* Este blog luta por uma sociedade mais igualitária e justa, pela democratização da informação, pela transparência no exercício do poder público e na defesa de questões sociais e ambientais.
* Aqui temos tolerância com a crítica, mas com o que não temos tolerância é com a mentira.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Porque desisti das discussões polêmicas no Facebook

Sísifo, de Tiziano, óleo sobre tela 237 cm × 216 cm - 1548

por Thiago Venco & Daniel Baiardi (que desenvolvem o Labirinto do Desacordo), publicado no blog Scribe



Zuckerberg nos condenou ao mesmo castigo de Sísifo

É inútil empurrar a "pedra" do debate morro acima: a discussão vai rolar timeline abaixo no dia seguinte


Se você é daqueles que acha que "discutir no Facebook é uma perda de tempo"... VOCÊ ESTÁ CERTO. Leia este texto até o fim: acreditamos ter encontrado a prova científica - e portanto filosófica - que explica perfeitamente porque apenas 44 a cada UM MILHÃO de discussões no "face" chegam a algum lugar (na verdade, os números podem ser ainda piores).

Não, não foram os autores do Labirinto do Desacordo que chegaram a esta notável e precisa conclusão: foi um vencedor do prêmio Nobel em Economia e do prêmio Turing por contribuições notáveis a computação - ainda que ele tenha falecido 3 anos antes da fundação desta titânica rede social.


* * * * * * * *

Como no Mito de Sísifo, estamos condenados a ver desperdiçados nossos brutais esforços em debater temas importantes com nossos amigos.

Sísifo recebeu esta punição: foi condenado a, por toda a eternidade, rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o duro esforço despendido.

Por esse motivo, a expressão "trabalho de Sísifo", em contextos modernos, é empregada para denotar qualquer tarefa que envolva esforços longos, repetitivos e inevitavelmente fadados ao fracasso - algo como um infinito ciclo de esforçosque, além de nunca levarem a nada útil ou proveitoso, também são totalmente desprovidos de quaisquer opções de desistência ou recusa em fazê-lo.


* * * * * * * *
Trágico: discórdia e conflito são oficialmente sinônimos. Na teoria do conflito não é bem assim; já na realidade da maior rede social do planeta, no império do "curtir", do "gostar", todo desacordo online será castigado: o nome do jogo ali é ASSINAR EMBAIXO. Há quem fique naturalmente IRADO ao menor sinal de discordância; o FB apenas agrava esse problema (aos milhões).

Ainda que o ser humano (demasiado humano) tenha sua parcela de culpa no cartório - devido à sua dificuldade crônica em argumentar - adianto que o principal responsável pela falência do debate no Facebook é sua própria estrutura, os elementos principais que o constituem:

- O botão "curtir"
- A interminável e caleidoscópica "linha do tempo"
- A sequência linear de "campos de comentários"

Creio que acionistas, sócios de Zuckerberg, já calcularam o prejuízo de um hipotético botão "descurtir" (um botão "discordar com ressalvas" seria utópico); para os chatos que não fazem login com o objetivo de consumir suas marcas prediletas, é suficiente concessão ao modelo de negócios (propaganda!) que exista um campo de texto que lhes sirva de arena neutra para suas divergências. Fale o quanto quiser: ninguém vai limitar seu "mimimi"; "o choro é livre"; se você quer ser o "mala sem alça" que vai ao FB pra "falar sério", o problema é seu.

Mas se o campo é livre, então porque a coisa teima em não funcionar para a discordância, para o debate construtivo - mesmo quando estamos nos dedicando de coração à empreitada? Porque a falência do debate "facebookiano" parece demais com uma maldição de um deus grego furioso com a impertinência dos reles mortais?

Você já deve ter experimentado o "efeito cascata" de uma divergência que virou discussão; de uma discussão que virou uma briga generalizada e desceu 300 postspágina abaixo; o respeito foi abaixo, qualquer chance de acordo veio abaixo... SÓ O TEMPO GASTO FOI PRA CIMA.

Acrescente à fórmula acima a caótica aleatoriedade de centenas de amigos seus trazendo à linha do tempo, segundo a segundo, os mais variados assuntos - alguns felizes, outros tristes, muita "zuera", muita coisa séria... sempre nos "tentando" a interromper nosso trabalho, não é mesmo?

INTERRUPÇÃO ALEATÓRIA: guarde essa ideia - ela é a principal chave do enigma do inevitável e inútil dispêndio de tempo e energia. Mas talvez não como você esteja imaginando agora... o problema não é o fato do "coffee break" (pausa pro café) ter virado a "checadinha nas notificações". Lembre-se: ainda estamos focados nos fenômenos que acabam com as chances de um bom debate no "Face".


* * * * * * *

Chega de mistério: revelemos o pensador e o pensamento que mataram essa charada. Trata-se de Herbert Simon, em seu fantástico artigo "Arquitetura da Complexidade".

Para nosso objetivo aqui, basta traduzirmos um trecho deste texto; uma parábola incrivelmente esclarecedora.


* * * * * * *

Era uma vez... ...dois relojoeiros: um deles se chamava Tempus e o outro, Hora.

Ambos montavam finíssimos relógios. Tempus e Hora eram altamente apreciados e suas lojas no Facebook* recebiam frequentes "curtidas", mensagens e comentários.

* (O texto é de 1962; portanto, na época, Simon disse que "os telefones de suas oficinas que tocavam constantemente"... mas enfim, o efeito para nosso problema é exatamente o mesmo!)


No entanto, Hora prosperava, mas Tempus se tornava cada vez mais pobre, até que sua loja faliu completamente. Qual a razão desta disparidade?

Os relógios que estes senhores montavam consistiam de 1.000 partes cada um. Tempus concebeu seu relógio de forma que, se ele estivesse apenas parcialmente montado, e fosse subitamente interrompido em sua montagem linear - peça após peça - parando o trabalho para responder a uma notificação aleatória em seu Facebook (...), sua construção imediatamente desmoronava e ele era forçado a remontar os elementos do relógio, um por um. O problema é que quanto mais os clientes apreciavam os relógios de Tempus, mais eles lhe mandavam mensagens, curtiam sua página, tornando mais e mais difícil que ele encontrasse condições ideais para finalizar uma construção, começando da peça 1 e chegando até a peça 1.000.

Os relógios que Hora faziam eram igualmente complexos se comparados aos de Tempus. Mas Hora concebeu sua engenharia de uma tal forma que ele era capaz de montar sub-conjuntos de 10 peças cada um. A cada 10 destes "sub-sistemas" completos, ele era capaz de montá-los novamente em um conjunto maior (um sistema de 100 peças, portanto); assim, a cada 10 conjuntos de 100 peças finalizados, ele completava seu relógio de 1.000 partes.

Assim, quando Hora tinha que parar para atender seus chamados no Facebook (...), ele perdia apenas o trabalho relativo ao "sub-sistema" de 10 peças que ele estava montando naquele instante, de modo que, apesar das interrupções aleatórias, ele era capaz de construir seus relógios em apenas uma fração das "hora-homem" gastas por Tempus.

* * * * * *




A partir daí, Herbert Simon faz o que chama de "razoavelmente simples análise quantitativa" das dificuldades de Tempus e Hora. Para facilitar, explico seu raciocínio sem a matemática:


1) Aplique uma taxa idêntica de interrupções "facebookianas", para ambos relojoeiros. Ou seja, a interferência que eles sofrem no trabalho é a mesma. Notem que, uma vez que o "ruído" é igual, este fenômeno isolado não explica porquê Tempus foi a falência.

2) Suponha que esta taxa de interferência "facebookiana", por menor que seja, possa ocorrer durante as montagens dos relógios. Deste modo, a chance deles nunca serem interrompidos fica limitada. Portanto, é lógico que a chance de Tempus terminar um relógio, partindo da peça 1 até a 1.000 sem nenhuma interrupção que o leve à estaca zero, é igualmente limitada.

3) Simon atribui uma taxa bem pequena de interrupção "facebookiana" para fazer suas contas: 1% de chance que eles sejam interrompidos.

A partir desta hipótese, ele conclui (surpreendentemente) que:


- Tempus leva 4.000 vezes mais tempo, na média, para terminar um relógio que Hora.
- A cada relógio concluído de Tempus, Hora terá obtido uma taxa de sucesso 111 vezes maior.
- Tempus vai perder na média 20 vezes mais trabalho para cada montagem interrompida (retroceder 100 partes, contra 5 de Hora)
- Tempus VAI CONCLUIR MÍSEROS 44 RELÓGIOS A CADA 1 MILHÃO DE TENTATIVAS (!!!)
- Hora, por sua vez, VAI CONCLUIR 9 RELÓGIOS A CADA 10 TENTATIVAS
- Tempus precisa fazer 20.000 vezes mais tentativas que Hora para acabar um relógio.



