Por Hélcio Mello, no Fazendo Média
Ao ler o artigo de Gustavo Ioschpe entitulado “Mudar os professores ou mudar de professores” na Veja de 02/06/2010, finalmente constato que vivemos a era dos “homo economicus”. Esta era em que o fascinío pelos números do “custo/benefício” econômico supera (e não auxilia ou não se soma a) qualquer outra explicação complexa que utilize variáveis psicológicas, pedagógicas, sociais, históricas, enfim, “humanas”. Não desmerecendo a análise econômica (que por si só é incrivelmente complexa) e também não desvinculando a Economia do rol das ciências “humanas” (apesar do desejo dos economistas e visto que – e não nos esqueçamos: a própria matemática é uma linguagem humana para desvendar a realidade, não se confundindo com a própria realidade).
Esforço-me no objetivo de compreender esse processo social não facilmente percebido pelos “peixes de aquário”: nós, cidadãos comuns. Processo que se traduz em realidade quando, por exemplo, é escolhida uma economista paulista para cuidar da educação carioca ou quando a revista Veja escolhe um economista filho de banqueiro, graduado e pós-graduado no exterior para redigir sobre educação nacional. Nada contra paulistas! Muito menos, contra economistas milionários! Escrevo um texto livre de preconceitos! Acredito que a secretária pode realizar um bom secretariado. Mais ainda: acredito que alguém que nunca entrou numa sala de aula no Brasil (ou que escreva melhor em inglês que na língua nativa) tem o direito de escrever um artigo para a Veja; e a Veja, de publicá-lo. A busca pela compreensão desse processo levou-me a uma resposta “natural” de tão óbvia, a democracia. Salve a democracia! Um sentimento que me impele a escrever: a esperança que a voz dos professores seja ouvida e publicada também pela mesma Veja, com o mesmo peso e medida do artigo do já referido autor.
Avisto o espectro do “homo economicus”. Sintetizando: torna-se triste encontrar artigos na Veja cuja explicação do real baseia-se tão e somente numa análise econômica simplista. Vejamos o argumento do autor: negar a existência da relação entre aprendizagem e a motivação do professorado gerada pelo pagamento de salários dignos. Para isso, baseia-se em somente um documento: uma pesquisa da Unesco publicada no livro O Perfil dos Professores Brasileiros, segundo a qual “apenas 12% se dizem insatisfeitos com a carreira (…), 48% estava mais satisfeita no momento da pesquisa do que no início de sua carreira e só 11% dos entrevistados gostariam de se dedicar a outra profissão no futuro próximo”. Assim, conclui que os professores já se encontram satisfeitos e motivados, sem, contudo, alterar o nível estatístico de aprendizagem.
O problema de se lidar com dados, com números, está na coleta e na interpretação deles. Em nenhum momento foi apontado quem são esses professores: do privado, do público, de ambos? De quais Estados? De quais municípios? De quais bairros? Aleatórios? Outra coisa: qual é o conceito de “satisfação” utilizado pelo autor? Puramente econômica? Abrangeria a área pessoal? Quiçá, emotiva? É extremamente vago quanto a isso e conclui a seu bel prazer. Eu, por exemplo, poderia muito bem concluir, com os mesmos dados, que os 48% estão muito satisfeitos por representarem algo de positivo na vida individual do aluno e na vida do todo social e, por isso, não se vêem em outra profissão, como os 11%. E ainda, note bem, o autor usou o mesmo tratamento para duas variáveis distintas; “estar mais satisfeito” (a dos 48%) e “as dos que gostariam de ter outra profissão” (a dos 11%). É possível estar plenamente satisfeito a nível profissional com o ofício e estar infeliz a nível financeiro com o mesmo.
