A misteriosa lista que chacoalhou o sigilo suíço
David Gauthier-Villars e Deborah Ball, The Wall Street Journal, de Nice |
publicado pelo Valor Econômico - aqui |
Os e-mails anônimos tinham um assunto irresistível: "Evasão fiscal, lista de clientes disponível". As mensagens, enviadas há dois anos para autoridades por toda a Europa, faziam uma afirmação audaciosa: o remetente poderia fornecer uma longa lista de clientes de um private bank na Suíça, além de acesso aos sistemas de computadores dele. Os e-mails foram enviados para a polícia secreta alemã, para a polícia francesa e para autoridades britânicas. Os e-mails partiram dos computadores de Hervé Falciani e Georgina Mikhael, funcionários do HSBC, dizem pessoas a par do assunto. A empreitada colocou os dois no centro de uma controvérsia sobre se os governos devem usar informação obtida por meios duvidosos para processar sonegadores. O HSBC alega que Falciani comprou milhares de registros de clientes ricos do seu braço de private banking. As autoridades suíças estão investigando se Falciani roubou arquivos bancários e violou leis de sigilo bancário. Falciani, 38, um engenheiro de computação franco-italiano, e Georgina Mikhael, 35, embarcaram numa odisseia internacional para oferecer os dados a governos e outros bancos na Europa e no Oriente Médio, de acordo com pessoas a par das investigações. Para fazer isso, alegam as fontes, os dois criaram uma empresa virtual, e Falciani usou um pseudônimo. Ele admite que tinha os dados e confirma ter entrado em contato com os governos. Mas tanto ele quanto Mikhael negam que tenham infringido qualquer lei. Os e-mails enviados relativos aos dados não pediam dinheiro. Ele diz que seu objetivo não era ganhar com as informações, mas sim expor o sigilo das práticas bancárias. "Eu não sou um Robin Hood. Eu não sou um mercenário", disse Falciani ao "Wall Street Journal". "Eu agi como um cidadão." Seja como for, o plano de Falciani chacoalhou o mundo bancário. Cópias de dados do HSBC acabaram nas mãos de autoridades fiscais francesas, que agora as estão utilizando para perseguir supostos sonegadores de impostos que têm dinheiro guardado na Suíça. Os franceses dizem que eles não pagaram pela informação, que inclui nomes e detalhes das contas bancárias de milhares de clientes de 180 países. Os franceses obtiveram a lista quando a polícia fez uma batida na casa de Falciani no sul da França, há 18 meses, a pedido de autoridades suíças, que tinham iniciada uma investigação sobre as alegações de violação de sigilo bancário. A França mandou cópias dos dados para a Suíça, mas manteve os documentos originais, para ir atrás de possíveis sonegadores. Falciani, que permanece na França, nega alegações preliminares feitas às autoridades suíças de violação de sigilo bancário e roubo de arquivos. Mikhael está sendo investigada com base nas mesmas alegações preliminares, dizem promotores suíços. Ela nega as acusações. As autoridades francesas não estão investigando nenhum dos dois. A Suíça se opõe vigorosamente ao uso das informações do HSBC por autoridades estrangeiras com o objetivo de perseguir infratores fiscais e já advertiu que não vai cooperar com nenhuma investigação feita a partir do que considera arquivo roubado. Um porta-voz do HSBC disse que o banco não faria comentários sobre o uso dos dados por estrangeiros. A França informou que usaria os dados para buscar sonegadores. "Nós obtivemos esses dados de forma legal", disse o então ministro do Orçamento francês, Eric Woerth, em fevereiro. "A França não está em risco por fraude, os sonegadores estão." E agora é o governo francês que está disponibilizando os dados, prometendo entregá-los a outros governos que queiram encontrar sonegadores. Em junho, as autoridades fiscais da Espanha disseram que receberam da França uma parte dos dados do HSBC e começaram a examiná-los. Em maio, autoridades italianas disseram que receberam dos franceses detalhes sobre cerca de 7.000 correntistas italianos, envolvendo um patrimônio de perto de US$ 7 bilhões, e agora estão peneirando as informações. O caso do HSBC é alarmante para o setor bancário da Suíça, que atende a clientes internacionais e movimenta US$ 2 trilhões, por seu tamanho e escopo. As leis de sigilo bancário da Suíça datam de 1934, quando o país tornou a abertura de dados bancários um crime. "Se os governos estão no mercado de compra de dados ilegais, isso muda o mundo", disse o presidente do UBS, Oswald Grubel. Em um outro caso, também este ano, a Alemanha comprou arquivos roubados de contas em bancos suíços de um funcionário do banco. Não se sabe que dados foram comprados. Há dois anos, a Alemanha pagou € 4,2 milhões (US$ 5,3 milhões) a um outro funcionário de banco para comprar