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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A civilização do lixo



Para o advogado argentino Raúl Néstor Alvarez, “o lixo não é somente essa montanha de substâncias e coisas fedorentas, úmidas e amontoadas que nos causam nojo”. Na entrevista que aceitou conceder por e-mail à IHU On-Line, ele propõe pensar o lixo como uma relação social de desapropriação, “como uma relação entre partes desiguais que permite a alguns descarregar seus passivos econômicos e ambientais sobre os outros, que compõem o conjunto coletivo social”.
Advogado e licenciado em Ciências Políticas pela Universidade de Buenos Aires – UBA, Raúl Alvarez dedica boa parte de sua jornada à docência na Faculdade de Direito da UBA. Sua especialidade é a Teoria do Estado, mas a partir de uma perspectiva crítica, que questiona diretamente o direito de propriedade. Com essa bagagem começou a estudar o lixo, sua relação com o Estado e com a propriedade. Chegou a esse tema acompanhando uma organização territorial de José León Suárez, a área onde se localiza um dos aterros sanitários da Ceamse. O produto dessa pesquisa foi a sua dissertação do mestrado em Ciência Política realizado no Instituto de Altos Estudios Sociales da Universidad Nacional de San Martín – UNSAM (Argentina), que depois se tornou o livro La basura es lo más rico que hay (Buenos Aires: Dunken, 2011). Seus trabalhos podem ser lidos em www.poderyderecho.blogspot.com.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como você define o que é lixo?
Raúl Néstor Alvarez – Penso que o lixo não é somente essa montanha de substâncias e coisas fedorentas, úmidas e amontoadas que nos causam nojo. Proponho pensar o lixo como uma relação social de desapropriação, como uma relação entre partes desiguais que permite a alguns descarregar seus passivos econômicos e ambientais sobre os outros, que compõem o conjunto coletivo social.

IHU On-Line – Qual a relação do lixo com o Estado e com a questão da propriedade?
Raúl Néstor Alvarez – O Estado é um aspecto das relações sociais de exploração, o aspecto coercitivo, que se corporiza em aparelhos, cuja função é exercer “institucionalmente” a força para reproduzir essas relações sociais desiguais que o constituem. Esse Estado, enquanto estado capitalista, garante estrategicamente a reprodução do capital. No terreno do valor positivo dos objetos, cumpre esta função conservando a propriedade privada da classe dominante. Mas quando entramos no terreno negativo de valor, quando nos encontramos com objetos e substâncias dos quais seus proprietários privados já lhe extraíram seu valor positivo, então o papel do Estado, para favorecer a acumulação do capital, passa por absorver a gestão desses materiais que provocam perdas. A lógica capitalista do lixo passa por privatizar o que dá lucro, e socializar o que dá perda. O papel do Estado, neste terreno, então, é atuar como gestor, como administrador dessas perdas (econômicas e ambientais) através da chamada “gestão de resíduos”.

IHU On-Line – Como a divisão em classes é uma estrutura social que acaba replicada no terreno do lixo?
Raúl Néstor Alvarez – Em sociedades capitalistas como a que vivemos, as relações sociais, ao serem desiguais, são antagônicas. Isso quer dizer que há exploradores e explorados, dominadores e dominados. Nesse sentido, falo de divisão em classes. Parece-me que a ideia de antagonismo permite uma concepção não substancialista da ideia de classe. Aplicar este conceito ao tecido social do lixo nos permite conceber uma rede de “lixadores” e “lixados”. Ou, mais amplamente, desde o ponto de vista ambiental, podemos falar de contaminadores e contaminados. Por “lixeirização” me refiro ao trato das pessoas ou dos objetos como se fossem lixo, como se não tivessem nenhum valor positivo. Como a estrutura de nossas sociedades capitalistas é desigual, os objetos e materiais descartados por estratos mais elevados, podem ser úteis e valiosos para pessoas situadas em níveis mais baixos. Isso é o que explica que os mais pobres considerem conveniente a coleta e recuperação de objetos misturados ao lixo. Mas pagam um preço por isso, porque a “lixeirização” dos objetos impregna imaginariamente as pessoas que trabalham com esses objetos “lixeirizados”.

