por Daniel Caetano, em seu blog
Há um bom tempo sabemos que a qualidade do acesso à Internet oferecido no Brasil - como a da maioria dos serviços, públicos ou privados - é sofrível quando comparada à de outros países do mundo
[1]. E, também como sempre, o preço é totalmente "fora da casinha". Para agravar a situação, os "provedores de acesso à internet" vieram agora com a ideia da "franquia de dados"
[2], um conceito importado da telefonia que, na cabeça dos burocratas, parece fazer todo o sentido. Mas não faz. E eu me proponho a explicar aqui, por A + B, porque não faz. Mas vamos começar do começo.
Um Breve Histórico
O acesso a Internet no Brasil sempre foi sofrível: lento e com pouca penetração. Acesso à Internet um pouco mais rápido, só nos grandes centros urbanos e a preços irreais
[3].
Tendo em mente a importância da Internet para o desenvolvimento social, cultural e econômico do país - já que a rede já é uma das principais infraestruturas de oferecimento de serviços e comércio do país - tem havido incentivo pesado na expansão da rede, seja por meio de isenções tributárias na "banda larga popular" e equipamentos de acesso, seja por meio de empréstimos subsidiados para a construção de infraestrutura
[4].
A fim de que tais medidas de renúncia fiscal façam sentido para a sociedade, as mesmas vieram acompanhadas de exigências com relação às empresas que vendem o "acesso à internet". Uma das principais exigências foi a melhoria entre a "velocidade contratada" e "velocidade garantida"
[5]. Quem não se lembra de assinar Internet de "10 megabits por segundo" e descobrir que, no contrato, apenas 10% dessa velocidade (1 megabit por segundo) era garantido? É praticamente um gato por lebre, não é?
Pois bem. É isso que a exigência legal atacou, obrigando que esse porcentual garantido fosse sendo elevado gradativamente até que, em algum momento no futuro, você pudesse comprar gato e levar gato (ou comprar lebre e levar lebre). As empresas reclamaram, com o argumento de que é inviável, tecnicamente, vender o serviço com a garantia exigida. Será que elas têm razão?
Os limites do acesso à Internet
Observando que em outros países as empresas conseguem entregar o que vendem, percebe-se, de saída, que tem algo errado com a reclamação das empresas. Na realidade, o que ocorre é que elas querem fazer marketing de enganação e vender mais do que são capazes. Para entender isso, é preciso antes entender o que limita a conexão à Internet, isto é, porque não podemos ter Internet com velocidade infinita.
Sem entrar em detalhes muito técnicos, existe um limite físico para a transferência de dados entre dois pontos. Esse limite está relacionado à velocidade com que os elétrons transitam no fio de cobre (cabo UTP), a luz em uma fibra óptica ou as ondas eletromagnéticas no ar (wi-fi), além da própria técnica de codificação de informações (para entender, uma analogia simples: um ideograma japonês "codifica" uma "ideia" com um único símbolo, ao passo que, em português, o "código" para a mesma "ideia" usa vários símbolos, gastando muito mais papel)
[6].
Dado esse limite físico, um determinado conjunto de cabos, seja de cobre ou fibra, tem um limite físico de transferência, ou seja, quantos mega ou gigabytes por segundo ele consegue transmitir. Essa infraestrutura pode ser compartilhada com vários usuários simultaneamente - mais uma vez, não vou entrar em aspectos técnicos aqui - mas, grosso modo, é como uma rodovia: existe um limite de carros que podem passar lá por hora, mas podem passar ao mesmo tempo carros de várias pessoas.
Como a infraestrutura de rede é a única limitação significativa com relação à qualidade de serviço e sua expansão tem um custo relativamente alto, é exatamente o compartilhamento da infraestrutura que permite que o preço do serviço, para os usuários comuns, possa ser menor. Para deixar mais claro como funciona o compartilhamento, nada melhor que um exemplo prático.
Compartilhando uma Conexão
Digamos, simplificadamente e a título de exemplo, que uma empresa tenha uma infraestrutura que consegue transferir 100 megabits por segundo. Dentre as diversas possibilidades de negócio, uma das formas de vender acesso seria dividir essa conexão única em 10 conexões virtuais de 10 megabits por segundo e vender cada uma delas para um cliente, totalizando 10 clientes. Nesse panorama, cada usuário teria uma conexão de 10 megabits por segundo que poderia ser usada por 24 horas por dia. Vamos chamar esses "10 megabits por segundo" de "banda".