dados roubados de uma instituição financeira de Liechtenstein com o objetivo de perseguir sonegadores. Falciani tinha 28 anos quando começou a trabalhar para o braço de private banking do HSBC em Mônaco, sua cidade natal, em 2000. Ele tinha um diploma de programador de computadores e desenvolveu o software de segurança do banco. Ele foi promovido diversas vezes e, em 2006, foi transferido para a sede de private banking do HSBC, em Genebra, para melhorar o sistema de banco de dados e a segurança. De acordo com o HSBC e com pessoas a par das investigações, foi por volta dessa época que Falciani copiou milhares de dados em seus arquivos pessoais e começou a estudar formas de ganhar dinheiro com as informações. Falciani disse que, em Mônaco e em Genebra, ele copiou dados em computadores pessoais e servidores remotos como parte de sua rotina de trabalho, basicamente para ter um backup. Ele nega que tenha considerado vender ou tentado vender as informações. O HSBC informa que a política do banco proíbe que os funcionários armazenem informações de clientes em computadores pessoais. No começo de 2007, Falciani passou a se aconselhar com especialistas sobre como criar uma empresa para vender dados de clientes bancários, de acordo com pessoas que foram procuradas por ele. Durante esses encontros, Falciani alegou que os dados tinham vindo de sua busca em fontes abertas e públicas, disseram as pessoas. "Ainda assim, ele disse que precisava de ajuda para entender se os dados eram legais", disse Guillaume Brachet, consultor fiscal de Mônaco que lidou com o pedido feito por Falciani. "Cada vez que eu lhe perguntava onde ele tinha conseguido as informações, ele ficava nervoso e eu não conseguia entender as explicações." Falciani diz que ele e Brachet devem ter tido um "mal-entendido", porque "meu plano não era criar uma empresa". Falciani disse que o objetivo dele era expor as falhas de segurança do banco, que na opinião dele eram prejudiciais aos clientes e ao governo. Falciani diz que, em 2006, alertou os seus chefes no HSBC sobre as falhas no armazenamento de dados que poderiam afetar a confidencialidade dos clientes, mas ninguém ouviu. Representantes do HSBC dizem que não encontraram tais alertas feitos por Falciani. Por volta daquela época, Mikhael, uma colega do HSBC, entrou na história. Programadora de computadores franco-libanesa, ela foi trabalhar para o HSBC em Genebra com um contrato temporário em 2006, mas não tinha acesso a informações sensíveis, diz a empresa. Logo depois de chegar ao banco, Mikhael e Falciani, que era casado, começaram uma relação amorosa, que já terminou, conforme os respectivos advogados. O casal criou a Palorva, uma empresa virtual que tinha uma logomarca de uma pirâmide invertida e um site com o seguinte slogan: "Negócio é a arte de extrair dinheiro do bolso dos outrtros sem usar violência." Os dois tinham cartões de negócios que apresentavam Mikhael como gerente de relações públicas e Falciani como gerente de vendas, mas com o pseudônimo de "Ruben Al-Chidiack". O site alegava que podia ajudar os bancos a conseguir novos clientes ricos usando bancos de dados públicos. Em fevereiro de 2008, Falciani e Mikhael voaram para o Líbano, onde, de acordo com seus advogados, se encontraram com representantes de Beirute de cinco bancos: BNP Paribas, Société Générale de Banque au Liban, Blom Bank, Audi Bank e Byblos Bank. Segundo executivos dos bancos a par das reuniões, Falciani, que ainda era funcionário do HSBC, se identificou como Ruben Al-Chidiack e fez uma apresentação rápida. Ele não respondeu a perguntas sobre como tinha obtido os dados que oferecia vender, disseram as pessoas. Falciani, na entrevista ao "WSJ", disse que a ideia de oferecer os dados para vender foi apenas um disfarce. Ele disse que estava agindo a pedido de um serviço estrangeiro de inteligência - que ele se nega a revelar. Ele diz que sua missão era identificar os possíveis inimigos dos clientes do HSBC, dentro ou fora do banco. "Quando fomos ao Líbano eu estava numa missão", disse ele. Por meio de seu advogado, Thierry Montgermont, Mikhael disse que não sabe como Falciani conseguiu os dados que mostrou em Beirute. Mikhael criou e registrou o site Palorva, disse seu advogado. Ela achava que estava tarabalhando num projeto independente durante uma viagem ao Líbano, disse seu advogado. Após uma semana no Líbano, Falciani e Mikhael voltaram para Genebra. Em março de 2008, eles aparentemente mudaram de direcionamento e começaram a mandar e-mails anônimos para governos europeus, segundo pessoas a par da investigação suíça. A mensagem enviada ao serviço secreto alemão, Bundesnachrichtendienst, foi assinada por Ruben Al-Chidiack e alegava ter acesso a uma lista com 127.311 