IHU On-Line – Como o senhor define o preconceito cultural, de ideia normalizadora do lixo, que impede o avanço da reciclagem? 
Raúl Néstor Alvarez – O lixo funciona também como uma dimensão simbólica. Quando nos formamos como sujeitos, aprendemos um conjunto de normas, de preconceitos, de higiene e de conduta que requerem da formação de lixo para se fixarem. Tudo o que em uma mesa, em um lar, ou em um escritório gera desordem, atrapalha ou é considerado “sujo”, acaba retirado da ordem cotidiana e se destina à cesta de lixo. Ou seja, se “lixeiriza”.
Lixo é o contrário necessário da ordem e da limpeza. E esta ordem, tanto doméstica como social, necessita da ideia de lixo para poder funcionar. Daí que se atribuem ao lixo uma quantidade de características, como sujeira e “infectosidade”, que não procedem de suas propriedades físicas, mas que são atributos culturais, imaginários. Este “poder imaginário” que se atribui ao lixo se incorpora e se inscreve nos corpos como “asco”, que é uma sensação aprendida socialmente. Não é um reflexo biológico.
A partir do lixo, os setores privilegiados da sociedade capitalista são capazes de sentir asco pelo lixo. E este asco deixa à mostra a fronteira que demarcou a norma, entre o que é lixo e o que faz parte da ordem do social. Conjuga-se, além disso, outra dimensão simbólica de tipo individual, que são os sentidos inconscientes que transferimos a um objeto quando o convertemos em lixo. Atirar algo no lixo não consiste em um mero cálculo econômico, mas é uma ponderação subjetiva muito mais complexa na qual entram em jogo nossos desejos ocultos, nossos prazeres e nossas frustrações.
Estes aspectos que negamos de nós mesmos, os descarregamos convertendo em lixo certos objetos. Por exemplo, se me sinto gordo e não me gosto assim, então me vingo atirando no lixo as calças que já não me servem. O que fica no cesto de lixo é um aspecto de mim mesmo, que eu renego. De modo que o nojo do lixo, de certo modo, é um nojo de mim mesmo que eu alieno. Quando um mendigo abre meu saco de lixo, sem nojo, é porque ultrapassou essa fronteira da normalidade, fazendo desandar a construção social do lixo. E por isso fica impregnado da mesma denotação da qual o lixo é objeto.
A “lixeirização” se estende dos materiais às pessoas. Os mendigos ficam estigmatizados como sujos, doentes e transmissores de doença. No entanto, esta caracterização é independente de qualquer processo biológico, mas procede do desenvolvimento da construção social do lixo.

IHU On-Line – Em que sentido o senhor afirma que o lixo em si não existe, que se trata de um fetiche?
Raúl Néstor Alvarez – O que quero dizer é que quando se manipula o lixo não devemos nos limitar à questão dos materiais e às quantidades, mas temos que considerar o processo social desigual do qual ele procede. Os sentidos imaginários, inconscientes e desiguais que implicam no lixo são densos e explicam grande parte de nossos comportamentos a respeito. Pontualmente, um fetiche é um objeto ao qual se atribuem poderes imaginários. Mas quando se indaga no contexto em que se insere o objeto, vemos que o importante não é a materialidade dessa coisa, mas as relações sociais desiguais que se valem dela para se reproduzir. Assim como a mercadoria não equivale a seu preço, mas explica um conjunto de relações de exploração, do mesmo modo o lixo não é somente essa montanha malcheirosa que está nos aterros, mas é uma relação.
A diferença entre a mercadoria e o lixo é que o que tem valor positivo permanece no patrimônio das pessoas, sob o direito de propriedade, e o que se torna desagradável é descartado como lixo. Mas a relação social é a mesma: apropriação em um caso e desapropriação em outro. A propriedade é um direito que permite ao dominus excluir erga omnes a todo o resto da sociedade, do uso e gozo de sua coisa. Ao contrário, o lixo é uma “desapropriação” de algo que até agora tinha um dono, e uma vez que obteve seu lucro, quando sua coisa passa a ter valor negativo, descarrega esse passivo econômico ou ambiental no resto da sociedade, ou seja, no ambiente. O coletivo social se faz responsável, através do Estado, de gerir estes passivos, garantindo, desse modo, que os ativos fiquem apropriados por uma minoria.
Esta maneira de ver o lixo como relação de desapropriação, contrária e complementar à relação de propriedade, pode se estender a todas as relações de contaminação. Porque a contaminação tanto da água e do ar como da terra sempre implica a presença de resíduos que tenham sido desapropriados em um bem coletivo que é o ambiente.

IHU On-Line – Em que medida o lixo é utilizado como recurso de poder?

Raúl Néstor Alvarez – Mais do que um recurso, o lixo é poder. Porque o poder não é uma coisa que se toma ou se deixa. É um aspecto das relações sociais. E no lixo circula, entre outras coisas, relações de poder. O lixo procede do exercício desigual do poder; o reproduz. O Estado, ao gerir o lixo, garante a apropriação privada de lucro à socialização de perdas mediante a coerção. Os mendigos, por isso, geralmente têm sido perseguidos.
Aqui em Buenos Aires, o principal aterro, o Norte III da CEMASE, é custodiado pela polícia armada, como se se tratasse de um tesouro. Os catadores, ao resgatar objetos do lixo, estão rompendo a lógica de poder e da apropriação/desapropriação do lixo. Por isso são discriminados, perseguidos, reprimidos, marginalizados.
Além disso, em torno do reaproveitamento do lixo também se montam redes de aproveitamento econômico, que implicam exploração e relações de poder. Mas isso não foge às demais relações de poder que se dão no território social da marginalidade.
O uso do lixo como “recurso” de poder é nítido quando o Estado dificulta ou nega aos catadores o acesso a seu material de trabalho. Mas também a prisão usa a privação da liberdade como um recurso de poder, do mesmo modo que o fazem os demais aparatos do Estado em seu trato com os setores subalternos.

IHU On-Line – Como você chegou à conclusão de que o lixo é o que há de mais rico?
Raúl Néstor Alvarez – A frase do título do livro não é minha, mas de um catador de Villa Lanzone, Buenos Aires. Uma vez fomos com uma equipe da Universidad de General Sarmiento a uma assembleia de um projeto social de reciclagem. Ali propusemos aos catadores que em seu trabalho cotidiano, além de luvas, usassem máscara para tapar a boca e o nariz. Era uma ideia exótica, totalmente alheia ao modo de trabalho habitual dos trabalhadores do lixo, que não somente não se adoentam nem tem nojo do lixo, como também tem feito dele seu meio de vida e de alimentação. Por isso, um jovem irreverente, parado em uma montanha de lixo ao fundo do galpão onde nos reuníamos, gritou: “para que vamos usar máscara se o lixo é o que há de mais rico?”. Referia-se ao duplo caráter do lixo: é rico porque se pode comer, e dele se pode extrair valor ao recuperá-lo.

IHU On-Line – Como resolver o problema do lixo em nossas sociedades se considerarmos que o capital é regido pela lógica da escassez?
Raúl Néstor Alvarez – A pergunta excede o que posso dizer a partir da etnografia que venho realizando. Mas creio que o caminho é desandar a lógica capitalista do lixo, empregar critérios ambientais para seu manejo, avançar na reciclagem usando mão de obra intensiva de quem atualmente se ocupa dele, que são os mendigos e catadores, valendo-se de lógicas não tecnológicas, mas cidadãs, de organização e decisão. O lixo é uma questão de empoderamento popular e cidadão. É uma questão política. Não pode ser deixado nas mãos tão somente de engenheiros e administradores de empresas.

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