Ainda tenta fundamentar o seu argumento no fato de que “a partir da década de 90, ocorreu um aumento substancial de salário nas regiões mais pobres do país através do Fundef, porém, não houve melhoria na qualidade de educação. De fato, ela piorou: o Saeb, teste do MEC para aferir a qualidade do ensino básico, mostra que em 2007 estávamos pior que em 1995.” Porém, um fato omitido ou esquecido pelo autor do artigo é que uma onda, ou melhor, uma verdadeira tsunami de pessoas que estavam abaixo do nível mínimo de dignidade social foi integrada aos projetos sociais dos governos Lula que utilizam o espaço físico e os serviços educacionais das escolas e dos professores públicos. Ou seja, não há meios de se comparar o alunado de 1995 com o de 2007. Foram incorporadas milhões de crianças e adolescentes de famílias das classes D e E com inúmeras, diferentes e incrivelmente mais profundas necessidades sociais que as existentes em 1995, ainda no primeiro ano do primeiro governo FHC. Professores e a escola pública tão e somente não são a panacéia universal para o desespero social. Usar esse argumento para basear a argumentação de que um professor bem remunerado não é um fator importante para melhorar a aprendizagem é uma grande covardia.
Outra grande covardia é o uso na matéria de uma foto de uma aluna dormindo sobre um livro numa sala de aula com a seguinte insinuante legenda: “Quem vai acordá-la?”. Posso imaginar uma longa lista de motivos para ela estar dormindo. O professor pode com certeza estar entre esses motivos, mas não é o único, como pretende subjetivamente a matéria. Minha lista pode ir desde o mal-estar, passando pela falta de limites familiares com os horários de sono, o trabalho infantil, a destruição da relação familiar de respeito e atenção, traumas, falta de estrutura física da sala de aula que propicie um aprendizado mais leve e antenado com as novas tendências tecnológicas, etc…
Poderia tecer uma série de outros problemas no artigo. Citarei rapidamente apenas mais dois para, enfim, concluir. O autor, em certo momento, usa de forma errada o conceito de evolução de Charles Darwin, confundindo- o com um conceito mesclado de uma pretensa evolução social rumo a algum tipo de progresso social. Ocorre quando o autor relaciona a evolução biológica do homem (a capacidade de linguagem) com a criação da democracia (uma invenção social). É tolerável que um cidadão de educação média confunda e misture os conceitos de evolução e progresso (coisas tão diferentes quanto feijão e chocolate!), mas vindo de um economista com formação internacional. .. E o autor não usa essa “mistura”de forma metafórica; usa-a cientificamente. Bem… esse uso conceitual “misturado” não é mais seriamente utilizado no meio acadêmico desde os finais do XIX. É algo que beira o darwinismo social. Uma visão ultra-iluminista da realidade. E ainda, quando afirma que esse tipo de progresso (e aí não dá pra saber se é a capacidade de fala ou a de democracia ou de ambas) se deu através de processos evolutivos, e não revolucionários. O autor deve lembrar que o conceito de evolução de Darwin não necessariamente é positivo para o ser mutante e que as mutações são na verdade “revoluções” sim, visto que tais mutantes se diferenciam dos demais entes da mesma espécie. Uma “revolução” no DNA.
Diagnosticar o segundo problema não requer grande energia intelectual: “Centenas de estudos, feitos ao longo de décadas, indicam que existem muitos caminhos baratos ou gratuitos para melhorar o aprendizado de nossas crianças: a prescrição e correção de dever de casa, a utilização de testes constantes para medir a aprendizagem e corrigir erros, o uso de bons livros didáticos, o conhecimento aprofundado do professor sobre a matéria que ensina, a abolição de tarefas mecânicas, como a cópia de material de quadro negro, (…). A existência dessas alternativas nos impõe a obrigação de tentá-las, antes de partir para soluções caras e incertas” (leia-se: maiores salários para professores) .
Diagnóstico: o autor nunca entrou numa sala de aula da rede pública com infiltração; mofo; chão alagado; suja; cadeiras, janelas, portas e ventiladores quebrados; elétrica em curto; um calor infernal; bebedouros e banheiros sujos e quebrados; um quadro negro, giz e, talvez uma tv de 20 polegadas com um dvd para uma turma de 40 alunos que receberam e recebem uma educação cotidiana (através do meio familiar, de sua vizinhança e da mídia) que desvaloriza qualquer empreendimento sério na sua educação (no sentido amplo e restrito da palavra), valorizando por vezes a pornografia, a violência e o consumo – vide os filmes da tv e as manchetes dos jornais de massa. O autor nunca entrou nessas nossas salas de aula para averiguar que já procedemos cotidianamente, há décadas, aquilo que ele chama de “muitos caminhos baratos ou gratuitos para melhorar o aprendizado de nossas crianças”. O que não ocorre, há décadas, é aquilo que ousou chamar de “soluções caras e incertas” que dignificariam o trabalho do profissional de educação – da merendeira, passando pelo porteiro e chegando ao professor. Vale lembrar que a remuneração total de um professor 20h/aula do Estado do RJ em início de carreira gira em torno de 700 reais e a de um do Município do RJ, em torno de 1300 reais.