* * * * * *

As implicações desta chocante demonstração influenciaram muito mais a Teoria da Evolução do que os engenheiros do Facebook.

Isso porque interessa demais aos biólogos entender como é possível que os seres vivos tenham atingido tamanha complexidade, uma vez que o número de "tentativas" (gerações) não é tão grande assim. "Céticos" que desconheciam o trabalho de Simon fizeram uma contabilidade simplória de "quantidade de gerações x complexidade dos organismos" e geraram a patética falácia:

"Se Darwin estivesse certo, seria como se ao longo de milhões de anos, uma ventania qualquer finalmente fosse capaz de juntar as peças de um Boeing em um avião capaz de voar".



* * * * * *


Espero que você tenha percebido que o problema do Facebook, em relação ao debate, não é o fato dele ser uma das maiores fontes de distração do trabalho na contemporaneidade:

O problema estrutural do Facebook, que destrói a qualidade dos debates em seu ambiente, é o fato de que na comparação com a parábola dos relojoeiros sua arquitetura de sistema seja equivalente ao método "sequencial-linear" de Tempus: o Facebook, tanto em termos da "timeline" quanto dentro de um post específico, é incapaz de montar "sub-conjuntos" do debate que permitam que a a discussão seja retomada com pequeno prejuízo a cada interrupção.

E por "interrupção" devemos pensar não na distração "ordinária", mas sim, nos inimigos clássicos de debate (vide nosso texto "Um Bestiário do Desacordo em Massa"):

- Informações Falsas;
- Interpretações equivocadas;
- Negação Incondicional;
- Preconceitos Cristalizados;
- Rótulos Simplórios;
- Argumentos Inconsistentes (serviam para defender igualmente candidatos antagônicos, A e B);
- Agressões Irracionais;
- Multiplicação de Falácias;
- Promessas Impossíveis;
- Estatísticas Questionáveis;
- Meias Verdades;
- Blefes Convincentes;



Para concluir:

A simples idéia de que os posts existam para serem "gostados" já é por si só, um atentado estrutural ao objetivo de debater, pois nenhum debate inteligente é possível se todos estão ali para "concordar sem ressalvas".

A linha do tempo é uma avalanche sem fim, que enterra nossos esforços de concentração em um tema específico, forçando-nos a atentar para uma nova modalidade de "jornalismo", que chegou a uma tal velocidade de "notícias" que deveria se chamar "segundismo". Não há estímulo para o foco, ao contrário.

A linearidade sequencial dos comentários, que cruza as vezes dezenas de diálogos entre centenas de pessoas em um único post é tão estúpida quanto a metodologia do relojoeiro Tempus: simplesmente as interrupções te levam à estaca zero. Basta um ataque pessoal, uma informação falsa, um desentendimento, para que o foco no assunto se perca e começemos a discutir a própria discussão!


* * * * * *
Zuckerberg não está interessado em debates de qualidade; ele está focado em ganhar dinheiro, muito dinheiro, fazendo propaganda a partir do rastreamento (legal, mas imoral) de nosso comportamento.

Não é a toa que sua solução para controlar a proliferação de conteúdos de ódio, racismo, intolerância e violência, se resuma a um "algoritmo" que contabiliza cegamente a quantidade de queixas recebidas.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Árvores & Agricultura


Nota preliminar: Este blog já tratou deste tema em junho de 2011, o que pode ser visto aqui e aqui 


por Ana Lucia Ferreira, Embrapa 


O agricultor que preserva florestas naturais e mantém espécies arbóreas próximas obtém vantagens importantes para a sua lavoura, tais como disponibilidade de água, presença de insetos que polinizam a plantação e de pássaros que controlam pragas e doenças. Foi o que constatou um estudo da Embrapa realizado durante seis anos junto a agricultores assentados da localidade de São José da Boa Morte, no Município de Cachoeiras de Macacu, interior do Rio de Janeiro. As vantagens já foram percebidas com o aumento dos ganhos dos produtores que reduzem a quantidade de insumos aplicados, aumentam a produtividade e ainda podem ter uma nova renda com a venda de produtos das árvores frutíferas introduzidas na lavoura.

O objetivo da pesquisa era transformar práticas produtivas intensivas, conciliando a produção de alimentos com a conservação da biodiversidade e dos fragmentos florestais. O trabalho continuado junto a alguns produtores não só adequou práticas agroecológicas à realidade de suas lavouras, como também comprovou a importância de plantar árvores e de preservar as florestas nativas próximas às plantações. "Ao contrário do que muita gente pensa, o agricultor quer árvores na propriedade, mas ele não quer e nem pode ter extensas áreas plantadas", explica Mariella Uzêda, pesquisadora da Embrapa Agrobiologia (RJ).

A forma convencional de fazer agricultura durante anos, sem tomar os devidos cuidados, aliada à falta de árvores, transformou as áreas agrícolas em barreiras. Quando próximas aos fragmentos florestais, essas áreas trouxeram algumas consequências para os ambientes naturais. Um deles foi o fenômeno conhecido como efeito de borda, que provoca redução da quantidade de espécies na parte do fragmento florestal que fica mais próxima à área de plantio e se propaga para o seu interior quanto mais intensivo é o sistema produtivo.

Para os cultivos, as consequências também foram observadas. Os pesquisadores constataram, por exemplo, a diminuição e até o desaparecimento de algumas espécies de vespas nas lavouras distantes de fragmentos de floresta ou cercadas por cultivos com uso intensivo de agrotóxico. As vespas em geral habitam áreas naturais e frequentam os cultivos, possuindo um papel importante na polinização de diversas espécies vegetais e são de extrema importância para o controle de insetos-pragas.

A pesquisadora relata que foi preciso levantar os impactos daquele manejo sobre o meio ambiente, mostrá-los para a comunidade e explicar sobre os benefícios que aquela floresta poderia lhes trazer. Os pesquisadores mostraram que a relação com a floresta deveria ser uma espécie de uma troca de benefícios. "Não adianta você descartar a possibilidade de o agricultor produzir ou só obter resultados a longo prazo porque isso não funciona. Procuramos ouvir o que ele gostaria de fazer para reduzir esses impactos", complementa.

Pesquisa participativa

A pesquisa foi baseada em três pilares: o conhecimento da biodiversidade nativa, relacionando-a com o potencial econômico; o estudo das técnicas já existentes para a inserção de árvores na paisagem, relacionando-as aos interesses dos agricultores; e a adaptação das técnicas à realidade do agricultor que não pode deixar de produzir e obter renda.

Segundo a pesquisadora, para manter a biodiversidade e proteger os recursos naturais em fragmentos florestais, é importante que as áreas de cultivos localizadas no seu entorno também sejam manejadas de maneira adequada. Mariella explica que, assim como as vespas, outras espécies da fauna como as abelhas, borboletas e pássaros não estão somente nas matas, mas também circulam pelas lavouras e são agentes de polinização e de controle de pragas e doenças. "A ideia é que a agricultura consiga abrigar a biodiversidade silvestre, assim como os sistemas naturais possam ajudar os sistemas agrícolas", acrescenta.

A ciência tem conhecimento de que quanto mais inóspitas são as lavouras, menos chance de vida e maior perda de biodiversidade. Mas somente o argumento ambiental não é suficiente para convencer o agricultor. E, por isso, o trabalho dos pesquisadores passou também por um período de aproximação com a comunidade. "Foi essa vivência com eles que nos alertou para focarmos no potencial econômico das espécies florestais", conta a pesquisadora.

Nos três últimos anos de projeto, tendo como base os levantamentos florísticos realizados sobre espécies nativas nos fragmentos e a ajuda e conhecimento dos agricultores, os pesquisadores fizeram um estudo etnobotânico das espécies. "Nós procuramos saber como a planta é chamada por eles, se é utilizada para fins madeireiros, uso medicinal ou alimentação, se gosta de sol ou de ambiente encharcado. Então, fomos buscar com o agricultor o que ele conhecia", relata Uzêda. O resultado é uma lista de 80 espécies arbóreas com potencial para serem utilizadas nos diferentes ambientes encontrados na região.

Mais água disponível

Pelo menos vinte agricultores contribuíram para o estudo. Eles adotaram sistemas como cerca viva com gliricídia e espécies nativas, consórcio e sistemas agroflorestais (SAF). Como resultado, conseguiram benefícios como aumento de polinizadores e maior produtividade nas lavouras, assim como melhoria na renda familiar. Além disso, pelo menos dois agricultores afirmam que não têm mais problema com a água das nascentes em suas propriedades.

É o caso de Francisco Araújo. O produtor conta que a nascente sempre secava no inverno, mas, após a implantação do SAF, notou um aumento significativo na água, além de sua constância durante o ano. Araújo diz ainda que percebe uma melhora no ambiente. "Aumentou o número de passarinhos, que comem os carrapatos. O capim fica mais verde nas árvores e no verão, quando o sol queima mesmo, os bezerros ficam melhor na sombra", conta animado.

