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domingo, 26 de maio de 2013

Comissão da Verdade - 1964, repressão, Jonas e o Lobisomem



henry Henkels - escrito em maio de 2004 (variações baseadas no estudo What's History – Edward Carr)

 OS FATOS - Jonas voltando de uma festa em que bebeu mais que a prudência recomenda, num carro com os freios desregulados e em mau estado, em um trecho em que a visibilidade é muito ruim, atropela e mata um Lobisomem (espécie em extinção) que atravessava a rua para comprar cigarros no botequim da esquina.

UMA COMISÃO - Após a confusão ter sido resolvida, encontramo-nos, digamos, na delegacia de polícia para investigar as causas da ocorrência. Teria sido em virtude do estado de semi-embriaguez do motorista – o que levaria a um processo criminal – ou foi devido ao defeito nos freios? Neste caso a responsabilidade recairia sobre alguma oficina que revisara o carro algum tempo antes? Ou foi devido à má visibilidade naquele trecho? Neste caso as autoridades municipais e de trânsito teriam sua parcela de culpa. Enquanto estamos discutindo essas questões práticas, dois cavalheiros distintos – que não tentaremos identificar – irrompem na sala e começam a argumentar, com grande fluência, que, se o Lobisomem não fosse um fumante inveterado e tivesse ficado sem cigarros naquela noite, ele não estaria atravessando a rua e não teria sido morto. Portanto a causa da morte do Lobisomem foi seu irresistível desejo por cigarros, e qualquer inquérito que despreze esta causa será mero desperdício de tempo e quaisquer conclusões daí tiradas não farão sentido. Bem, o que fazemos? Logo que nos foi possível interromper o fluxo de eloquência, impelimos nossos dois visitantes, gentil mas firmemente, em direção à porta, instruindo o porteiro para que não os admitisse de novo sob qualquer argumento e continuamos nosso inquérito. Mas que resposta temos para os dois cavalheiros que nos interromperam? Naturalmente o Lobisomem foi morto porque fumava. Tudo que os adeptos do acaso e da contingência na história dizem é perfeitamente verdadeiro e perfeitamente lógico.

Se alguém diz ao homem comum que o Lobisomem foi morto porque Jonas estava bêbado, ou porque os freios não funcionaram, ou ainda porque a visibilidade naquele trecho era ruim, provavelmente preferirá alguma dessas explicações como mais sensatas e racionais do que o seu desejo por cigarros. Mas certamente existirão pessoas – as que tem aversão ao tabagismo, por exemplo – que preferirão atribuir a causa “real” da morte do Lobisomem aos cigarros. Estes últimos seriam imediatamente discriminados como ‘reacionários’ pelos adeptos das outras explicações, mais óbvias, para o ocorrido, e se defenderiam por sua vez dizendo que os primeiros é que seriam ‘obtusos’ em suas conclusões. 

Voltemos, nós os investigadores especializados (historiadores) ao inquérito sobre as reais causas da morte do Lobisomem. Não tivemos dificuldade em reconhecer que algumas das causas eram racionais e “reais” e que outras eram irracionais e acidentais. Mas com qual critério fazemos a distinção? A faculdade da razão é normalmente exercida com algum propósito. Determinados intelectuais as vezes admitem que racionam por brincadeira, mas de uma maneira geral, as pessoas racionam com um objetivo. Quando reconhecemos certas explicações como racionais, estamos fazendo distinção entre explicações que serviram a algum fim e explicações que não serviram. No caso em discussão, faz sentido supor que a repressão ao desregramento alcoólico dos motoristas, ou um controle mais rigoroso sobre as condições dos freios, ou um melhoramento do traçado das ruas, pode contribuir decisivamente para reduzir o número de acidentes fatais no trânsito. Inicialmente não parece fazer sentido supor que a redução de acidentes fatais de transito possa ser reduzido impedindo-se as pessoas de fumarem (embora seja um fator real envolvido em nosso caso). Este foi o critério pelo qual fizemos nossa distinção. O mesmo se aplica à nossa atitude em relação a causas na história.

PASSADO, PRESENTE E FUTURO - O presente não representa mais do que uma existência ideal, uma linha divisória entre o passado e o futuro. Quando falamos do presente, quase sempre introduzimos uma outra dimensão de tempo na narrativa. É fácil perceber que, desde que o passado e o futuro são partes do mesmo intervalo de tempo, o interesse no passado e o interesse no futuro estão interligados. A linha de demarcação entre os tempos é traçada quando as pessoas cessam de viver apenas no presente e tornam-se conscientemente interessadas tanto no seu passado como em seu futuro. A história começa com o legado da tradição; tradição significa transferência dos hábitos e tradições do passado para o futuro. Registros do passado começam a ser mantidos em benefício das gerações futuras... ...Os bons historiadores, quer consciente ou inconscientemente, tem o futuro no sangue. Além da pergunta “por que?”, o historiador também deve perguntar “para onde?”.

HISTÓRIA E PROGRESSO - Para o historiador o fim da evolução dos acontecimentos ainda não ocorreu. É alguma coisa ainda infinitamente remota, os indicadores só se tornam visíveis a medida que avançamos.

OBJETIVIDADE E MUDANÇAS - Voltemos ao triste caso da morte do Lobisomem. A objetividade da investigação que fizemos sobre aqueles acontecimentos não dependiam de se identificar os fatos corretamente, pois os mesmos não estavam em discussão, mas se distinguir entre fatos reais ou importantes, nos quais estávamos interessados, e os fatos acidentais, que poderíamos deixar de lado. Achamos fácil estabelecer esse diferencial, porque nosso padrão ou fator de importância, base de nossa objetividade, era claro e importante para os objetivos em vista, isto é, a redução das mortes em acidentes de tráfego. O historiador, da mesma forma, precisa, na sua tarefa de interpretação, do seu padrão de importância, que também será seu padrão de objetividade, a fim de distinguir entre o significativo e o ocasional. Nesse caso o padrão de importância depende da finalidade que se tem em vista. Trata-se porém de um fim que se desenvolve gradativamente, pois a interpretação que se desencadeia do passado é uma função muito necessária na história. O pressuposto tradicional de que a mudança sempre tem que ser explicada em termos de algo fixo e imutável é contrária à experiência do historiador. “Para o historiador o único absoluto é a mudança”.

DIREÇÃO DA HISTÓRIA - O absoluto na história não é algo no passado de onde partimos, tampouco algo no presente, pois todo pensamento presente é relativo. É algo ainda incompleto e em processo de vir a ser – algo no futuro em direção da qual nos movemos, que só começa a tomar forma à medida que nos deslocamos em sua direção, ao nos movermos, e segundo o qual, na medida em que avançamos, moldamos gradativamente nossa interpretação.

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