correntistas, com "todos os detalhes dos clientes do HSBC Private Bank SA". Falciani disse que abordou "vários" serviços secretos como parte de sua tentativa de expor falhas de segurança nos sistemas de informática dos bancos. Ele disse que instruiu Mikhael a contatar a Alemanha e o Reino Unido. Por meio de seu advogado, Mikhael nega ter enviado mensagens para governos estrangeiros, alegando que Falciani geralmente usava o computador dela. As autoridades britânicas disseram que não encontraram registros do recebimento de e-mails envolvendo dados do HSBC. As autoridades alemãs não quiseram comentar. Mas a França se interessou por Falciani. Em 2008, ele diz que se reuniu várias vezes com autoridades francesas, incluindo um psicólogo que avaliou sua personalidade. Ele disse que forneceu os documentos para ajudar a estabelecer que era "uma fonte confiável". Após investigar o histórico de Falciani, autoridades francesas disseram que a polícia o direcionou para a Direção Nacional de Investigações Fiscais, ou DNEF na sigla em francês, o principal órgão de investigações financeiras do país. Os investigadores do DNEF entenderam que Falciani poderia levá-los a um número enorme de dados financeiros que a França poderia usar para processar sonegadores, disseram as autoridades. Mas o DNEF enfrentou um obstáculo judicial: como usar os dados do HSBC sem enfurecer a Suíça? Uma solução acabou surgindo para os franceses. Uma das agências em Beirute que Falciani e Mikhael tinham visitado divulgou um alerta de atividades suspeitas num site da Associação Suíça de Banqueiros. O comunicado informou que alguém estava tentando vender "dados sobre clientes de vários bancos suíços". A Polícia Federal da Suíça, que monitora o site, abriu uma investigação e logo chegou a Mikhael, que tinha viajado ao Líbano sob sua verdadeira identidade. Na manhã de 22 de dezembro de 2008, pouco depois de avisar ao HSBC que planejava encerrar seu contrato com o banco e voltar ao Líbano, a polícia da Suíça a deteve para interrogatório. Mikhael desmascarou Falciani na mesma hora e revelou que ele era o misterioso Al-Chidiack, disse o advogado dela. Mais tarde, naquele dia, a polícia da Suíça algemou Falciani em seu escritório no HSBC, confiscou seu computador do trabalho e fez buscas em sua casa em Genebra. Num armário perto da cama, encontraram pedaços de papel com os endereços de contatos das polícias da França e da Alemanha, segundo pessoas familiarizadas com a investigação suíça. Depois de ser interrogado por horas, Falciani foi libertado com a condição de que voltaria no dia seguinte para responder a mais perguntas. Em vez disso, ele alugou um carro e dirigiu para a França, segundo Falciani e pessoas a par da investigação suíça. Ao chegar no sul da França, ele começou a baixar os dados do HSBC que tinha armazenado em servidores fora do banco e salvá-los em seu computador, disse ele. "Eu precisava preparar minha defesa", disse ele. Ele diz que avisou as autoridades suíças que voltaria depois do feriado do Natal, mas desde então não retornou mais à Suíça. Em janeiro de 2009, com base num pedido de um promotor suíço, o promotor de Nice, Thierry de Montgolfier, fez uma busca na casa dos pais de Falciani na Riviera Francesa, onde ele estava hospedado. Lá, a polícia confiscou um celular inteligente, um bloco de notas, um notebook e um computador de mesa, disse o promotor. "Antes de decidir se entregava tudo aos suíços, tínhamos de dar uma olhada", disse Montgolfier. Com a ajuda de Falciani, as autoridades francesas encontraram milhares de detalhes sobre contas e transferências bancárias. Quando se eliminaram os nomes duplicados ou ilegíveis, foi possível ver que os arquivos tinham informações sobre 79 mil correntistas e 20 mil empresas, segundo o promotor de Nice. A lista incluía mais de 8 mil franceses, cerca de 1,5 mil americanos e o mesmo número de britânicos, segundo Montgolfier. Ele imediatamente compartilhou os arquivos com as autoridades tributárias francesas. François Baroin, que se tornou o ministro do Orçamento da França em março, disse que as investigações geradas com base nos dados do HSBC permitiram que o ministério recuperasse € 1 bilhão em impostos sonegados e multas. O HSBC contesta o número de clientes revelados pelos francesas. O banco afirma que eram dados de 24 mil clientes atuais e passados. O HSBC tem atualmente 100 mil clientes de private banking no mundo inteiro. Montgolfier, que guarda os computadores de Falciani num cofre, disse que não está interessado em pesquisar as origens dos dados. "O que importa para mim é se esses dados são genuínos e confiáveis", disse ele. "Até agora, não tenho dúvida de que são os dois." |
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