As melhorias relatadas pelo agricultor passam também pelo aspecto econômico. Com a introdução de árvores frutíferas no SAF, a família, que antes vivia apenas da pequena produção leiteira e da lavoura de hortaliças de caixote (mandioca, milho, quiabo, jiló, berinjela, pimentão e batata), passou a ter um aporte em sua renda. Hoje, o produtor vende frutas na feira local e já pensa em comercializá-las na Central de Abastecimento fluminense (Ceasa-RJ).

A possibilidade de comercializar os frutos das espécies nativas é um fator que tem chamado a atenção dos agricultores. Ary de Matos, por exemplo, salienta que, além de atrair gambás que afastam os urubus das lavouras, o abiu (Pouteria caimito) alcança o preço de R$12,00 a caixa. Com oito pés plantados da fruta no entorno da casa, ele colhe 100 caixas nas duas safras ao ano. Já o agricultor João Batista com apenas dois pés de cajá (Spondias dulcis) colhe semanalmente, no período de safra que vai de janeiro a março, uma quantidade que lhe rende R$500,00 por semana.

Para a pesquisadora da Embrapa, as estratégias escolhidas para introduzir árvores nas propriedades foram bem recebidas porque trabalharam com espécies indicadas a partir do conhecimento tradicional dos produtores. Os agricultores possuem um valioso conhecimento empírico, o que lhes permite dominar demandas climáticas e de solo dessas espécies nativas, aspectos às vezes desconhecidos pela pesquisa científica. "Infelizmente, a fissura existente entre as políticas e a legislação voltadas para as áreas ambientais e agrícolas leva a uma marginalização desse tipo de conhecimento", diz Mariella Uzêda.

A especialista salienta que a adoção de uma agricultura agroecológica e a construção de uma produção orgânica sustentável só é possível com o auxílio da biodiversidade local. "Muitos agricultores familiares que estão inseridos em áreas pobres em vegetação nativa só poderão ter essa opção se transformarem a paisagem onde vivem. Sem dúvida, esse é um esforço hercúleo para a agricultura familiar e necessita de apoio", afirma a pesquisadora.

Os impactos econômicos já são sentidos pelos agricultores, seja com a venda dos novos produtos oriundos dos sistemas agroflorestais ou pela redução dos insumos aplicados em suas lavouras. Os pesquisadores vão iniciar agora uma terceira etapa do projeto que consiste na quantificação desse ganho econômico e na inserção dos produtos em mercados diferenciados.

Cachoeiras de Macacu

Cachoeiras de Macacu foi escolhida para o estudo por ser responsável pelo abastecimento de água de cerca de dois milhões e meio de habitantes na região metropolitana fluminense que habitam os municípios de Itaboraí, São Gonçalo, Niterói e parte dos municípios da região dos lagos. Cercada por uma área de proteção ambiental (unidade de conservação de uso sustentável) e por unidades de conservação de uso restrito como o Parque Estadual dos Três Picos, a cidade sofre com o uso intensivo de insumos, o qual é apontado como um problema para a qualidade ambiental, e principalmente para as nascentes.

Esse estudo tem como parceiros a Embrapa Solos (RJ), que vem realizando o mapeamento das transformações da cobertura vegetal da Bacia Guapi-Macacu e do assentamento, bem como o levantamento de solos; a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que tem trabalhado com o levantamento de pequenos mamíferos e aves na região; e Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que vem auxiliando nas avaliações relativas à física do solos e na análise comportamental de vespas. O trabalho também conta com a participação da prefeitura de Cachoeiras de Macacu, por meio das secretarias municipais de Agricultura e Meio Ambiente.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Mistificações sobre a crise hídrica

A ilustração também é uma mistificação alegórica 


A mídia enfurecida de Banânia finalmente comprou a estiagem em SP e procura estendê-la o mais amplamente possível, para criar situações favoráveis a desestabilização nacional para auxiliar nos seus objetivos inconfessáveis de perpetuação. Como não poderia deixar de ser estão enganando a população em diversos níveis de novo, de maneira que se faz necessário desmistificar alguns pontos sobre a crise hídrica em curso. Felizmente aqui em SC e mais especificamente na nossa região norte catarineta neste momento não estamos submetidos as situação crítica, de maneira que vamos deslocar nosso quadro analítico a SP onde o problema criou dimensões próprias.


Vamos às mistificações que está a se vender ao vulgo:

1- “Não choveu e por isso está faltando água”. Essa afirmação é cientificamente incompleta e se configura como falsa. Desde o principio dos tempos temos períodos chuvosos e de estiagem, que historicamente são descritos estatisticamente. São fenômenos absolutamente naturais. A base de dados brasileira (e de São Paulo) possibilita análises precisas desde o século XIX e até projeções anteriores a partir de modelamentos matemáticos. Um sistema de abastecimento eficiente precisa ser projetado seguindo essas premissas, e devem sempre levar em conta o fator de “recorrências” (ex: estiagens que ocorram a cada períodos, de 15, 25, 50 e 100 anos).

2- “A causa é o aquecimento global”. Existem centenas (ou até milhares) de estudos sobre essa questão, que produzem igual numero de resultados todos diferentes, mas poucos estudos verdadeiramente confiáveis para São Paulo ou áreas especificas do Brasil ou para qualquer outro lugar do planeta. O que se deve considerar é que o problema aqui é de escala de grandeza. A menos que estejamos realmente vivendo uma catástrofe global repentina (que não parece ser o caso), a mudança nos padrões de chuva não atingem porcentagens tão grandes capazes de secar vários reservatórios de um ano para o outro. Mais estudadas são as mudanças climáticas locais por causa de ocupação urbana desordenada. Isso sim é concreto e pode trazer mudanças radicais também altamente localizadas. Agora o problema é outro: as represas principais que abastecem a área metrolpolitana, do sistema Cantareira estão longe demais do núcleo urbano adensado de SP para sentir efeitos como de ilha de calor. A escala do território é outra, muito maior.

3- “Não chove nas Represas”. Mais uma simplificação grosseira. O volume do reservatório depende de vários fluxos, incluindo a chuva sobre o espelho d’água das represas. A chuva em regiões de cabeceira, por exemplo, pode recarregar o lençol freático e assim aumentar o volume de água dos rios. O processo é muito mais complexo.

4- “As próximas chuvas farão que o sistema volte ao normal”. Isso já é mais difícil de afirmar e começa a se mostrar totalmente equivocado. A recuperação desses reservatórios pode levar anos, quiça décadas. Realisticamente São Paulo vai ter duas opções a curto-médio prazo:

(a) usar fontes alternativas de abastecimento antes que possa voltar a contar com as represas;

(b) caminhar para uma redução drástica na economia para que haja diminuição de consumo (há relação direta entre movimento econômico e consumo de água).

5- “Não existe outras fontes de abastecimento que não as represas atuais”. Afirmação duplamente equivocada para justificar a atuação da Sabesp nos moldes atuais e dar continuidade a eles. Primeiro porque sempre se pode construir represas em lugares alternativos mais próximas ou mais distantes (sobretudo em um país com esse recurso abundante como o Brasil) e transportar a água por bombeamento. O problema ai passa a ser de ordem econômica já ai deverá se agregar o custo que de água bombeada de longe sairia muito caro. Outro embuste é que não se poderia usar água subterrânea. Não existe um maior impedimento técnico para isso fora novamente a questão de custos. O Estado de São Paulo tem ampla reserva de água subterrânea (inclusive o chamado Aquífero Guarani), de onde é possível tirar água, sobretudo em momentos de crise. Novamente, o problema é, como vimos, o custo de se trazer essa água de longe, o que certamente que afetaria os lucros da Sabesp.

6- “Precisamos economizar água”. É!... mas avança para ser outra simplificação. Há de se cercar os grandes consumidores (indústrias ou grandes estabelecimentos multiuso) para que façam sua lição de casa a sério, mas principalmente atacar decididamente a perda de água por falta de manutenção do sistema, que representam os maiores gastos para as concessionárias e afetam seus lucros. Infelizmente o que se apresenta ao distinto publico, os números oficiais, estão camuflados. A seguinte conta nunca fecha: consumo total = esgoto total + perda + água gasta em irrigação. Estima-se que as perdas só de distribuição estejam entre 30% e 40%. Ou seja, essa quantidade vaza na tubulação antes de atingir os consumidores. Água tratada e perdida. Os índices elevados não são normais e são resultados de décadas de maximização de lucros da Sabesp ao custo de uma manutenção precária e porca da rede e de seus sistemas.

7- “Não há racionamento”. Agora já há... O governo de SP fez a mídia e a população de boba. Em lugares pobres o racionamento já acontece há meses, dia sim, dia não (e mais recentemente dia sim, outro também). É claro que, historicamente, as populações pobres são as que sempre sentem mais esses efeitos (lembremo-nos d as constantes interrupções no fornecimento de água no começo do século XX nos bairros operários das várzeas, como o Pari). A história se repete.

8- “O racionamento é a opção”. Essa afirmação é chula e perigosa porque coloca vidas em risco. Já como praticamente todas as construções na cidade têm grandes caixas d’água, o racionamento apenas tem o mérito de diminuir o problema das perdas da rede (vazamentos), pois com o corte do abastecimento o vazamento também se anula. É tudo que a Sabesp quer: em momentos de crise fazer racionamento e reduzir as perdas; sem diminuição de consumo, sem aumentar o controle de vazamentos. O custo disso?... A saúde pública. A mesma trinca por onde a água sai no vazamento não solucionado, se não houver pressão dentro do cano, se transformará em um ponto de entrada de poluentes do lençol freático nojento da cidade com saneamento precário. Ai se estará bebendo, sem saber, água poluída porque a poluição entrou pela rede urbana. Por isso que agências de saúde internacionais exigem sempre pressão mínima dentro dos canos de abastecimento.

9- “Confiar na Sabesp”. Vixe!... A Sabesp é gerida para maximizar lucros dos acionistas. Não está preocupada, nunca esteve, em entregar um serviço de qualidade (exemplos são vários: a negligência no saneamento que polui o Rio Tietê, o uso de tecnologia obsoleta de tratamento de água com doses cavalares de cloro e, além, da crise no abastecimento decorrente dos pequenos investimentos no aumento do sistema de captação). A Sabesp é apenas herdeira de um sistema que já teve várias outras concessionárias: Cantareira Águas e Esgotos, RAE, SAEC etc. A empresa tem hoje uma sociedade anonima por ações concessão de abastecimento e saneamento. Talvez fosse  o momento de se discutir a cassação dessa outorga, uma vez que várias das obrigações incialmente previstas não foram cumpridas. Além, é claro, de uma nova administração no Governo do Estado, ao menos preocupada em entregar serviços público e não lucros para meia dúzia apenas.


Conclusões: a crise no abastecimento tem uma inegável componente  natural, mas vai ser grandemente amplificada como resultado de uma gestão voltada para a maximização de lucros da concessionária e de um Governo incompetente.

É o que há!... mas por sorte nosso povo não perde o humor


segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Reality Show da Noruega envia blogueiros de moda para sentir o rojão no Camboja




por Paula Romano, no Update or Dye

A jovem loira chora copiosamente diante das câmeras. As mãos com unhas feitas limpam as lágrimas enquanto ela diz em norueguês: “Eu não aguento mais”. “Que tipo de vida é essa?”.

O nome dela é Anniken Jørgensen, uma entre os três jovens blogueiros de moda, que estrelam um reality show online dividido em cinco partes sobre os horrores da exploração do trabalho no Camboja.

Produzido pelo Aftenposten, o maior jornal da Noruega, para um experimento social, Jørgensen, juntamente com Frida Ottesen e Ludvig Hambro, voaram em 2014 para a capital Phnom Penh, onde experimentaram por um mês um pouco da vida do trabalhador da indústria têxtil no país do sudeste asiático.

Como adolescentes em férias de primavera, o trio começa curioso, mas despreocupado, até que começam a entrar em contato com as condições ao seu redor. No episódio 2, Jørgensen, Ottesen e Hambro visitam a casa de Sokty, uma operária que vive em um apertado apartamento em Phnom Penh.

“Eu sinto muito por ela, mas acho que é assim que ela viveu toda a sua vida”, diz Ottesen no vídeo. “Para ela, esta é a sua casa; ela não acha que é ruim”.

Mas, conforme a série prossegue, rachaduras começam a aparecer. O trio vai com Sokty à uma loja, onde uma blusa de 35 dólares vale mais do que toda a sua renda por um mês. “As roupas custam mais do que pago pela minha habitação e gasto em comida em um mês”, diz Sokty.

O preço de uma blusa simples de manga comprida é o valor do aluguel da casa de Sokty. Com o salário de 3 dólares ao dia, Stoky compra roupas duas vezes ao ano e por 2 dólares. Ela costura roupas que chegam a custar um ano de salário e pode gastar apenas 4 dólares em roupa por ano.

Depois da noite na casa de Sokty, os jovens partem para o trabalho pesado na fábrica têxtil. “Trabalhei com eles por algumas horas e pensei que ia partir ao meio. Estava muito quente e as tarefas são muito cansativas. Além disso, você tem que trabalhar sob grande pressão e fazer tudo muito rapidamente. Assim que termina uma peça de roupa, você começa a costurar outra, sem descanso. É um círculo vicioso que não acaba nunca”, contou Jørgensen ao jornal espanhol El Diario.

Com cinco episódios de cerca de dez minutos, SweatShop – Deadly Fashion tem direção e edição de Joakim Kleven, e, como disse o blogueiro Ludvig: “Fico sem palavras, pois é tão incrivelmente injusto”, confira:





A H&M, uma das empresas que contribui com esse tipo de mercado, não aceitou ser entrevistada para o programa, mas deixou o seguinte comentário sobre o assunto:

“A H&M é consciente de que os salários em países como Camboja são demasiados baixos. Por isso, a empresa lançou em 2013, convertendo-se na primeira empresa de moda a fazê-lo, um plano concreto para conseguir um salário digno e razoável através de nossos provedores.

As medidas incluem fomentar negociações entre empresários e trabalhadores para facilitar a organização sindical assim como a capacitação em matéria de direitos.

Durante as gravações, o programa não visitou nenhum dos nossos fornecedores e não falou sobre os nossos programas de sustentabilidade e há comentários que dão uma imagem equivocada em torno das condições e salários de nossos provedores”.

O mais triste é que situações como essa não são um caso isolado. Há inúmeros trabalhadores que se submetem a esse tipo de trabalho forçado por simplesmente não terem condições de conseguir outra coisa, inclusive aqui no Brasil. O capitalismo, quando mal aplicado, é o mentor de grandes injustiças no mundo e essa certamente é uma delas.

Assista aqui ao programa com legendas em espanhol, se preferir

As mulheres do Curdistão


Por Samir Oliveira, no Sul21


Os curdos são a mais numerosa etnia do mundo sem Estado: são mais de 26 milhões de pessoas que vivem em regiões da Turquia, da Síria, do Iraque e do Irã. Desde 2012, com a intensificação da guerra civil na Síria, os curdos da região têm se organizado para defender seus territórios das forças do governo de Bashar al-Assad e dos terroristas (SIC - melhor seria "postulantes" - nota botocuda) do Estado Islâmico (também conhecido como ISIS).

Em 2013, os curdos da Síria anunciaram a organização de três regiões administrativas no norte do país, chamadas de “cantões”: Afrin, Jazira e Kobani. Separados geograficamente em meio a um território conflagrada pela guerra, os cantões formam a região de Rojava – palavra que, em curdo, significa “oeste”.

 Rojava possui uma população de cerca de 3 milhões de pessoas, espalhadas por doze cidades. Enquanto se organizam para lutar contra o Estado Islâmico e unificar os cantões, os curdos estão criando uma própria forma de organização social, política e econômica na região, baseada no confederalismo democrático, com premissas anti-Estado e anticapitalistas inspiradas no programa político do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) – organização criada na década de 1970 e considerada “terrorista” pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pela Turquia, país onde seu principal líder, Abdullah Öcalan, encontra-se em prisão perpétua desde a década de 1990.

Nesta entrevista ao Sul21, o ativista curdo Giran Ozcan fala sobre o processo revolucionário em Rojava e dá mais detalhes sobre a situação na região. Giran edita o site Kurdish Question e esteve em Porto Alegre nesta semana para falar sobre o assunto com organizações de esquerda.

Na entrevista, ele fala ainda sobre o funcionamento das forças de combate de Rojava, que estão divididas basicamente em das brigadas: as Unidades de Proteção do Povo (YPG) e as Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ) – esta última, composta e comandada por mulheres curdas.

ENTREVISTA






Sul21 – Como está a situação agora em Rojava?
Giran Ozcan – A luta na Síria começou há quatro anos e há quase três anos os curdos anunciaram que vão se autogovernar em três cantões. Depois deste anúncio, o Estado Islâmico (ISIS) começou a atacar os curdos. Embora isto só esteja sendo divulgado pela mídia desde Kobani região de Rojava na Síria, que está cercada pelo Estado Islâmico], ISIS e os curdos estão lutando há quase três anos na Síria. Atualmente, depois de capturar armamento pesado dos exércitos iraquiano e sírio, eles novamente atacaram os curdos, há cerca de quatro meses, em Kobani. Enquanto os exércitos da Síria e do Iraque estão fugindo do Estado Islâmico em várias regiões, os curdos estão resistindo, lutando e fazendo eles recuarem. É isso que vem ocorrendo em Rojava nos últimos meses. Hoje, mesmo após o ISIS atacar Kobani com todas as suas forças, a cidade não caiu. Os curdos estão mostrando ao mundo que são capazes de se autogovernar e de se defender. Estão oferecendo uma alternativa à região. A luta ainda está ocorrendo em Kobani, o ISIS ainda não foi completamente derrotado, mas já foi expulso da cidade. Nos outros dois cantões o autogoverno continua sendo implementado e desenvolvido. O desafio é tornar Rojava, os cantões e o povo curdo reconhecidos pela comunidade internacional.

