A reportagem do Fantástico de 18 de março, que expôs cenas de corrupção e fraude em licitações emergenciais num hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), teve repercussão compatível com a gravidade da denúncia, que entretanto está longe de ser inédita.
O caso escolhido foi o de um hospital público, mas poderia ser constatado em qualquer outro setor. A situação é conhecida: o gestor convida empresas, elas se apresentam e negociam o percentual de propina, o serviço superfaturado é contratado e a vida segue, com os danos de sempre aos cofres públicos.
Se todo mundo sabe disso, por que tamanho alvoroço? Porque o impacto das cenas gravadas por câmeras ocultas é sempre muito forte. E produz um efeito de ineditismo que apaga da memória dos espectadores tudo o que já foi dito, publicado ou exibido sobre situações semelhantes.
Por isso a emissora se permite declarar, em anúncio de meia página na edição do Globo do domingo (25/3), que tal reportagem “revelou uma realidade que alertou o Brasil”. O título reitera o suposto ineditismo, além do protagonismo – e do autoatribuído poder – da rede de TV: “Corrupção na saúde: revogamos a lei do silêncio”.
Porém, a própria reportagem original menciona, embora apenas de passagem, que as empresas citadas estão sendo investigadas pelo Ministério Público por diferentes irregularidades e, apesar disso – o que parece aberração, mas não é, porque a lei permite que continuem atuando enquanto o processo não for concluído –, seguem entre os maiores fornecedores do governo e recebem juntas meio bilhão de reais em contratos feitos com verbas públicas.
Já no dia seguinte, o Jornal Nacional informava que três das quatro empresas mencionadas na reportagem estavam sendo investigadas pelo Tribunal de Contas da União. Na quinta-feira (22/3), O Globo destacava, em manchete de página, os “‘Debutantes’ em suspeitas”, lembrando que as ações do TCU começaram há 15 anos.
Por que, então, a reportagem do Fantástico optou por montar a cena de corrupção explícita? Por que privilegiou a exibição das propostas de propina em vez de destacar os processos judiciais que se arrastam sem solução? O que é mais importante: exibir – e repetir, repetir e repetir – as cenas de corrupção ou informar sobre os motivos que levam as denúncias a se perderem no tempo, a ponto de serem arquivadas ou não resultarem na devida punição?
A montagem do cenário
Vamos recapitular: em 18 de março, o Fantástico anunciava sua mais recente denúncia: a oferta de propina por parte de empresas interessadas em participar de licitações emergenciais no serviço público, e todo o esquema que envolve a “concorrência” de cartas marcadas. Eduardo Faustini, o famoso “repórter sem rosto”, obtém a autorização do diretor do hospital de pediatria da UFRJ, no Fundão, para se fazer passar pelo gestor de compras da instituição e atuar como tal durante dois meses, para provocar e flagrar a situação, através da instalação de câmeras ocultas no respectivo gabinete.
Além de alguns detalhes reveladores da recorrente precariedade da estrutura do serviço público – a fórmica azul descascada na base da porta da sala, as cadeiras com o forro preto rasgado deixando aparecer a espuma do estofo –, as imagens expõem os empresários, ou seus representantes, acenando com o que uma delas diz ser a “ética do mercado”: o pagamento de determinado percentual, que pode ser de dez, quinze, até vinte por cento do preço contratado, ao servidor responsável pela licitação. A reportagem, de 22 minutos, intercala entrevistas com o diretor do hospital, que justifica o acordo com o jornalista, e com o diretor da ONG Transparência Brasil, Claudio Weber Abramo, explicando como é possível forjar “emergências” – como deixar acabar material de limpeza, por exemplo – para justificar esse sistema de compra.
Catarse virtual
Expor o comportamento daquelas pessoas, tão seguras da impunidade, ou tentando estabelecer um código tosco para a eventualidade de uma gravação escondida – o gerente que fala em “camisas” em vez de cifras, e pede que o interlocutor feche o laptop, sem desconfiar das câmeras espalhadas pela sala –, é oferecer ao público uma espécie de catarse virtual. Como se estivéssemos vingados apenas porque passamos a conhecer o rosto de meia dúzia de empresários – ou seus prepostos – corruptos. Como se isso fizesse alguma diferença.
A reação no campo político era previsível: autoridades afetando surpresa e indignação, anunciando providências para o cancelamento de contratos com aquelas empresas, e a oposição alardeando a criação de uma CPI. Em meio a tudo isso, a notícia no Jornal Nacional da terça-feira (20/3), de que há dois anos o governo federal enviou projeto prevendo punição para empresas que corrompam funcionários públicos, justificado pelo relator, que informa sobre a precariedade da lei atual, na qual apenas pessoas físicas são puníveis, e sobre a demora no processo, que acaba tornando letra morta a hipótese de punição.
As armadilhas do método
A repercussão da reportagem deveria provocar algum debate sobre a utilização de câmeras ocultas para a constatação e divulgação de denúncias como essa. Costuma-se dizer que, em certas situações, apenas dessa forma se consegue obter as informações necessárias. Se fosse verdade, tais empresas não estariam sendo investigadas há tanto tempo. No entanto, o que importa não é bem a informação, mas a maneira pela qual ela é exibida – não por acaso foram tantas as referências ao Big Brother nos comentários sobre a reportagem.