Uma empresa resolve adotar esse modelo, mas, depois de alguns meses, ela descobre que muito raramente há mais de 1 cliente conectado simultaneamente. Isso significa que essa empresa, então, está com sua infraestrutura ociosa: na esmagadora maioria do tempo ela tem uma banda de 90 megabits por segundo "sobrando".
Inicialmente ela pensa: "bem, eu poderia vender para 100 pessoas, então, para que tivéssemos até 10 pessoas simultâneas!", mas os engenheiros avisam: "não dá... se a média de acesso for excedida e as 100 pessoas acessarem simultaneamente, não conseguiremos atender a taxa de 10 megabit por segundo para cada cliente!".
O gestor tem, então, uma ideia brilhante: "vamos vender, então, para 100 pessoas". E o engenheiro fala: "E como vamos resolver o problema?" e o gestor diz: "Vamos dizer que vendemos uma Internet de 10 megabits por segundo, mas, no contrato, iremos garantir só 10% desse valor, ou seja, 1 megabit por segundo". Cem pessoas, 1 megabit por segundo por pessoa, totaliza 100 megabits por segundo.
Como a "banda" só é consumida quando efetivamente há troca de dados - o simples fato de estar conectado não consome praticamente nada. Enquanto a troca de dados era pequena - páginas web compostas por textos e fotos em baixa resolução - a ideia funcionou e a maioria das pessoas tinha a impressão de realmente estar com um acesso de 10 megabits por segundo, mesmo quando há mais de 10 pessoas conectadas simultaneamente.
Ainda assim, considerando que os contratos são do tipo "adesão" e que, culturalmente, a grande maioria das pessoas não lê esses contratos, a prática acaba por induzir o cliente ao erro, a levar gato por lebre, configurando uma espécie de "conto do vigário". No código penal, isso se assemelha ao que é descrito no artigo 171, o famoso "estelionato", onde está claramente expressa a situação em que o agente induz ao erro mediante artifício ou ardil.
Foi exatamente por isso que uma legislação foi criada para regular esse aspecto e, ao ampliar a velocidade garantida com relação à velocidade contratada6, obrigou também as empresas a ampliar sua infraestrutura. Isso custa dinheiro, é verdade... Mas se é possível oferecer o serviço corretamente vendido a um bom preço em outros países, como aqui, mesmo com todos os incentivos, não seria possível? É claro que é, mas essa choradeira tem nome: "lucro Brasil", isto é, as empresas, no Brasil, exigem uma lucratividade muito maior que em outros lugares do mundo para se considerarem "rentáveis". Além disso, a meta, em geral, não é "lucrar o máximo possível", mas "lucrar o máximo possível com o mínimo investimento", já que essa segunda abordagem reduz significativamente os riscos do negócio.
De qualquer maneira, o fato é que, por força da lei e pressão popular, as empresas passaram a ter que se adaptar a isso. Mas elas "revidaram".
A "Modulação" de Tráfego (Traffic Shaping)
Com o passar do tempo e a evolução da sociedade moderna, o uso da rede cresceu. Tudo passou a usar a rede, que se tornou universal e onipresente. As pessoas passaram a trocar arquivos de música, fotos, assistir vídeos... tudo pela Internet. E, para garantir a banda necessária, isso obviamente exigiu - e exige - investimento por parte das empresas. E investimentos significam mais riscos e reduções, ainda que temporárias, nas margens de lucro.
Assim, na visão das empresas, algo precisava ser feito. E elas começaram a preparar novas estratégias: limitar o acesso a certos serviços, grandes consumidores de banda, como P2P, streamingde áudio e vídeo (YouTube e NetFlix, por exemplo). Essa limitação poderia se dar de duas formas: por meio de restrição de velocidade ou pela limitação completa desse acesso, o que chamaram, eufemisticamente, de "modulação de acesso" ou "modulação de tráfego"
[7].
