserva legal em imóveis com até 4 módulos fiscais poderá atingir de 30 a 50 milhões de hectares, de acordo com cálculos do IPEA, entre áreas que deixarão de ser recompostas e áreas submetidas à pressão do desmatamento pelo tratamento assimétrico dado entre quem desmatou ilegalmente e quem manteve suas florestas.

Há, por fim, vários outros problemas no relatório que precisam ser reparados no Senado (veja mais aqui e aqui), mas somente os acima apontados seriam suficientes para o governo ter sido contra a emenda global 186, antes da votação da emenda 164 e consequentemente ter sido muito mais incisivo e ter operado com toda sua força junto a sua bancada. Vale lembrar que até mesmo o PT encaminhou voto favorável ao relatório apesar dos problemas acima apontados e conhecidos do líder deputado Paulo Teixeira.

Vejamos se o governo e que governo vai tomar as rédeas do debate no Senado.

Antes do veto, o governo precisa fazer a sua parte de forma mais competente, inclusive para valorizá-lo politicamente, pois ao final ainda terá que sustentá-lo no Congresso Nacional caso os ruralistas ainda tentem derrubá-lo.

(*)André Lima é advogado, Consultor Jurídico da Fundação SOS Mata Atlântica e do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia -IPAM, Mestre em Política e Gestão Ambiental

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