Sul21 – Quem está controlando Kobani hoje?
Ozcan - Hoje Kobani é controlada pelos combatentes curdos do YPG. Cerca de 98% da cidade está sob controle do YPG. Há dois dias, eles conquistaram a colina de Minstenur. Atualmente, o ISIS está apenas na periferia da cidade.

Sul21 – O Estado Islâmico é a principal ameaça para Rojava e a causa curda atualmente?
Ozcan - ISIS é ameaça que está batendo diretamente na porta. Mas Rojava está enfrentando um embargo de todos os lados, porque é um sistema alternativo aos imperialistas e às forças regionais. Por isso, o povo em Rojava está tentando se autossustentar, porque não recebendo ajuda de ninguém. Economicamente, estão tentando criar um novo sistema. Então existem duas ameaças: obviamente o Estado Islâmico e o embargo internacional.

Sul21 – Como foi possível que o Estado Islâmico crescesse tanto na região?
Ozcan - O ISIS está lá há pelo menos seis anos. Antes de o ISIS crescer, o governo central do Iraque se aproximava do Irã e se distanciava dos Estados Unidos. Barzani (presidente do Governo Regional Curdo no Iraque) falava em declarar independência e o regime de Assad (presidente da Síria) estava fortalecido. Todos se encaminhavam contra o Ocidente na região. De repente, do nada, o Estado Islâmico começa a ganhar tanta força que o governo iraquiano precisou se aproximar dos Estados Unidos novamente. Barzani parou de falar em independência e a guerra se intensificou na Síria. Se analisarmos objetivamente, quem se beneficiou do crescimento do Estado Islâmico foram os Estados Unidos. Não podemos provar que os Estados Unidos fortaleceram o ISIS, mas o empoderamento deles definitivamente beneficiou os planos dos Estados Unidos para a região.

Sul21 – Como é a relação entre a luta que ocorre entre os curdos e o Estado Islâmico e o regime de Assad, que governa a Síria?
Ozcan - Os curdos querem que o regime sírio reconheça sua autonomia. Eles querem que o regime respeite a vontade do povo. Até então, Assad nunca havia concedido cidadania aos curdos. Centenas de milhares de curdos não podiam ir à escola, comprar terras ou ter empregos formais. Atualmente a situação está equilibrada: os curdos querem seus direitos reconhecidos e não vão atacar o regime sírio, mas não vão hesitar em defender o que já foi conquistado.

Sul21 – O governo sírio não está combatendo o Estado Islâmico também?
Ozcan - Está, em certas regiões. Mas os principais opositores do ISIS são os curdos. Embora eles digam a todos que estão lutando contra o governo e tentando estabelecer um Estado islâmico, os principais antagonistas que eles enfrentam são os curdos.

Sul21 – E os revolucionários sírios que lutam contra o regime não estão do lado de vocês, combatendo também o Estado Islâmico?
Ozcan - Não podemos mais falar em apenas uma FSA (Exército Livre da Síria), porque se trata de uma coalizão muito ampla — o ISIS inclusive fazia parte do grupo anteriormente. É uma plataforma da luta contra Assad, mas é uma coalizão revolucionária? Isso está aberto ao debate. Há muitos extremistas islâmicos na FSA, mas também há revolucionários. Eles não se identificam mais como FSA, porque a coalizão ficou tão ampla que não pode mais ser chamada de coalizão. Em Kobani há grupos da FSA lutando junto com os curdos, mas em outros cantões há grupos da FSA lutando contra nós.

Sul21 – Quais são as forças políticas que comandam Rojava?
Ozcan - O PYD é um partido político curdo que já existia junto ao sistema sírio e está se aliando à ideologia do PKK e de Öcalan. Essa é a organização com mais apoio popular em Rojava. Mas as pessoas têm seu próprio sistema, suas assembleias populares, onde o partido político não está presente. O chamado Movimento Democrático do Povo realiza as assembleias locais e comanda os cantões, que não são governados pelo PYD. Os cantões são governados pelo povo através das assembleias populares. Há uma co-presidência para cada cantão, composta por um homem e uma mulher. Rojava é um grande processo revolucionário porque, na cultura daquela região, a mulher não possuía participação política. A ideologia do PKK foi gradualmente mudando isso. Agora, as mulheres participam da vida política e possuem seu próprio exército, que está lutando contra o Estado Islâmico. Trata-se de uma das maiores revoluções sociais da região.

Sul21 – Como os governos dos cantões são escolhidos?
Ozcan - Através de eleições. As primeiras ocorreram há seis meses. Não é um sistema representativo, é uma democracia direta. A qualquer momento o povo pode retirar do poder quem eles elegeram. O Poder Executivo é mais um coordenador do processo, porque existem assembleias populares em cada comunidade. As decisões locais são tomadas pelas pessoas que moram nas comunidades. Em cada comunidade existem três assembleias: a local, a de jovens e a de mulheres. É um outro modelo, não haverá eleições a cada quatro anos. Sempre e quando o povo precisar, o governo permanecerá ou será mudado.



Sul21 – Não existe um governo central dos três cantões?
Ozcan - Atualmente, cada cantão é separado. Não existe coordenação entre eles. Quando falamos sobre Rojava, estamos falando sobre os três cantões, mas não existe um representante de Rojava. Isso se deve a problemas práticos, já que os três cantões estão fisicamente distantes e separados, e também porque o projeto político ainda está sendo discutido. Ainda está aberto ao debate a forma como essa coordenação central será construída.

Sul21 – Como os três cantões se comunicam e realizam trocas entre si?
Ozcan - A região inteira é uma zona de guerra, então há limitações práticas para isso. Estão sendo criadas academias econômicas para se discutir o tipo de economia que será criada quando os cantões se unificarem. Uma das nossas funções na América Latina é entender melhor as experiências econômicas da região, com cooperativas e economias comunitárias criadas ao longo da história de processos revolucionários no continente.

Sul21 – Quando falamos sobre Rojava, sobre quantas pessoas e cidades estamos falando?
Ozcan - Estamos falando sobre algo entre 2,5 milhões e 3 milhões de pessoas e cerca de 12 cidades. Não são cidades muito grandes, porque as administrações dos cantões são diferentes do mapa político da Síria. Por exemplo, de acordo com a Síria, a cidade de Kobani pertence a Aleppo, mas para os curdos, é uma cidade livre. A maior cidade é Qamislo.

Sul21 – Qamislo é a capital de Rojava?
Ozcan - A ideologia do confederalismo democrático não prevê a existência de uma capital. Eles não precisam de uma capital, que é um instrumento de um Estado – e eles querem evitar isso.

Sul21 – Como está sendo a implantação do confederalismo democrático em Rojava?
Ozcan – É tudo muito novo, então não posso dizer que não estejam ocorrendo problemas. Mas pela primeira vez estamos implantando o confederalismo democrático como um sistema prático. O povo está muito animado, porque estamos resolvendo os problemas da causa curda, mas também estão resolvendo o problema da exploração, do governo, do socialismo e da vida social. É uma revolução em muitas dimensões e aspectos. Muitos olhos pairam sobre Rojava agora, porque não existe nenhum outro lugar no Oriente Médio onde cristãos e muçulmanos estejam governando juntos. Os cristãos podem governar a si próprios se eles quiserem, esse direito está garantido na Constituição de Rojava. Os cristãos têm seu próprio mecanismo de auto-defesa. É um sistema secular, por isso está atraindo tanta atenção.

Sul21 – Como o processo revolucionário está resolvendo as necessidades imediatas do povo, principalmente no que diz respeito a saúde e educação?
Ozcan – As assembleias populares estão criando academias. É um sistema muito novo, então tudo está tendo que ser autogestionado. As pessoas precisam fazer tudo e construir seu próprio sistema de forma coletiva. Escolas primárias, secundárias e até mesmo universidades estão sendo criadas pelo povo. O problema principal em relação a Rojava é que, por ser uma alternativa ao sistema, o sistema não a apoia. É por isso que tudo precisa ser feito de dentro para fora.

Sul21 – É um modelo anticapitalista também.
Ozcan - A economia está sendo organizada através de cooperativas. Em Rojava, o princípio básico é: “o que pertence ao povo sempre pertencerá ao povo e será compartilhado pelo povo”. Há muita oliva e petróleo na região, por isso que muitas companhias internacionais querem saber qual é a política econômica do PKK. O PKK diz que nenhuma companhia pode se aproximar da região com a ambição de lucrar, porque o partido é contra monopólios e privatizações. Os recursos da região serão compartilhados pelo povo. Se obtivermos sucesso, será um modelo para o mundo inteiro. O sucesso de um projeto anticapitalista, especialmente no Oriente Médio, é uma grande ameaça ao sistema.