Na prática, significaria impedir o usuário de acessar os serviços, de maneira que ficasse menos custoso, para as empresas provedoras, oferecer uma conexão "mais rápida". Pense assim: se você impedir que caminhões e ônibus passem por uma estrada, ela vai ficar menos cheia. No entanto, muitos produtos deixarão de ser entregues nas cidades cujo acesso é feito por essa estrada, limitando o acesso aos produtos por parte da população e limitando o mercado dos fornecedores dos produtos.
Ocorre que, mais uma vez, a legislação - o Marco Civil da Internet
[8] - impediu as empresas de adotar esse esquema, com a imposição de um "direito" que ficou conhecido como neutralidade da rede
[9], isto é, todos os serviços devem estar igualmente disponíveis a todos os usuários que compartilham uma conexão, ainda que cada um deles tenha diferentes limitações de bandas contratadas. Adicionalmente, quando houver muitos usuários conectados, por esse princípio, não é permitido que "quem paga mais tenha menos restrição", ou seja, se tem gente demais usando a conexão, ela ficará igualmente ruim para todos.
A neutralidade, indiretamente, também impediu outra "estratégia" das empresas provedoras de acesso à internet: elas queriam cobrar do YouTube, NetFlix, Google, Facebook... para que você pudesse usá-los, sob a alegação que o negócio dessas empresas gera muito tráfego de dados e oneram o sistema. Essa justificativa é absolutamente sem sentido e de completa má fé por duas razões:
a) as empresas que prestam esses serviços (YouTube, NetFlix etc.) já pagam uma infraestrutura monstruosa para ter seus servidores online;
b) significaria que as empresas provedoras de acesso estariam "punindo" outras empresas por tornarem o acesso à Internet útil.
Isso é tão absurdo quanto a Rede Globo querer cobrar da Warner Bros para passar um filme dessa produtora (ao invés de pagar por ele). Ou, por exemplo, como se a Petrobrás, diante das dificuldades financeiras atuais, quisesse cobrar das montadoras de veículos porque "os carros consumem muita gasolina".
Bem, o fato é que o Marco Civil da Internet veio justamente para impedir que as empresas sacaneiem o consumidor; nesse quadro, era esperado que as empresas se resignassem a vender o serviço com a qualidade que, de fato, possam entregar... e fim da história. Mas não se resignaram. E, agora, voltaram com toda a força.
A Origem da Franquia de Internet
Há muito tempo algumas empresas - oriundas de serviços como telefonia - inserem cláusulas em seus contratos
[10] indicando uma "franquia", isto é, um limite máximo de dados que pode ser transferido em um mês; se o usuário superar aquele limite, ele terá seu acesso suspenso, limitado ou, no mínimo, terá que pagar um valor adicional.
O argumento das empresas - e defendido pela ANATEL - é que se temos franquia na telefonia, podemos ter na Internet. Mas antes de a aceitarmos para a Internet, vamos ver de onde ela vem?
Embora não envolva um consumo significativo de recursos, a telefonia fixa começou com um sistema analógico, que envolvia um limite físico de conexões simultâneas
[11]: ainda que falar ao telefone não "consumisse" conexões, elas ficavam bloqueadas durante a conversa e, por consequência, não era possível que todos pudessem conversar ao mesmo tempo - algo parecido com a Internet, mas não igual. E por que não é igual?
Imaginemos que um sistema de telefonia analógico antigo fosse capaz de 10 conexões. Por característica da tecnologia, essas conexões não são compartilháveis. Isso significa que se 20 pessoas estiverem conversando (10 ligações), quando a 21ª pessoa tentar pegar o telefone, o mesmo indicará, com o som característico, que todas as conexões estão ocupadas.
Diferentemente do que ocorre com a tecnologia digital da Internet, não era possível, na telefonia analógica, que mais de 10 ligações fossem feitas com as 10 conexões, nem baixando a qualidade. Simplesmente não era possível. Sendo assim, para evitar que as pessoas ficassem "penduradas" no telefone, o governo estabelecia um "limite razoável" de tempo que as pessoas deveriam usar por mês e esse total era vendido como um "pacote mensal", a um preço bastante baixo por minuto, na forma de "assinatura" (ou franquia). O que a pessoa usasse além dessa franquia, custaria muito caro.
Essa franquia garantia que as pessoas não ficassem "penduradas" no telefone pois, caso precisassem ligar, gostariam de poder fazê-lo sem ter que gastar uma grana preta. Em outras palavras, manteria o sistema ocioso a maior parte do tempo possível, para evitar que quando alguém fosse usar, ele estivesse ocupado. Além disso, essa estratégia permitia que as empresas de telefonia tivessem um fluxo contínuo de recursos (as assinaturas), mesmo que as pessoas não usassem efetivamente a linha.
A Farsa da Franquia de Internet
Se na telefonia a franquia consistia em limitar o número de minutos que o cliente poderia usar o telefone pagando um valor baixo, no caso da Internet a franquia consiste em limitar a quantidade de dados que o cliente pode transmitir ou receber pela rede; isso significa que, após assistir a uma quantidade de vídeos no YouTube ou NetFlix, ela não poderia mais assistir a vídeos ou transferir arquivos, seja porque sua conexão foi cortada ou porque a velocidade foi reduzida de maneira a dificultar a transferência de dados.
No entanto, essa medida é discutível no que tange ao acesso à Internet. Observe: diferentemente do que ocorria com o telefone, na Internet a qualidade da conexão é variável e a velocidade de conexão cai automaticamente se há muitos usuários simultâneos
[12]. O caminho para manter a qualidade/velocidade boa para todos é muito simples: se a empresa não consegue atender 100 clientes, cada um deles usando 10 megabits por segundo, ela deveria vender menos megabits por segundo para cada cliente e o problema estaria resolvido, sem franquia. Como em qualquer negócio, não faz sentido vender o que não se pode entregar.
Ocorre que as empresas no Brasil já se acostumaram a vender "velocidade eventual" ao invés de "velocidade real". Isto é: eles "vendem" uma velocidade que você só consegue atingir se não tiver mais ninguém usando a Internet com você... o que, convenhamos, com as novas tecnologias, é praticamente impossível de se manter.
Como as empresas não podem modular o acesso e nem entregar muito menos velocidade do que o contratado... a estratégia foi inventar um meio artificial para que as pessoas queiram evitar usar a Internet - e observe a bizarrice: você quer vender um produto já amarrado a uma estratégia para o usuário não usar esse produto.
Curiosamente, o modelo da franquia serve como uma luva para essa necessidade. Vejamos como se dá o estelionato, nesse caso.
Uma empresa quer oferecer apenas 1 megabit por segundo, mas quer fazer propaganda que entrega 10 megabit por segundo. O que ela faz, então, já que para isso funcionar tem que manter seus usuários afastados da Internet? Simples: se o usuário ficasse conectado o tempo todo a 10 megabits por segundo, ele poderia transferir 3.160 gigabytes em um mês; se, por outro lado, ele fizesse o que a empresa quer, ou seja, usasse 1 megabit por segundo, ele iria transferir, no mês todo, cerca de 316 gigabytes. Então... o que a empresa faz? No contrato e na propaganda ela coloca, em letras garrafais: 10 megabits por segundo, mas, ao mesmo tempo, coloca uma franquia de 300 gigabytes para um mês - um valor que o usuário, em geral, não sabe avaliar se é pouco ou muito. Na prática, no entanto, isso significa que, se esse usuário de fato usar os 10 megabits por segundo, ele só vai poder usar a conexão por 3 dias!
Aí o usuário continua lendo o contrato e descobre que a empresa é muito boazinha: ela não vai cortar a internet dele quando a franquia acabar. Depois de acabar a franquia, a conexão só vai cair para 1 megabit por segundo!
Dessa maneira, eu driblo a lei que impede a empresa de vender gato por lebre e ela vende... gato por lebre!
Mas não fique feliz: é ainda pior. A maioria das empresas, para uma conexão dessas, coloca franquias ainda mais ridículas, como 8 ou 20 gigabytes... e a velocidade, após o fim da franquia, acaba sendo de uma pequena fração de megabit por segundo.
Os Falsos Dilemas
A ANATEL vem alegando que "a Internet poderia ser cobrada como água e luz, sem franquia, mas que isso ia causar uma conta enorme no fim do mês, prejudicando os clientes"
[13]. Além de ignorar que água e luz possuem franquia - o pagamento mínimo - essa afirmação é uma falácia tão grande que só pode ter duas explicações: completa inépcia ou profunda má fé.