Conclusão: Achar que melhorar tão e somente o salário do professor acarretará diretamente a melhoria na aprendizagem é ingenuidade. Culpar unicamente o professor por receber bem e não conseguir ser um “soldado da cidadania” e\ou alterar o quadro de desespero social e aprendizagem é covardia. Culpar o professor, recebendo um salário indigno, por ele não conseguir ser um “soldado da cidadania” pelo simples fato de não se perceber um cidadão pleno, é criminalizá-lo.
Nunca nadar com o “cardume” foi tão solitário como na época do “homo economicus”. Ser levado pela correnteza a concordar com as análises econômicas simplistas (maqueadas com o discurso de objetivismo e pragmatismo) não por imposição de um Estado, mas, antes, pelo discurso homogeneizado (conscientemente ou não) da sociedade globalizada de mercado: aquele supostamente democrático, porém, alinhado a interesses produtivos (ou empresariais, como queira) e reproduzido pela grande mídia.
Enquanto o autor se aquecia em algum café parisiense; enquanto ele entrava em contato com seus frios números, saboreando um croissant de damasco com brie ao enviar seu artigo para a revista, eu encontrava-me no calor da sala de aula convivendo com o calor de meus alunos:
Helena* veio me abraçar, como de costume. Ela não conseguia aprender por não ter ingerido proteína e calorias suficientes pelo cordão umbilical maternal durante a sua gestação em algum canto do Ceará. E depois dela também. Helena teve seu desenvolvimento cerebral comprometido. Ainda assim, poderia aprender, salvo motivo de estar sempre muito cansada devido a sua condição retirante e escrava infantil na casa de sua “tia” carioca.
Senti falta de Brenda* na sala. Ela largou o colégio: estava grávida. Grávida pela segunda vez. Grávida de seu padrasto. Pela segunda vez, seria mãe e irmã de seu filho.
O Diogenes* veio sorrindo me cumprimentar. Gosto dele! Rechochudo, muito carinhoso, carente e com roupas sempre sujas e rasgadas. Ele trabalha: vende picolé na praça. Sustenta a sua família. Sua mãe morreu com Aids. Não chegou a conhecê-la direito. Deve ter vagas lembranças de algum afago. Tem algum grau brando de retardo. Veio contente me dizer que “D” com “A” faz o som de “DÁ”. Ele tem 12 anos.
A mãe do Robson* era sempre zoada pelos colegas: “Maluca! Maluca!”, ouvia-se. Sua mãe desenvolveu uma patologia psiquiátrica, ou seja, é doida. Fala sozinha, vê vultos escuta vozes, grita e outras coisas comuns aos dementes! Robson foi criado por sua mãe num minúsculo barraco de um cômodo de paredes de papelão e chão de terra batida no alto do morro. Devido à criação e ao contato com o mundo através da mãe, Robson desenvolveu uma patologia social: não é biologicamente doido (segundo o especialista médico), mas comporta-se com tal. Além disso, é analfabeto. Está no 6o ano. Não me pergunte como! Após apartar a briga e acalmá-lo pude retomar a chamada.
Karina* acha que será modelo. Está muito preocupada em ouvir seu MP3 escondido para prestar atenção na aula. O MP3 veio pra escola; já seu caderno, não.
Romenique* – havia tomado seu o boné Nike na aula passada, era tempo de devolvê-lo. Ao procurá-lo no armário e pensando tê-lo perdido, alguns almofadinhas da classe média empobrecida começaram a zoação. Romenique chorou feito bebê. Aquilo me angustiou. Mas, ao encontrá-lo escondido entre os livros, assisti a uma “festinha de cachorro quando chega o dono”. Imagino como deve ser acordar num barraco de terra batida, olhar pro boné da Nike e sentir que sou algo nessa vida, que sou alguém.
