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sábado, 3 de julho de 2010

Dois ensaios sobre meritocracia e babaquice


A invenção do diabo

Um amigo contou uma anedota que, além de risos, me suscitou reflexões sobre a vida universitária. Deus e o diabo seguiam em disputa. Deus criava o bem, mas o diabo, criando o oposto, sempre o superava. Então, Deus lançou seu derradeiro desafio: inventaria algo próximo da perfeição e com o mais alto nível de complexidade possível. Deus criou, então, o professor universitário. Depois de uma gargalhada satânica, o diabo anunciou sua superação: inventou o colega do professor universitário.

Mesmo conservando um alto grau de prestígio, há muito tempo o discurso científico perdeu sua áurea de neutralidade axiológica. Penso que isto tem algo a ver com o clima de disputas de egos do ambiente universitário. Lugar de vaidosas luzes ofuscantes, a universidade se tornou inóspita para muita gente inteligente. Sartre não optou por uma carreira universitária, talvez porque soubesse que lá “o inferno são os outros”.

Obviamente, desde que a ciência se tornou um trabalho coletivo, muitos avanços foram possíveis. É claro que a crítica não condescendente é sempre edificante. Mas o contexto da descoberta e da divulgação do trabalho científico é prenhe de histórias da mais baixa espiritualidade. Tramas, plágios, tramóias e um elenco infinito de expedientes sórdidos comparecem quando o fito é comprometer o trabalho alheio e arranhar reputações morais. Nesta guerra, passa-se do plano profissional ao pessoal em argumentos ad hominem que não disfarçam sua hostilidade vil.

Arrogante, detrator e não raramente perseguidor o colega do professor universitário é quase uma ameaça a qualidade do trabalho científico dos pares. Manipulando o quadro de horários, castigando nos pareceres técnicos, vetando a participação em projetos, este colega é um algoz implacável, sobretudo quando consegue um cargo qualquer de chefe de alguma coisa. Como saber é poder, o colega sabe o quanto pode ferir e trapacear. A universidade vive num eterno estado de natureza (em sentido hobbesiano): magister magistri lupus, um estado de guerra no qual o mestre é lobo do mestre.

texto de Ricardo Henrique Andrade *, A Tarde, pescado daqui

* professor de filosofia da UFRB

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Políticos letrados

Extraído e adaptado das ótimas crônicas de Ribamar Bessa Freire, aqui


Numa peça de teatro que montaram os índios guarani lá do Pará – o Bicho Lixo - eles não entenderam, assim como eu, porque se escreve “bicho” com “ch” e “lixo” com “x”, se o som é o mesmo. O problema não está na norma ortográfica, mas em criminalizar a variação.

Polícia da escrita

Lá, no Peru, os índios conseguiram eleger vários deputados, falantes de quéchua ou aymára como línguas maternas. Uma representante do Cuzco, Hilária Supa é uma camponesa, combativa, inteligente, sagaz, dona de uma oratória refinada, tanto em quéchua como em espanhol, que é sua segundo língua. Ela se comunica muito bem, falando. Escrever, em espanhol, já são outros 500.

Aconteceu que um repórter do diário Correo, de Lima (a capital), bisbilhoteiro como soem ser esses tipos, invadiu a privacidade da deputada e fotografou, sem permissão dela, a página de uma caderneta de anotações pessoais. Não se tratava de um documento público, oficial, (para produzir isso ela tem assessores, com muitos ‘ss’), mas de anotações para seu uso na hora em que subisse à tribuna para falar. Afinal, se ela escrevesse cena ou sena em suas notas, na hora do discurso, a pronúncia seria a mesma.

O jornal não deu mole. Na edição de 27 de abril de 2009 deu destaque com a manchete: “La Congresista no tiene quién le escriba”. O foco central da notícia era que a deputada não sabia escrever de acordo com as normas oficiais da Real Academia Espanhola. Num editorial assinado, um tal Aldo Mariategui - diretor do jornal, humilhou a deputada e exigiu sua cassação.

“Não se pode pagar mais de 20 mil soles por mês e dar tanto poder a pessoas que não estão minimamente iluminadas pelas luzes da cultura. Não é bom para o país que possa ser eleito para o Congresso alguém com um nível cultural tão baixo, cuja ortografia e gramática revelam tantas carências. Uma pessoa com uma instrução tão rudimentar não pode contribuir na elaboração de leis e nos rumos da nave do Estado”.

Com esse discurso boçal esse jornalista babaca quis fazer crer que quem segue a norma é inteligente, quem não segue é burro. Com essa visão cartorialista, teve a cara-de-pau de sugerir que o diploma universitário fosse requisito para que alguém pudesse ser candidato ao Congresso. O jornalista, que tem curso superior, escreveu, dentro das normas ortográficas, tantas besteiras, ignorando os avanços da lingüística e da antropologia, quando confunde cultura com escolaridade e conhecimento da ortografia com sabedoria.

A deputada Hilária Supo, ao contrário de Aldo Mariategui, que não fala e nem entende quéchua ou qualquer outra língua indigena, é bilíngüe e transita por duas línguas. Possui experiências saberes milenares que herdou de seus ancestrais e conhece muito bem a realidade peruana, como mostra sua participação nas comissões de Saúde e dos Povos Indígenas. Barra-la do Congresso por não conhecer as normas da língua espanhola escrita é um projeto daqueles que usam a gramática normativa para policiar, controlar e impedir a atuação política de quem não forma parte da elite oligárquica de um país.

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