De maneira totalmente diferente da água e luz, quando se usa a rede não há consumo significativo de recursos, salvo o irrisório consumo de energia elétrica para alimentar os sistemas. Sendo assim,não há pelo quê cobrar uma fortuna, se não pelo "aluguel" da própria infraestrutura.
Assim como quando se aluga um apartamento, a pessoa procura um que esteja dentro de suas posses e o aluga. Há apartamentos melhores, maiores... e há os piores e mais apertados. Existe ainda, sempre, a possibilidade de ter um apartamento melhor compartilhado na forma de uma república. Em um mercado capitalista, feliz ou infelizmente, esses mesmos conceitos se aplicam - ou deveriam se aplicar - à Internet.
Desta forma, deve estar disponível no mercado uma ampla gama de alternativas, com preços justos com relação ao que é oferecido. A formação de um cartel que obriga o usuário a conviver com uma limitação grosseira - ou ter de pagar um preço irreal para eliminar essa limitação - é um abuso intolerável. Estamos falando de um serviço essencial ao desenvolvimento do país e de seus cidadãos, e que já não pode mais ser tratado como algo supérfluo.
Sugestões da ANATEL como "procurar usar jogos que não usem a Internet"
[14], assim como sugestões similares que possam ser feitas - "compre DVDs e Blu Rays" ou "Vejam a Rede Goebbels de Televisão" - são tacanhas, obscurantistas até, e tentam não apenas atrasar o progresso, mas causar retrocesso. São sugestões absurdas, como se uma cidade como São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília não tivesse densidade de usuários de Internet suficiente para custear a infraestrutura. Mesmo com todos os subsídios governamentais. E a despeito de todos os exemplos em dezenas e dezenas de países do mundo que demonstram claramente o contrário.
As Soluções
Não dá para negar que o "uso da Internet para tudo" impõe desafios às empresas. A demanda de transferência de dados tem crescido muito e, além do tráfego legítimo, também existe o tráfego dispensável - olá você, que já baixou uns 300 anos de músicas e filmes - e certa racionalização é necessária. Essa racionalização tem, de fato, feito com que exista certa tendência, na maior parte dos países, de haver algum limite de transferência de dados - ou seja, a malfadada franquia
[15]. No entanto, um advento para promover racionalização não pode restringir o uso normal. Da mesma forma que não é razoável que todo mundo resolva fazer download na velocidade máxima 24 horas por dia, também não é admissível que se estabeleça uma franquia que impeça uma pessoa de usar a Internet normalmente - ao ponto de ouvirmos sugestões escabrosas como as propostas pela ANATEL.
Nos outros países em que é possível observar a existência de franquia, via de regra ela é muito mais generosa, mesmo considerando a telefonia celular - cuja infraestrutura costuma ser bem mais cara que a Internet "fixa". E, ainda assim, não se ouve falar de "cortar a conexão", mas sim da velocidade ser limitada a um valor mais baixo, mas ainda satisfatório para a maioria das funcionalidades. De qualquer forma, o que se observa nesses países é o uso da franquia como uma forma de coibir abusos - pessoas ou empresas que deveriam contratar uma conexão dedicada, mas contrataram uma conexão compartilhada. No entanto, para atingir esse nível de qualidade, é necessário que as empresas invistam em infraestrutura.
O fato é que, infelizmente, as empresas não estão interessadas em investir. Elas agem como uma concessionária de rodovia que, tendo construído uma estrada de faixa simples, passe a cobrar um pedágio absurdo "porque tem muita gente querendo usar a rodovia", mas jamais pense em ampliar o número de faixas. É uma situação insustentável e, pelo andar da carruagem, vai exigir ainda mais intervenção estatal - o que, em geral, não é bom... a não ser quando as empresas agem com a má fé que estamos testemunhando.
A única solução significa investimento. Investimento significa custo e, principalmente, tempo. E até lá?
Até lá as empresas precisam parar de vender sonhos. Se uma empresa não pode vender 10 megabits por segundo, venda apenas o que pode entregar. Na prática, seria uma questão de adaptar o discurso ao serviço que realmente é prestado.