Aí sim, a câmera oculta é imprescindível: porque exerce esse fascínio sobre o público, convidado a penetrar a zona proibida das negociatas, seguindo os passos do repórter sem rosto, ainda que sua imagem – de costas, subindo as escadas até o gabinete – não corresponda à sua identidade. O que importa, para a TV – ou esta TV –, é o impacto da imagem sobre os espectadores. Fazê-los pensar é outra história.
(Nem se diga, como querem tantos teóricos, que a TV impede o pensamento, por sua própria estrutura: de fato, a TV assimila perfeitamente a lógica do espetáculo, mas não obrigatoriamente se rende a ela; do contrário – à maneira do que disse Balzac a respeito da instituição da imprensa, que deplorava –, seria mesmo melhor que não tivesse sido inventada).
Enxurrada de elogios
Então o senador Pedro Simon (PMDB-RS), num texto que não faz jus à sua conhecida verve, publica artigo na edição de sexta-feira (23/3) do Globo enaltecendo a reportagem, que cumpriria “todas as exigências formais do bom jornalismo” – ainda que essas exigências se resumam ao atendimento às perguntas elementares de qualquer matéria, “o que, quem, quando, onde, por que”. Igualmente, no sábado (24), Zuenir Ventura escreve no mesmo jornal um elogio a esse “bom jornalismo” que, “com criatividade, paciência e argúcia (...) fez um dos mais contundentes libelos contra a corrupção, sem aparecer e sem precisar usar um adjetivo sequer, passando a palavra aos próprios personagens para se confessarem e se incriminarem”. E prossegue: “Nada é contado por ele [o repórter], mas mostrado ao telespectador sem mediação ou retoque, didaticamente” (os destaques são meus).
O repórter sem rosto, por definição, não aparece, mas por isso mesmo sua ação é mais notável do que se estivesse pautada pelos métodos comuns de reportagem: é essa aura de mistério que atrai tanto o interesse e a admiração do público; os adjetivos ausentes na gravação escondida são abundantes na edição das imagens, tanto na intervenção dos âncoras, no estúdio, quanto nas palavras do repórter que apresenta matéria; sobre a falta de mediação, francamente, o argumento chega a ser constrangedor: um jornalista experiente deveria ter claro que essa ilusão provocada pela câmera oculta, levando ao público a sensação de estar observando o desenrolar das cenas tais quais aconteceram, como a pura expressão da verdade, esconde o processo de edição, fundamental em qualquer caso.
Esta a armadilha do método:
como escrevi há muito tempo, as “evidências” exibidas dessa forma “elidem a existência do jogo de representações inerente às relações sociais – o que a câmera expõe é visto como um flagrante que surpreende algum ilícito, uma prova irrefutável de ‘verdade’, sem mediações ou interferências – e encobrem justamente essas interferências contidas na própria mediação: o comportamento do ‘repórter sem rosto’, as perguntas que não vão ao ar, o não revelado estímulo a que a fonte adote atitudes que configurarão o ilícito a ser comprovado”.
Por isso não entendemos bem por que a roliça e gaiata negociadora de uma das empresas cobre o rosto ao final da reportagem, fingindo preocupação porque iria “sair no Fantástico”: o que teria provocado tal reação? Menos ainda entendemos por que o diretor do hospital aceitou franquear o acesso ao repórter que se disfarçaria de gestor. Em entrevista, ele declara seu desejo de demonstrar que nem todo comprador de hospital é desonesto. Mas por que recorreu à imprensa, e não apelou à polícia para flagrar o esquema, ou a instâncias formalmente constituídas para receber tais denúncias? Como justificou o afastamento do verdadeiro gestor da instituição? Que riscos estará correndo agora, já que – diferentemente do repórter – sua identidade é bem conhecida? O que pode acontecer a quem rompe com a “ética do mercado”, baseada no acordo do “eu te projeto e tu me proteges”?
A justiça “imediata” e o desprezo às instituições
Se o papel do jornalismo é esclarecer, seria necessário ir muito além da exposição de um flagrante, que se esgota no impacto causado pelo escândalo e nos deixa indignados diante de tamanha aberração, sem qualquer alternativa de ação. Para que serve esse tipo de jornalismo?
“Você está entrevistando Deus”, diz um colega ao autor da matéria. Faustini, ele mesmo, é mais modesto: considera-se um sacerdote. Diz que gosta de “jogar luz em uma zona que está escura”, mas seu propósito está longe de qualquer projeto iluminista. Pelo contrário: embora afirme admirar os profissionais que trabalham mostrando a cara e investigando documentos, ele prefere “resolver a questão numa filmagem”, porque “no dia seguinte, a casa do cara já caiu”.
É sua forma de compensar “a Justiça lenta, ineficiente” – embora ele mesmo não se considere um justiceiro. Mas, ao mesmo tempo, tampouco acha necessário subordinar-se à lei: “A relevância de um fato é sempre mais importante que a infração que estou cometendo. (...) O interesse público é o meu foco. Pra mim, ele é mais importante que qualquer lei ou regra de etiqueta”. Também considera o segredo de justiça um absurdo, porque “não protege a dona Maria ou o seu João, protege apenas o milionário corrupto”.
Entender que o aparelho judiciário está marcado por interesses de classe é uma coisa; concluir que daí ele atende apenas aos poderosos é um equívoco facilmente demonstrável. Mas não é difícil identificar as origens e as consequências desse pensamento rasteiro que exclui as mediações próprias do regime republicano – por menos que estas sejam as características de nossa formação sociopolítica – para buscar a comunicação direta com o público.
Todos os regimes totalitários agiram assim. Sempre em nome do povo.
Será mesmo este o caminho do bom jornalismo?