André* está dormindo sobre o caderno. Anda muito cansado: é explorado como funcionário “fantasma” (sem carteira e direitos trabalhistas) em uma grande rede de supermercados e, à noite, é fogueteiro do tráfico.
Vários tomaram falta, pois o exército de 40 não dava trégua: um barulho infernal – risadas, gargalhadas, xingamentos, gritos. Retomei a chamada rouco, depois de impor ordem. Em vão, agora é no imenso corredor. Algo ocorreu. Uma imensa algazarra. Incontrolável. Uma escola gigantesca sem inspetores. Motivo: não há mais inspetores no quadro do funcionalismo. Argumento da prefeitura:é dever do professor a impor a ordem no seu ambiente de trabalho. Verdadeiro motivo: corte de custos com pessoal ou, no linguajar eufemístico economês, racionalização do sistema produtivo. Dúvida: qual o motivo que leva escolas privadas sérias, cujo objetivo primordial é o lucro, a ter um elevado número de inspetores por unidade escolar?
Tento continuar. Irineide* é inteligente, porém, rebelde. Tem traumas. Faz tratamento psicológico. Foi espancada pelo pai recentemente. Achamos que a mãe encobre um estupro paterno. Irineide faltou, mas sua falta é justificada. Está em isolamento tratando-se de tuberculose. Seu primo morreu recentemente desse mal. A tuberculose afeta principalmente os maus nutridos e ou que vivem em ambientes com péssimas condições de higiene.
Maicon* é magro e cabisbaixo. Mal escuto o seu “Presente!”. Ele adotou essa postura passiva depois de assistir seu pai ser humilhado, agredido e preso pela polícia.
Robinho* veio dançar e cantar uma rima de funk pra mim. Ele é descolado. Gosto dele. Bom menino. Porém, está ficando meio violento com os colegas. A mãe diz que é a influência do tráfico: seu barraco fica do lado da boca e ela tem que vigiá-lo, pois, volta e meia, ele foge para ficar com os seus amigos armados. São os seus ídolos do momento. Lembro que o meu era o Homem-Aranha.
Matheus* e tantos outros da classe média empobrecida não têm atenção e acompanhamento familiar. São maneiros, mas preferem a bola ao caderno. Sonham que terão a sorte do Romário. Lembro que eu também preferia a bola ao caderno, mas meus pais me direcionavam e exigiam estudo.
São tantos esses alunos que viram números frios nas mãos desse economista.. . São tantos professores que viram números frios nas mãos desse economista.. . E ele ainda afirma em seu artigo que não conhece quem não possa aprender e quem não consiga ensinar.
Convido Gustavo Ioschpe a conhecer-nos verdadeiramente.
* Nomes fictícios de alunos fictícios. Reproduzo situações similares que coleciono na memória a partir de experiências vividas como professor da rede privada e pública. Situações que são amplamente capazes de ainda ocorrerem no cotidiano escolar.
Já fui professor-substituto de uma faculdade particular, então algumas nuances dessa realidade não me são estranhas, embora num cenário muito mais favorável que o descrito acima (faculdade; Joinville/SC).
ResponderExcluirProfessor é um pouco como policial; ganha pouco, é limitado no raio de ação, mas as pessoas esperam que eles resolvam problemas muito complexos, do qual eles são apenas pontas-de-lança.
Para abandonar a analogia com segurança pública ainda neste parágrafo, a gente tem de admitir que o brasileiro é um povo violento. É uma questão cultural agravada pela social. O que um simples soldado da PM pode fazer contra isso?
Se os pais de TODAS as classes sociais usam escola como "estacionamento de criança", e às vezes cobram o resultado final "prometido" pela escola (passar de ano, certificado, capacitação para vestibular ou mercado de trabalho, e mesmo o vago "estudar para melhorar de vida") sem ajudar no PROCESSO, o que fazer?
É certo que professor ganha pouco, foi exatamente por isso que parei de dar aula. Isto cria uma "seleção adversa" onde, com honrosas exceções, sobram apenas os maus professores.
Mas o fato é que simplesmente dobrar o salário amanhã também não vai resolver o problema, porque a seleção adversa já aconteceu. Valorização de carreira também é um processo, que infelizmente nenhuma das partes quer enfrentar.