Hoje se vende "conexão de 15 megabits por segundo com franquia de 80 gigabytes"... mas o que se entrega é "conexão de 0,25 megabit por segundo que, quando houver poucos usuários, pode chegar a 15 megabits por segundo" ou 16. Afinal, se você fizer as contas, verá que, em um mês, consumindo continuamente 0,25 megabit por segundo, você fará um download de 80 gigabytes!
Obviamente as empresas não querem essa mudança de discurso, pois isso mostraria o quão precário é o serviço que prestam, a um preço exorbitante - para se ter uma ideia, o plano citado no parágrafo anterior não sai por menos de R$ 90,00
[16]!
Considerando os preços e condições praticados internacionalmente, a franquia só faz sentido para coibir abusos ou para oferecer planos muito mais baratos que os atuais, visando pessoas que fazem uso eventual da Internet - muitos idosos, por exemplo. Os preços cobrados hoje, no Brasil, ao serem comparados com o de outros países, são altos até mesmo para a velocidade cheia e sem nenhum tipo de franquia. Querer impor franquia, com os valores e garantias hoje existentes, só mostra uma profunda falta de visão e desconexão do empresariado com a realidade.
É exatamente por essa razão que os "provedores de acesso à Internet" se associaram às empresas de telecomunicações, como emissoras de TV e TV a Cabo - que tem um gigantesco poder sobre os políticos e estão perdendo suas audiências para serviços mais modernos e práticos com o NetFlix
[17] e YouTube - para tentar impor esse modelo antiquado, lesivo ao usuário e, para piorar, que promove o atraso generalizado.
O desenvolvimento de nossa sociedade não pode ser amarrado por empresas anacrônicas como emissoras de TV aberta ou fechada. Que se adaptem à modernidade, que mudem de ramo ou que fechem suas portas. Não existe mais espaço para exigir que as pessoas aguardem acabar a "novela das oito" para assistir a um filme de quatro anos atrás; não existe mais espaço para obrigar artistas a pagarem produtoras e caríssimas distribuições físicas de CDs e DVDs; não existe mais espaço para que as pessoas sejam impedidas de fazer home office quando necessário.
A evolução é inexorável e a sociedade se recusará a retroceder à realidade do século XX.
[NOTAS]
1) Não acredite em mim... analise o
ranking da velocidade de Internet do Brasil em 2014, da Veja.
2) Veja o que o G1 diz sobre as
franquias de dados.
3) Não acredite em mim, veja a
análise do CGI.Br em 2011 e a
análise do G1 em 2015. Há uma
análise comparativa do TecMundo, de 2014, também. Em termos de preço, veja
análise no UOL, de 2013 ou a análise de 2011, da ViaWeb. Você pode sair por aí consultando os sites de empresas em outros países. Lembre-se, é claro, de dividir isso pela renda média do país... ou pelo menos comparar com o preço do BigMac.
4) Não acredite em mim! Conheça o
Plano Nacional de Banda Larga, os
incentivos fiscais para expansão da rede de fibra óptica, a
Banda Larga Popular e o
incentivo ao consumo de aparelhos de acesso à internet, como notebooks, tablets e celulares.
5) Veja a
resolução da ANATEL que oficializa essa aproximação entre a velocidade contratada e a velocidade real.
6)
Esse artigo explica um pouco mais sobre como fazer o cálculo do limite.
7) Apesar de "proibido" pelo Marco Civil da Internet, pode ser que a sua provedora pratique o traffic shaping. A
TecMundo fala sobre isso e como verificar.
8) Conheça a
Lei 12.965 de 2014, que ficou conhecida como Marco Civil da Internet.
9) Conheça mais sobre
neutralidade da rede.
10) Não acredite em mim! Veja
matéria de 2009, da TecMundo, já falando sobre franquia de dados.
11) Se tiver curiosidade, veja
como funciona a rede de telefonia comutada.
12)
Esse texto fala de "gato de internet", mas no quadro fala sobre a redução pelo compartilhamento... isso ocorre também com o cabo do seu provedor de internet.
13) Veja só a
comparação esdrúxula do presidente da ANATEL.
14) Olhe a
sugestão divertida do presidente da ANATEL.
15) Segundo a TecMundo,
franquia na Internet fixa é, realmente, uma tendência mundial.
16) Olhe, como exemplo, a
tabela do Vírtua, da NET.
17) Não acredite em mim, veja a matéria do site
Adoro Cinema!