Texto da redação do Fazendo Média
Sem nem imaginar o que acontecia naquele momento na Vila Cruzeiro, durante uns 30 minutos da tarde desse 25 de novembro, no CREA-RJ estava uma companheira da África do Sul contando como a proximidade com a copa do mundo fez crescer a violência do Estado e seu aparato repressivo. Foram 55 mil agentes a mais reforçando o contingente policial. E quem esteve atento aos acontecimentos na área da segurança no estado do Rio em 2007, ano dos Jogos Panamericanos, em que a polícia fluminense matou mais de 1300 pessoas, tá ligado no que está por acontecer (ou seria, o que já está acontecendo?).
O que se diz é que a onda de ataques contra ônibus e alguns carros particulares que aconteceram nos últimos dias, e que foi o estopim para a mega-ultra-super-espetacular-operação militar que aconteceu nos complexos da Penha e do Alemão, é uma resposta de bandidos à perda territorial para as UPPs. Mas, ainda fazendo um paralelo de todo esse clima de terror com os mega-eventos esportivos que estão por vir, o deputado estadual Marcelo Freixo diz que as UPPs são “um projeto de cidade e não de segurança pública”. Alertando para o critério de distribuição dessas unidades policiais, ele ainda revela: “é o corredor da Zona Sul, os arredores do Maracanã, a zona portuária e Jacarepaguá, região de grande investimento imobiliário. Então, são áreas de muito interesses para o investidor privado. O Estado, portanto, retoma – militarmente – este território. A retomada é militar para permitir um projeto de cidade, que é a cidade Olímpica de 2016.”.
Porém, para a opinião pública, nacional e internacional, as coisas não podem aparecer desta forma. Há que se tomar o cuidado de transmitir uma situação de controle, e que quando esse controle está em risco, o Estado de imediato responde e… trava-se uma luta do bem contra o mal. Assim, pro emprego de tanta força do Estado, como foi visto, é preciso fazer com que a sociedade no geral acredite nessa força como legítima e necessária. E os grandes veículos de comunicação foram muito eficazes nesse sentido. Os jornais noticiavam com muita ênfase a ação de delinqüentes que incendiavam principalmente ônibus, mas também carros particulares pelo Rio e região metropolitana. Um pânico tomou conta da população que nem percebeu que o alvo da violência desses bandidos era sempre o patrimônio, e nunca as pessoas. Mesmo assim, até quem não era dono nem de carro ou de ônibus, ficou apavorado. Feito isso, consumada a invasão com roubo de pertences e dinheiro de moradores, mortes e prisões arbitrárias, o passo seguinte foi fazer o povo acreditar que a operação significou um marco histórico que fez a violência urbana do Rio virar coisa do passado. E, com o poder de imagens bem selecionadas, somadas às narrativas tendenciosas, muitos morderam a isca e acreditaram na farsa.
O Rio de Janeiro hoje tem mais de mil favelas e quase todas elas sob influência de algum grupo criminoso. Não é sensato acreditar que operações dessa envergadura acontecerão em todas essas comunidades. E até que acontecessem, mesmo que o combate ao tráfico de drogas fosse de fato levado a sério até a sua extinção, ainda assim, sem combater as mazelas sócio-econômicas que produzem o bandido, o máximo que se consegue é a migração desses delinquentes para outros setores do crime. E isso já foi verificado na nossa história recente.
O nomadismo criminal
Duas, das quatro facções que hoje controlam as atividades ilícitas nas favelas do Rio nasceram no fim dos anos de 1970 no presídio da Ilha Grande. Lá, no contato com presos políticos, os presos comuns aprenderam um pouco de táticas de guerrilha, que foram adaptadas pras suas práticas de crimes comuns. Isso se refletiu de imediato na grande incidência nos casos de assaltos a bancos ocorridos nos anos 80. A concentração do crime nessa atividade e com sofisticação inédita entre os bandidos comuns, pode ser apontada como uma “herança” da guerrilha, assim como os seqüestros (sem – nem de longe – querer responsabilizar a militância da luta armada no surgimento desses grupos criminosos).
Com a ascensão de Leonel Brizola – um ex-exilado da ditadura militar, uma vítima da violação dos direitos humanos – ao governo do Rio de Janeiro, uma nova relação entre população pobre e segurança pública começou a se estabelecer. Uma transição de ditadura pra democracia que anistia assassinos e torturadores, cria uma atmosfera de impunidade que faz perpetuar a prática de tortura, assassinatos e outros abusos cometidos por agentes do Estado. E era isso que Brizola queria combater quando proibiu a polícia de meter o pé na porta dos barracos, como ela sempre fez. Incursões em favelas… só com mandado judicial.
Além disso, como tanto os assaltos a bancos como os seqüestros exigem muito planejamento, e os riscos são muito grandes, assim como são grandes as perdas tanto humanas quanto materiais, a bandidagem começou a se focar mais no lucrativo comércio de drogas. Assaltos são crimes contra o patrimônio, e a nossa polícia nasceu em 1809 justamente para garantir o patrimônio, numa época em que o patrimônio estava matando seus donos e fugindo das fazendas para articular a resistência nos quilombos. Já o consumo de drogas vinha adquirindo um glamour cada vez maior no interior das classes média e alta. Assim sendo, trata-se de uma atividade criminosa que ao invés de atacar a classe dominante, ao contrário, acontece com a sua conivência. Essa transição do foco de atuação da bandidagem fluminense do roubo para o comércio varejista de drogas está bem retratada no filme Cidade de Deus, de Fernando Meireles. Nele há uma cena em que o personagem Zé Pequeno reflete, junto com seu amigo Bené, acerca das vantagens do tráfico sobre o assalto. Para isso ele toma como referência o personagem Cenoura, que vendia tóxico e, ao contrário deles, ostentava riqueza pela favela. E se, por um lado as favelas estavam “resguardadas” pela bem intencionada política de respeito aos direitos humanos implementada por Brizola, por outro, elas têm uma geografia que foi favorável para quem quis se defender de ataque inimigo. Por esse motivo foi nelas que se instalou o grosso do comércio varejista de narcóticos.
Ter praticamente acabado com os assaltos a bancos e os seqüestros (o Disque-Denúncia foi criado na ocasião do seqüestro do filho do presidente da Firjan, em 1995, e praticamente extinguiu essa prática criminosa no Rio), não significou ter acabado com o crime no Estado do Rio. Ele só se deslocou de modalidade e de território. Entendendo isso, fica fácil de entender que pode-se até instalar UPPs nas centenas de favelas que hoje existem no Rio, mas se não atacarem as raízes econômicas e sociais da criminalidade, ela sempre existirá. Com caras e endereços novos, mas sempre existirá. Como no passado, vai se encerrar um ciclo pra dar início a outro. E todo aquele espetáculo midiático montado e transmitido quase que 24 horas por dia via algumas emissoras de TV, só tinha mais uma tarefa além da disputa por audiência, e glamourização da violência do Estado: distrair as mentes pra um fato já cantado nos versos de uma música dos Racionais MCs:
“Assustador é quando se descobre/ que tudo deu em nada e que só morre pobre.”
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