Sul21 – E o que acontece com a iniciativa privada que existe na região, com os comércios e empresas das cidades?
Ozcan - Por causa do preconceito de Assad contra o povo curdo, não havia muito comércio e capital privado sendo investido na região. Agora isso é uma coisa boa, porque, caso contrário, ocorreria uma oposição interna na região ao processo revolucionário. Isso não está ocorrendo porque o povo de Rojava mora em vilas, são trabalhadores, não é uma região dividia em classes. Essa era a natureza da região, mesmo antes da revolução, então a transição não está sendo difícil.

Sul21 – Para uma revolução ser bem sucedida, o povo precisa apoiá-la. A região de Rojava não possuía uma classe média ou uma burguesia capazes de opor resistência?
Ozcan - Para o confederalismo democrático, as academias são muito importantes. O povo precisa estar a par do que está acontecendo, do tipo de revolução que está ocorrendo e das ameaças do sistema. O PKK foi criado em 1978. Depois que Öcalan teve que deixar a Turquia, ele foi para Rojava, em 1979. Ele viveu no Curdistão sírio por 20 anos, então o povo curdo da Síria conhece muito bem suas ideias. Milhares de jovens de Rojava se juntarão ao PKK nos anos 1980 e 1990. Milhares morreram na luta contra a Turquia. O povo de Rojava conhece muito bem a ideologia do PKK.

Sul21 – Como é a relação entre Rojava e o Governo Regional Curdo do Iraque?
Ozcan - Não muito boa, porque Barzani e o Governo Regional Curdo são um satélite completamente dependente do Ocidente. Rojava é uma revolução contra o sistema e Barzani é parte do sistema. Ao fim e ao cabo, talvez a maior revolução de Rojava seja contra Barzani, porque ele é a parte do sistema que mais se aproxima de Rojava, é o principal representante do sistema na região. Muita gente compreendeu que a Turquia estava conduzindo um embargo contra Rojava, mas ninguém entendeu porque Barzani estava reforçando esse embargo contra o povo curdo. Ele queria sufocar a revolução também, por isso que reforçou o embargo nas fronteiras que o Governo Regional Curdo possui com Rojava.

Sul21 – Isso pode estar enfraquecendo a popularidade de Barzani junto aos curdos?
Ozcan - Definitivamente, porque o Ocidente quer que Barzani seja uma alternativa a Öcalan e ao PKK. Após atacarem Kobani, o Estado Islâmico atacou Sinjar, onde os curdos Yazidi vivem. Eles não são muçulmanos, são curdos que pertencem a uma religião muito típica e antiga. Quando eles foram atacados, as forças de Barzani, os Peshmergas, fugiram, deixando os Yazidi sozinhos e desarmados. Por isso cerca de 3 mil mulheres Yazidi foram capturadas pelo ISIS e estão sendo vendidas como escravas sexuais. É por isso que o povo curdo está muito crítico em relação a Barzani. Se o PKK não tivesse descido das montanhas e defendido os Yazidis em Sinjar, teria havido um massacre massivo. Em todas as cidades governadas por Barzani que estão sob sítio do ISIS, quem está combatendo não são os Peshmergas, mas a guerrilha do PKK. O mundo inteiro está vendo as guerrilhas assumirem a luta e os Peshmergas recuarem, isso está abalando muito a popularidade de Barzani.

Sul21 – É possível haver uma mudança política no comando do Governo Regional do Curdistão e um aliado do PKK assumir o poder?
Giran – O partido-irmão do PKK no Governo Regional do Curdistão foi banido das eleições. Nas últimas eleições, Barzani fez 38% dos votos. Agora existe o movimento Gorran, que é uma nova força política de oposição e está com 29% das intenções de voto. Então há espaço para mudança no Governo Regional do Curdistão.

Sul21 – O que isso iria significar para Rojava?
Giran - Significaria que pelo menos uma certa parte do Curdistão estaria livre. Embora o Governo Regional do Curdistão possua uma autonomia “de facto” desde a década de 1990, ninguém enxerga a região como uma parte livre do Curdistão, porque ela está completamente dependente do Ocidente. Os curdos estão dizendo agora que Rojava é o primeiro território livre do Curdistão. A próxima eleição no Governo Regional do Curdistão será somente em três anos, mas acredito que muita coisa vá mudar até lá. No momento os curdos estão numa posição defensiva, lutando contra o Estado Islâmico, então não estão falando muito sobre mudanças políticas. Mas as guerrilhas do PKK estão nas cidades do Governo Regional do Curdistão. Antes, para ir lá, eles teriam que lutar com os Peshmergas, e ninguém quer ver os curdos lutando uns contra os outros. Agora o povo está vendo as guerrilhas todos os dias. As coisas irão mudar nas próximas eleições, o governo já não pode mais banir o PKK de participar no processo.

Sul21 – Como se deu o surgimento das brigadas comandadas e compostas por mulheres em Rojava?
Giran - O movimento de libertação das mulheres está contemplado na ideologia do PKK. Devido à censura da mídia, ninguém sabia que o PKK tem mulheres combatendo e liderando suas fileiras há mais de 35 anos. Desde a criação do PKK, no primeiro congresso do partido, as mulheres estavam presentes. Nos anos 1980, nas primeiras guerrilhas do PKK, havia brigadas femininas. Öcalan sempre dizia que nenhuma sociedade pode ser livre enquanto as mulheres não forem livres. Para ele, o nível de liberdade de uma sociedade pode ser medido pelo nível de liberdade das mulheres. Por isso que a revolução em Rojava é uma revolução de mulheres. Embora as YPJ tenham sido criadas há apenas três anos, elas vêm de uma história de 35 anos. A principal comandante de Kobani era uma mulher, Narin Afrin. A resistência em Kobani contra o Estado Islâmico foi liderada por uma mulher. As pessoas costumam dizer que o Oriente Médio é uma região muito conservadora, mas, no centro do Oriente Médio, mulheres estão na linha de frente da vanguarda por libertação. E a maioria delas são muçulmanas, que é a religião predominante entre os curdos.



Sul21 – Isso contraria o estereótipo que se costuma ter no Ocidente quanto às mulheres muçulmanas, como se a opressão de gênero e o islamismo fossem duas coisas intrinsecamente ligadas.
Giran - Há muitas leituras diferentes do Islã, a do ISIS é apenas uma delas e tem suas raízes no wahhabismo. Através do PKK, o povo curdo passou a ter um entendimento completamente diferente a respeito das mulheres. Não é uma característica curda, mas uma característica do socialismo defendido pelo PKK, que foi rompendo com as opressões em relação às mulheres naquela região.

Sul21 – O militarismo costuma ser um fenômeno bastante machista. Como as mulheres estão desconstruindo isso em Rojava?
Giran - Nos anos 1980, acredito que qualquer mulher militante do PKK teria muitos relatos para fazer a respeito das dificuldades em enfrentar o machismo em uma organização predominantemente masculina. Öcalan escreveu um livro sobre a necessidade de se romper com o machismo, porque viu que mesmo na sua organização isso era um problema. Atualmente, em grande medida isso já foi superado. A luta não está sendo conduzida dentro de uma lógica militarista, mas, sim, de autodefesa. E as mulheres são uma parte desta autodefesa.

Sul21 – Como está a solidariedade internacional em relação a Rojava?
Giran - Há dois períodos: antes e depois da conquista de Kobani. Antes de Kobani a mídia ocidental não falava sobre Rojava, porque a resistência foi inacreditável. O Estado Islâmico tomou Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, em 24 horas. Mas não conseguiram conquistar Kobani, uma cidade com 200 mil habitantes e não mais do que 5 mil combatentes. Depois disso, houve um despertar internacional em relação ao que ocorre em Rojava, as pessoas estão debatendo o sistema político que está sendo criado lá. Esperamos que as pessoas se solidarizem e acompanhem esse experimento socialista e revolucionário que está ocorrendo em Rojava. Ainda é um experimento. Somente com a ajuda e a solidariedade das pessoas ao redor do mundo, especialmente na América Latina, esse experimento poderá ser bem sucedido.



Sul21 – O que esse processo revolucionário significa para a esquerda, de uma forma geral?
Giran - Embora o capitalismo esteja afundando em uma grande crise, a esquerda ainda não foi capaz de mostrar um modelo concreto ao mundo. Agora temos um experimento em Rojava ao qual podemos nos espelhar e dizer ao mundo: “É assim que queremos que as pessoas vivam”. Cabe a nós, pessoas de esquerda e revolucionárias, mostrar ao mundo que o modelo desenvolvido em Rojava pode ser bem sucedido e que o socialismo pode ser tão bom na prática quanto é na teoria. Acredito que a esquerda não irá perder essa oportunidade.

