Carlos Amorim em seu blog
Às oito horas da manhã do domingo 28 de novembro – uma data histórica -, três mil policiais, soldados da Brigada Paraquedista do Exército, além de fuzileiros navais com 15 blindados leves, mais helicópteros de combate, invadiram o quartel-general do Comando Vermelho: o Morro do Alemão, no centro de um complexo de 14 favelas e quase meio milhão de moradores. Até as cinco horas da tarde, quando a ocupação se completava, a força de ocupação ainda se impressionava com a calma aparente no bairro. Esperava enfrentar 600 traficantes fortemente armados, mas esse grande confronto, que resultaria em dezenas de mortos, simplesmente não aconteceu.
Utilizando a velha tática das guerrilhas, os bandidos se dispersaram e sumiram em meio à população. Deixaram para trás toneladas de maconha e cocaína, armas de guerra, dinheiro (60 mil dólares só numa mochila apreendida com um garoto) e as casas luxuosas dos gerentes do tráfico. Quase uma centena de pessoas foram presas, a maioria inocentes. A ocupação do Morro do Alemão encerra uma semana de violência desmedida no Rio de Janeiro. No domingo anterior, bandos armados começaram a queimar ônibus e carros por toda a cidade, num total de quase 100 veículos, semeando o pânico. No enfrentamento entre os criminosos e a polícia, 36 pessoas morreram e não há conta do número de feridos.
A batalha – e este é apenas um episódio numa guerra que levará décadas – produziu três resultados inéditos e surpreendentes: a reação solidária de todos os níveis de governo, com o governador aceitando a intervenção de tropas federais; a resposta indignada da população carioca, que colaborou com a força-tarefa inclusive nas favelas; a unificação das facções criminosas. A pergunta que se coloca é a seguinte: por que os bandidos tomaram a iniciativa do confronto, com a queima dos veículos, provocando abertamente o poder público? A explicação oficial é a de que eles estavam perdendo territórios para as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Difícil de acreditar, porque essas unidades existem apenas em 12 (agora 13) das mais de mil favelas cariocas – uma gota no oceano. Outra explicação: os bandidos estariam reagindo contra a transferência de suas lideranças para presídios de segurança em outros estados. Essa pode ser. Mas, como eles foram transferidos há muito tempo, soa estranho. A minha tese é a de que os ataques visavam criar uma moeda de troca para uma trégua na Copa do Mundo e nas Olimpíadas.
Todas as vezes em que o crime organizado promoveu esses levantes armados – e foram várias -, havia sempre uma pauta de reivindicações por trás dos atentados. Foi assim com os ataques do CV nos anos 1980 e 1990; com o PCC paulista em 2001, 2003 e 2006; com a Organização Plataforma Armada (OPA), em Salvador, em 2008. Quase sempre as reivindicações se destinavam a melhorar as condições carcerárias, especialmente porque tais facções agem de dentro para fora das prisões. Toda a chefia desses grupos está presa – e do lado de fora das celas os novos comandantes são da terceira geração do tráfico de drogas, jovens e cruéis, que não têm o mesmo senso de convivência comunitária que seus antigos líderes pregavam.
Esses movimentos reivindicatórios sempre foram mantidos em segredo pelos governantes, tratados em gabinetes, distantes da imprensa e da opinião pública. E quase sempre resultaram em acordos benéficos para o crime. Um exemplo escandaloso foi o de uma comissão do governo paulista que foi até o presídio de Presidente Bernardes se encontrar com o suposto chefe do PCC, Marcos Herbas Camacho, o Marcola, em plena onda de atentados de 2006. Vou repetir: muitas das exigências das facções criminosas (visitas íntimas, aumento do banho de sol, fim dos espancamentos e dos castigos, melhoria da comida, transferência de presos doentes) foram atendidas, porque esses confrontos cobram alto preço político, particularmente com as rebeliões prisionais banhadas a sangue, como no caso do Carandiru, o mais emblemático de todos.
E agora, neste episódio do Rio de Janeiro, silêncio total as autoridades e da mídia. O governador Sérgio Cabral tomou a atitude corajosa de partir para cima do crime organizado. Alguns anos atrás, chegou a admitir que o Rio “vive um estado de guerra”. E Cabral foi tão longe, que já não tem caminho de volta. A briga vai ser feia mesmo. Aliás, comente-se que a mídia aderiu completamente, sem qualquer tipo de questionamento. A capa da Veja, com foto de um soldado do Bope apontando uma arma, dizia: “o dia em que o Brasil começou a vencer o crime”. Parece mais um desejo do que uma realidade.
O Brasil, que vive uma democracia avançada e de plenas liberdades, com um partido popular no poder, agora se equiparou ao México, onde o narcotráfico está vencendo a guerra, e à Colômbia, onde há uma guerra civil que já dura 56 anos e que resultou até agora em quase um milhão de mortos. Lamentavelmente, adentramos o perigoso pântano de uma guerra urbana de verdade. (Ver o artigo “As UPPs e o Estado de Direito”, neste site.) Num dos meus livros, escrevi: “não quero ver a minha cidade ocupada por fuzileiros navais e paraquedistas – assim como não quero vê-la ocupada pelos meninos do tráfico”. Poucos anos depois, o pesadelo chegou. (E o que aconteceria se o PCC aderisse ao levante?)
Outra questão que me preocupa: comemorando 25 anos de liberdades, podemos conviver com ocupações militares, com pequenos Estados de Sítio? É isso que a população quer? Certamente, é isso que a classe média, a maior vítima da violência, deseja – assim como é o mesmo que deseja a elite consumidora de drogas e cínica. Vamos também erguer uma força-tarefa para pegar os bandidos da Esplanada dos Ministérios e da Avenida Paulista? E os traficantes da orla de luxo do Rio, do Guarujá, Floripa, Vitória ou Salvador? Aparentemente, o braço armado do Estado vai continuar caindo sobre as “classes perigosas”, os pobres em geral.
Quem acha que a batalha do Alemão vai acabar com o tráfico ou o crime, está enganado. O Comando Vermelho ocupava aquela área há quase 30 anos, inclusive com hotéis para receber seus fornecedores estrangeiros e seus sócios do PCC. Quanto tempo os militares ficarão por lá? Nossos governantes nem sabem direito o que é crime organizado. Os chefes do tráfico de drogas e de armas, da pirataria e do contrabando, não moram em favelas e não serão presos. O tráfico no Rio movimenta 100 toneladas de drogas por ano, com um faturamento de aproximadamente 700 milhões de reais. Quem vocês acham que são os agentes financeiros de toda essa grana, só no Rio?
Por que o governador Sérgio Cabral não aproveitou a ofensiva contra o crime organizado para atacar também as milícias, bandos armados formados por policiais e ex-policiais, que ocupam quase 100 favelas na cidade? Esses grupos paramilitares agem como forças auxiliares da polícia. A mais famosa dessas milícias – a “Liga da Justiça”, da zona oeste – é comandada por um deputado e uma vereadora – pelo menos é isso o que garante o Ministério Público e a imprensa carioca. Mais uma: porque não aproveitou o momento de mobilização para anunciar um plano de reforma do aparelho policial e combate à corrupção entre as forças da lei? Estava na hora de fazer tudo isso? Não! Essa hora já passou há muito tempo! Depois do calor das emoções, tudo isso escorrega para o silêncio.
Ou seja: dispersada a pólvora e a fumaça, vai começar tudo de novo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário