Por Pedro Venceslau na revista Fórum
Durante os Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, os milhões de brasileiros que assistem à Rede Globo se viram diante de um dilema. O que é mais importante para o desenvolvimento do esporte no país: um jogo amistoso de futebol de salão ou a final da natação com César Cielo? Artistas tentando acertar um joão-bobo chutando uma bola de calcanhar ou um jogo entre Brasil e Cuba no vôlei? Desde que a Globo é a Globo, é ela quem dita as regras sobre o que é relevante e vale a pena ser visto. Foi a emissora do Jardim Botânico, por exemplo, que tentou introjetar no brasileiro a ideia de que o futebol de praia e as corridas de Stock Car disputadas pelo filho de Galvão Bueno são eventos imperdíveis e de suma importância no cenário internacional. Recentemente, o locutor mais famoso do país conseguiu a façanha de conferir valor épico a um jogo amistoso entre reservas do Brasil e o Gabão em um campo de várzea. Até mesmo uma corrida de kart entre pilotos e ex-pilotos pode se transformar em “vitrine” do automobilismo brasileiro. Se os patrocinadores pagarem bem, que mal tem?
Nos Jogos Pan-Americanos do Brasil, em 2007, a Globo, que detinha os direitos de transmissão, martelou na cabeça do público que o torneio era quase tão importante quanto uma Olimpíada. Cada jogo, cada corrida, cada salto era transmitido em tom ufanista. E as medalhas, uma a uma, foram celebradas como se o Brasil fosse uma potência do esporte. Tratava-se de um evidente exagero, claro. Mas era a emissora, com suas reportagens especiais e locuções apaixonadas, que estava dizendo. Depois que a Record comprou os direitos de transmissão do Pan do México, o evento perdeu subitamente a importância e, em 2011, o torneio foi simplesmente ignorado pela emissora. A questão que intriga jornalistas, esportistas e especialistas é como a Globo vai se comportar nos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres, cujos direitos de transmissão também pertencem à Record. Nesse caso, não há como esconder ou minimizar a importância do maior evento esportivo do planeta.
Na emissora do bispo Edir Macedo, prevalece a ideia de que as Olimpíadas de Londres marcarão o fim de um paradigma e que o público do evento vai migrar de canal para ficar. O canal não mede esforços para concretizar o velho sonho de chegar à liderança no Ibope. “A Record vai exibir, diariamente, de 10 a 12 horas das diversas modalidades dos Jogos Olímpicos. Vamos contar com 320 profissionais em Londres. Nenhum detalhe ficará fora da transmissão”, disse à Fórum o empolgado diretor de jornalismo da emissora, Douglas Tavolaro. A Record também vai montar um quartel-general de 750 metros quadrados, que produzirá 12 horas diárias de programação.
Depois de uma negociação tortuosa, a emissora fechou um acordo que confere à Globosat, braço de TV por assinatura da Globo, o direito de exibição dos Jogos Olímpicos de Londres na TV nos canais SporTV. Valor? R$ 22 milhões. Um dado curioso é que, em 2008, a Globosat pagou apenas US$ 3 milhões para a própria Globo. Em 2012, os executivos do Jardim Botânico apostam em um cenário inédito na TV brasileira para minimizarem o estrago: uma TV aberta disputando audiência diretamente com outra emissora a cabo. As TVs abertas só poderão exibir, por contrato, 3 minutos de jogos e competições. Além do SporTV, a Globo planeja abrir até mais seis canais. Em uma operação milionária, a ideia é atrair um público de 10 milhões de pessoas para a TV paga.
No mercado de mídia, os rumores apontam para uma negociação entre Globosat e operadoras para viabilizar uma megapromoção de pacotes de TV fechada válida por alguns meses, que envolveriam o período dos jogos. “Eles fizeram uma operação parecida quando lançaram o jornal Extra. Para esvaziar o concorrente, o jornal O Dia, que estava liderando entre os leitores de classe C e chegou a vender mais que a Folha, o grupo Globo fez uma operação casada: vendiam o Extra com muitos brindes e colocaram na praça anúncios casados com O Globo. Levaram um baita prejuízo só para ferir o concorrente”, lembra-se André Balocco, editor-assistente do jornal esportivo Marca Brasil. “No caso do Pan de Guadalajara, eu tinha a palavra da Globo de que eles fariam a cobertura do evento, mas isso não aconteceu. O caso da medalha do [César] Cielo mostrou que eles são capazes de esconder tudo. Deram só uma nota coberta e sem imagem. E era a redenção dele”, conta Crsitina Padigilione, editora de TV e colunista do jornal Estado de S.Paulo. Observadora atenta da disputa Record x Globo, ela faz uma previsão pessimista para os Jogos do ano que vem. “Não me espanta que o Pan seja só um aperitivo do que a Globo fará em Londres em 2012”.
A discussão sobre o comportamento da maior emissora do país durante o maior evento esportivo do planeta mobilizou as redes sociais, chegou à internet e acabou forçando os constrangidos executivos e apresentadores globais a se manifestar. “Nossa cobertura, de acordo com o que está estabelecido no COI [Comitê Olímpico Internacional], será o que chamamos de fair use. Quer dizer, tem uma partida de vôlei e você tem três minutos para exibir em seus telejornais. Não vamos esconder. Temos um acordo de longo prazo com as federações e confederações olímpicas”, afirmou o diretor-geral da Globo, Octávio Florisbal, em entrevista ao site UOL Esportes. Questionado sobre os motivos que levaram a Globo a perder a primazia histórica sobre os Jogos, ele respondeu em cifras. “Nós tínhamos uma visão de que os Jogos de 2012 deviam valer ao Brasil até US$ 30 milhões. Se passasse disso, daria prejuízo. A concorrente ofereceu o dobro”.
Entre os “artistas” da programação esportiva da casa, o dilema da transmissão também pegou na veia. “Eu sou muito cobrado: por que você não fala da Fórmula Indy? Simples. Porque eu não tenho o direito de falar na Indy, meu amigo! Existe uma ideia errada de que a Globo deve falar de tudo porque o cara quer ver na Globo…”, disparou o apresentador Tiago Leifert, porta-voz informal da emissora, em entrevista à edição de dezembro da revista G.Q. “A Globo deve usar em Londres a mesma estratégia do Pan: informar os resultados por meio de computação gráfica e entrevistas in loco. O que pegou no Pan foi que o telespectador estava acostumado a acompanhar a transmissão pela Globo”, pondera a diretora de redação da revista e do portal Imprensa, Thaís Naldoni.
Amadorismo
É consenso entre os profissionais da crônica esportiva e televisiva – e até dentro do governo – que a Record está a quilômetros de distância da Globo em termos de qualidade de transmissão e cobertura de grandes eventos esportivos. “A cobertura da Record [do Pan] foi amadora, com direito até a links perdidos. O público estranha muito isso, porque está acostumado ao padrão global”, diz André Balocco, do Marca Brasil. Para a colunista de TV do Estadão, um dos gargalos da transmissão da Record no Pan de Guadalajara foi o despreparo do comandante-geral da operação. “Aconteceram muitas falhas no processo que poderiam ter sido evitadas com mais coordenação. Faltou comando…”, diz Cristina Padiglione. “Foram erros crassos, que englobaram desde o posicionamento das chamadas ‘câmeras exclusivas’, postas em locais sem nenhuma estratégia, sem iluminação, passando pelos narradores e repórteres que carregaram no ufanismo. Chegaram a dizer que um evento era ao vivo, quando não era. Os repórteres se comportavam como fãs”, lembra Thaís Naldoni, da revista Imprensa.
Outra marca da Record foi a transformação da rixa com a Globo em modalidade olímpica. A emissora usou tempo de seus telejornais para criticar, por meio de longas reportagens, a concorrente. Apesar de ter mostrado quase 40% de horas a mais no Pan do México do que a Globo no evento do Brasil, a Record ainda não consegue separar o público dos entreveros comerciais. O bispo Honorilton Gonçalves, todo-poderoso homem do canal, disse diversas vezes que a Globo “escondeu o Brasil”.
A disputa entre os dois canais preocupa o governo. “Quando a Globo deixa de dar o registro para alguma modalidade, isso causa prejuízo ao esporte. O Jornal Nacional cobriu muito pouco o Pan de Guadalajara”, afirma um interlocutor próximo ao ministro do Esporte, Aldo Rebelo. Oficialmente, a pasta prefere manter distância do enredo comercial. Mas, nos bastidores, o ministério atuou como mediador em vários momentos. “Essa negociação sobre o tempo que cada canal sem os direitos poderá transmitir dos jogos é muito complicada. Nunca fica bom para todo mundo. Até 2016, será imprescindível que as emissoras entrem em acordo”, completa o assessor. Em tempo: o ministro Aldo Rebelo sabe que, mais cedo ou mais tarde, vai enfrentar com o Comitê Olímpico Internacional tensões parecidas com as que marcam a relação com a CBF…
Record fatura alto com patrocínios
A Record já vendeu nove cotas de patrocínio para os Jogos de Londres. Segundo a emissora, o faturamento total será de R$ 277 milhões. Os patrocinadores serão Caixa, Cerveja Petrópolis, McDonald’s, Nestlé, Petrobrás, Procter, Coca-Cola, TIM e Visa.
“Minhas expectativas são as melhores possíveis. Tenho certeza que teremos um boom no investimento publicitário, da mesma forma que nos anos anteriores em que tivemos eventos desse porte. E, dentro cenário, sendo a Record a detentora exclusiva dos direitos de transmissão das Olimpíadas de Londres, aposto todas as fichas e acredito que a emissora terá um dos melhores desempenhos de faturamento e de audiência de toda a sua história”, Walter Zagari vice-presidente comercial da Record.
Ibope e o mistério da audiência
No ano em que a Globo estará fora dos Jogos Olímpicos, a entrada da Nielsen, uma das maiores empresas de pesquisa do mundo, no mercado de aferição da audiência de TV em 2012, acabará com o monopólio do Ibope.
Senhor absoluto da audiência em tempo real da TV brasileira desde 1988, o Ibope ganhará um concorrente de peso em 2012. A Nielsen, uma das maiores empresas de pesquisa do mundo, entrará no mercado com o dobro de domicílios que compõem a amostra do Ibope. Na reunião em que o projeto foi apresentado aos canais de TV, apenas a Globo não compareceu. Para o cientista político Carlos Novaes, que criou e comandou entre 2003 e 2005 o único empreendimento que ousou enfrentar o Ibope até hoje, o Datanexus, a ausência era mais que esperada. À Fórum, ele contou os bastidores de seu projeto e as dificuldades que encontrou no caminho. “O Datanexus tinha a melhor tecnologia da época, com um sinal preciso e emitido por celular. A nossa mostra era muito mais apurada, pois não aceitávamos barreiras. Colocamos aparelhos em favelas, coisa que o Ibope não fazia”, conta. Financiado pelo SBT, o instituto logo apresentou números que colocavam em dúvida não só a alta audiência da Globo, mas de toda a TV brasileira.
No dia em que convidou todos os dirigentes das emissoras para uma reunião em que apresentaria os novos números do mercado, Novaes se lembra que também naquela ocasião, só a Globo não apareceu. Durante sua apresentação, o cientista político revelou um dado perturbador: a audiência total da televisão brasileira é 10% menor do que pensava o mercado. “Na saída, o Johny Saad, da Band, me disse: ‘Então você está dizendo que meu negócio é 10% menor? Que vantagem eu levo?’. Resultado: as emissoras acabaram ignorando o novo instituto. Sozinho, o SBT acabou seguindo mesmo caminho.” Desconfio que será difícil (A Nielsen dar certo no Brasil). Há uma comunidade de interesses entre os diretores de marketing, das agências e as TV, que estão confortáveis com os números do Ibope”, diz Novaes.
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