Sul21 – Como Rojava está se abrindo para o mundo neste momento? Organizações e pessoas estrangeiras podem ir para lá?
Giran - O governo turco deixa suas fronteiras abertas para o Estado Islâmico e fecha as portas para a solidariedade revolucionária em relação a Rojava. Muitos europeus já se juntaram ao YPG, vários latino-americanos também já se juntaram a Rojava. Há maneiras de garantir contatos, o PYD tem escritórios na Europa. Rojava espera pela visita das pessoas, porque tem algo a mostrar ao mundo.

Sul21 – Qual o papel das potências ocidentais em relação ao que ocorre em Rojava?
Giran - O Ocidente está dizendo que aceitará Rojava se for igual ao Governo Regional do Curdistão. Se Rojava for mais aberta ao Ocidente e às grandes corporações, receberá apoio das potências ocidentais. É por isso que o povo não está esperando que esse apoio venha.

Sul21 – Como tu vês a cobertura da mídia sobre Rojava?
Giran - Há diferentes abordagens. É claro que a revolução quer ser conhecida e vista pelo mundo, mas ela quer ser mostrada pelo que realmente é. A gente vê fotos de mulheres combatendo em Rojava, mas não sabemos por que elas estão lutando. Não vemos na mídia tradicional a informação de que o PKK é uma organização socialista, de que a economia em Rojava é baseada em cooperativas.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Ih... estão se estranhando de novo



por Vladimir Platow, no New Eastern Outlook - Tradução da turma do Vila Vudu e publicado pelo meu amigo Castor em seu ótimo blog



Espião alemão empregado da Bundesnachrichtendienst, BND [Serviço Federal Alemão de Inteligência] foi preso em Berlim no início de julho de 2014. Foi acusado de ter entregue documentos secretos a serviços estrangeiros, a saber, à CIA-EUA. Poucos dias depois foi noticiado que as agências alemãs estavam à caça de mais um espião norte-americano que estava roubando informações do Ministério alemão da Defesa.

A Secretária-Geral do Partido Social Democrata (SPD) alemão, Yasmin Fahimi exigiu que o país fizesse uma lista de “contramedidas efetivas” que permitam à Alemanha proteger seus segredos nacionais e impedir que sejam roubados por Washington. Falando pela televisão em rede nacional, Yasmin Fahimi disse que:

"A Alemanha ainda não é uma república de bananas". (????)

O incidente que envolve um espião da CIA exposto nas fileiras da mais alta segurança alemã foi interpretado pela maioria dos europeus como total nonsense: já se sabia que foram roubados 218 documentos mais top-top secret, de dentro dos “cofres” da segurança alemã, por um funcionário de 31 anos, Marcus R., ao longo dos dois anos durante os quais ele cooperou com a agência dos EUA, oficialmente, então, a “amigável CIA”. A Casa Branca pagava ao “agente leal” (como se dizia então na “república alemã de bananas”) “prêmios” de até 25 mil euros, sem contar os colarezinhos de vidro e as peninhas coloridas.

Mas, segundo o jornal alemão Bild, a investigação descobriu, nesse janeiro/2015, que aquele mesmo agente duplo entregou à inteligência dos EUA uma lista de 3.500 nomes de funcionários da inteligência federal alemã, que trabalham atualmente pelo planeta. Não é coisa que se possa “noticiar” como expressão da lealdade e da amizade de Washington em relação à Alemanha.

Essas atividades agressivas da inteligência dos EUA dentro da Alemanha sempre foram rotina, mas nenhum político proeminente, nesse estado vassalo, manifestara publicamente qualquer preocupação por aquele tipo de ação da CIA em território alemão. De fato, ao longo dos últimos anos, segundo o jornal alemão Suddeutsche Zeitung, a inteligência federal alemã tem transferido dados pessoais de cidadãos alemães para a Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA), através do maior ponto centro neutro de troca de dados da Internet, DE-CIX em Frankfurt.

Segundo o jornal, a NSA está interceptando até 500 milhões de telefonemas e mensagens por Internet na Alemanha, mensalmente. E tudo isso foi e ainda é feito apesar de a informação privada ser protegida pela Constituição Alemã. O que parece é que o bem-estar do “big brother” é muito mais importante para a maioria dos políticos alemães que a própria Constituição alemã. Além do que, a NSA fez inúmeras tentativas para servir-se do DE-CIX para obter um perfil do grupo European Aerospace and Defense e seu administrador francês – informação que Edward Snowden “vazou” ano passado.

Segundo numerosas publicações em Bild e Sonntag, mais de uma dúzia de empregados de ministérios e departamentos alemães continuam a trabalhar como informantes da CIA.

Deve-se lembrar que se observou acentuado crescimento nas atividades da inteligência dos EUA contra a Alemanha no início de outubro de 2013, quando Edward Snowden anunciou que a CIA e a NSA gravavam TODOS os telefonemas de Angela Merkel [e também da Presidente Dilma Rousseff, do Brasil (NTs)]. O escândalo foi objeto de uma conversa telefônica entre a chanceler alemã e o presidente dos EUA, em janeiro de 2014. Pouco depois, os EUA declararam uma política “de não espionar líderes de países amigos” (sic).

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo: Mais uma história mal contada por interesses inconfessáveis




por Osvaldo Coggiola, no blog de Raquel Varela


NOTA PRELIMINAR DOS ÍNDIOS DAQUI: Artigo de fôlego, embora meio longo, que lança uma luz muito boa sobre o imbróglio que está mais uma vez a se vender para a grande massa ignara de todos os cantos do planeta


Em 1998, Zinedine Zidane conduzia a seleção francesa de futebol à sua primeira conquista da Copa do Mundo, em Paris. O craque francês de origem argelina integrava um time histórico (também venceu a Eurocopa de 2000) com Didier Deschamps, Emmanuel Petit (nomes mais franceses, impossível), o ghanês Odenkey Addy Abbey (mais conhecido como Marcel Desailly), Lilian Thuram, também de origem africana subsaariana, Robert Pirès (que, se tivesse nascido no país que seus pais abandonaram a procura de trabalho, teria se chamado simplesmente Roberto Pires, e envergado a casaca cor de vinho também usada por Cristiano Ronaldo). A França e o mundo celebraram, na maior conquista esportiva de sua história, a vitória definitiva, no país do hexágono, de uma sociedade multiétnica e multicultural reconciliada consigo própria. O estraga-prazeres que ousou apontar que o time galo mais parecia um catálogo futebolístico do antigo império colonial francês recebeu, discretamente, não uma taça, mas uma garrafada de champanhe na cabeça.

Menos de sete anos depois, em 27 de outubro de 2005, após a perseguição pela polícia, seguida de morte, dos jovens franceses descendentes de africanos Bouna Traoré e Zyed Benna, que fugiam de uma das habituais blitz policiais contra jovens não brancos das banlieues, entraram em um terreno fechado, pertencente à EDF (companhia de eletricidade), refugiando-se dentro de uma edificação onde havia instalações elétricas, onde morreram eletrocutados (um terceiro, Muhittin Altun, sofreu queimaduras graves). Pouco depois, começaram os confrontos em Chêne-Pointu, entre grupos de jovens e a polícia. A revolta se espalhou rapidamente pela periferia de Paris e de outras cidades da França, instaurando-se o estado de emergência em 25 departamentos, a partir de 8 de novembro de 2005 até 4 de janeiro de 2006. Os distúrbios duraram dezenove noites consecutivas, até o dia 16 de novembro. Jovens indignados queimaram 8.970 carros e entraram em confrontos com a polícia francesa, foram presos 2.888 jovens e houve mais um morto. Em 17 de novembro a polícia declarou que a situação tinha sido “normalizada”. Certo Chérif Kouachi, rapper amador, foi posto na prisão.

Em 2011, os escritórios do semanário humorístico Charlie Hebdo, que tinha reproduzido as charges ofensivas sobre o profeta Maomé publicadas há pouco tempo no jornal dinamarquês Jyllands Posten (provocando manifestações de rua em repúdio em países árabes e/ou islâmicos) foram vítimas de um atentado a bomba, que provocou danos materiais, mas não vítimas. E, em novembro de 2013, a coluna sonora do filme francês “La Marche” dava a conhecer ao mundo um rap, “livremente” composto e cantado por vários conhecidos rappers franceses (Akhenaton, Disiz, Kool Shen e Nekfeu), em que o refrão solicitava, com alguma insistência, “um Auto da Fé contra esses cachorros de Charlie Hebdo”. Pouco tempo antes, Al Qaeda divulgara uma lista de condenados à morte (Fatwa), entre os que se encontrava o editor do semanário, Stéphane Charbonnier (ou “Charb”). Et que vive la liberte d’expression!...

A 7 de janeiro de 2015, dois jovens (irmãos) franceses de origem árabe (e de declarada profissão de fé islâmica) decidiram invadir a sede de Charlie Hebdo, e realizar o pedido dos rappers, com meios mais modernos do que os outrora utilizados pelo frade Torquemada. Apresentados depois como profissionais altamente treinados em bases terroristas iemenitas e outros centros de treinamento do Oriente Médio, inicialmente erraram o endereço do jornal, que lhes foi revelado por acaso por uma das jornalistas do semanário que, nesse momento, se apresentava ao trabalho. Graças a isso, entraram e mataram quase todos os presentes na redação (onze pessoas), numa ação realizada com armas “sofisticadas” (como as que circulam em qualquer favela do Rio) e com “grande profissionalismo”, segundo jornais e comentaristas. Tão grande, que um dos jornalistas presentes salvou-se ao esconder-se… em baixo de uma mesa. Uma jornalista presente teve a vida perdoada “por ser mulher” (foi aconselhada a ler o Corão pelos assaltantes/assassinos), mas outra (Elsa Cayat, psicanalista) tinha sido previamente massacrada a pesar de possuir evidentemente a mesma condição.

O corretor de provas de Charlie Hebdo, Mustapha Ourrad, não teve a vida perdoada em que pese sua óbvia e visível origem (étnica) semelhante à dos assassinos. Na saída, os irmãos Chérif e Saïd Kouachi proclamaram aos passantes sua filiação a Al Qaeda (sua filial iemenita) e arremataram (desnecessariamente, de qualquer ponto de vista “militar” ou propagandístico) o já previamente ferido policial Ahmed Merabet, francês de óbvia e evidente origem árabe, demonstrando, se diz, se não seu aguçado faro político ou humanitário, pelo menos seu excelente “treino militar”, pois usaram um só disparo (contra um alvo imóvel, que pedia clemência no chão, situado a menos de um metro de distância…).

Pouco depois, outro “terrorista”, Amedy Coulibaly, acompanhado de sua namorada (ou ex) Hayat Boumeddiene, assassinou primeiro um agente policial na periferia parisiense (Montrouge) para depois invadir, supostamente “sincronizado” militarmente com os Kouachi, um comércio judeu (Hyper Casher), em uma ação de características claramente suicidas, durante a qual foi abandonado pela sua “profissional” cúmplice, que já estaria na Síria. Depois de conceder entrevistas telefônicas em que proclamou sua filiação ao ISIS (Estado Islâmico, EI) foi atacado por forças policiais, que o abateram, não sem lhe deixar tempo suficiente para assassinar quatro pessoas presentes, que não faziam obviamente parte de lista nenhuma de grupo nenhum. O ISIS (EI) reivindicou sua ação, tanto quanto saudou o massacre do Charlie Hebdo.

Os “sincronizados” militarmente irmãos Kouachi, ao contrário, não pretendiam se suicidar, nem ser mortos. Fugiram, demonstrando o sofisticado esquema militar que os rodeava, depois de roubar uma potente Renault Clio 1.0 de um aposentado, ao qual mostraram seus rostos (cobertos durante o massacre) e deixaram recuperar seu cachorro do banco traseiro (“le réflexe d’ouvrir la porte arrière et de dire : ‘Je récupère mon chien.’ J’ai donc récupéré mon chien”), depois de lhe informar, novamente, sua filiação a Al Qaeda de Iêmen (a concorrência dentro da franquia criada há três décadas pelo saudita Osama Bin Laden deve estar forte).

Com enorme profissionalismo e demonstração de recursos secretos em rede, assaltaram no caminho uma loja de mantimentos para ter do que comer, o que foi um dos elementos que denunciou sua localização. Previamente, os Kouachi tinham sido abandonados pelo treinadíssimo profissional terrorista francês Mourad Hamyd, de 18 anos, que dirigira o carro que os levou até a sede do jornal humorístico, que se entregou à polícia logo que as redes sociais vincularam seu nome com o massacre parisiense. Os Kouachi foram dados inicialmente como próximos à fronteira com a Bélgica, mas foram finalmente cercados em Dammartin-em-Goële, não longe de Paris, por uma parte (GIGN) dos 90 mil (!) policiais lançados em seu encalço, e foram mortos.

A indignação e o repúdio contra o massacre de Charlie Hebdo cobriram rapidamente a França e o mundo inteiro. Um desfile pela avenida Champs Elysées com participação de todos os chefes de estado da Europa foi realizado domingo 11 de janeiro, com presença de um milhão de pessoas. Antes disso, e também paralelamente, manifestações enormes foram realizadas em todas as grandes cidades francesas, convocadas por todos os partidos políticos, centrais sindicais e movimentos. As entidades islâmicas (ou árabes) francesas manifestaram também seu repúdio ao massacre, enfatizando sua incompatibilidade com o “verdadeiro” Islã.

Je Suis Charlie invadiu jornais, sites e redes sociais de todas as cores políticas e ideológicas. Outra unanimidade foi definir o massacre como um “atentado à liberdade de expressão”, uma coisa à qual França est très attachée desde os tempos da Grande Revolução (1789), como lembrou Barack Obama e seu enviado John Kerry, este em francês (merci, Johnny), e como sabem todos seus habitantes não brancos submetidos a cotidianos controles policiais (e expulsões do território) no país que inventou os direitos humanos, no melhor estilo de Ferguson (EUA). Sem falar dos que lembram o sequestro das bancas da edição de Charlie Hebdo quando este anunciou escrachadamente a morte do General de Gaulle (Bal Tragique à Colombey: un Mort).

A defesa da liberdade de expressão é um princípio, mas não abstrato e intemporal. Ela foi defendida na Revolução Francesa (e antes dela) contra o Ancien Règime e seu sistema de privilégios de classe. Na França de hoje (à diferença dos EUA) queimar a bandeira nacional em manifestação pública (contra a intervenção militar francesa em Mali, por exemplo) é um delito que dá cadeia. No mesmo país, essa liberdade deve ser defendida contra as sistemáticas tentativas do clero católico de introduzir no código penal o delito de “blasfêmia” (falando em Maomé, isso lembra alguma coisa?) para não falar do apoio dado ministro “socialista” Manuel Valls àqueles que propõem equiparar o antissionismo (oposição ao Estado de Israel, isto é, ao genocídio palestino) ao antissemitismo, responsável pelo Holocausto judeu.

A “união nacional” xenófoba (europeia inclusive) tentada pelos governos, aproveitando o infame massacre múltiplo, começou a fracassar logo de cara: em Lyon, na manifestação popular reunida em frente à prefeitura, a multidão respondeu com um poderoso coro “Charlie, Charlie” à tentativa das autoridades de puxar o canto de La Marseillaise (os mais velhos talvez lembrassem os quebra-quebras promovidos pelos veteranos paraquedistas franceses quando o francês-judeu Serge Gainsbourg pretendia cantar em público sua versão rap do hino nacional francês, Aux Armes, etcetéra; eram só duas “liberdades de expressão” em confronto, foi dito então – uma armada, a outra não). A manifestação era por Charlie Hebdo, não pela “França eterna”.

O por vezes lucrativo mercado das interpretações estapafúrdias e conspiracionistas foi, como não podia deixar de ser, acionado de imediato. Um inefável “pesquisador” belga, que já montara une petite affaire baseada na afirmação de que os atentados às Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001 foram obra da CIA e do Mossad (os árabes, como se sabe, seriam totalmente incapazes de uma empresa como essa, sobretudo contra os eficientíssimos serviços secretos ocidentais) já soltou a bomba (de crema) de que os irmãos Kouachi seriam agentes dos serviços secretos franceses (estes, certamente, já fizeram várias e boas, como a explosão de um barco do Greenpeace). Os herdeiros de Fouché e Talleyrand andariam, ao que parece, recrutando franco-árabes pobres e suicidas, se possível com um passado na prisão. Uma célebre pesquisadora argentina descobriu, desde Buenos Aires (! - a distância dos acontecimentos às vezes ajuda) o braço longo da OTAN atrás dos dedos que puxaram os gatilhos na rua Nicolas Appert. A feira só acabou de abrir, outros produtos mais sofisticados logo virão.

Os produtos mais perigosos nessa seara, no entanto, são os vendidos na feira montada do outro lado da calçada. Os “grandes” jornais franceses (se é que algum deles merece ainda esse qualificativo) já lançaram a espécie de que a “sincronização” (provavelmente só imaginária, ou desejada) entre os Kouachi e Coulibaly anuncia (ou evidencia) uma junção entre Al Qaeda e Estado Islâmico, ou seja, uma nova etapa do “guerra terrorista internacional”, em que o inimigo estaria agora dotado de um exército regular (EI) e de um braço terrorista (Al Qaeda). Que obrigaria a um Patriotic Act internacional, uma contradição em seus termos.

A francesa Marine Le Pen, provável beneficiária eleitoral dos acontecimentos com sua xenófoba Frente Nacional, já lançou sua proposta de reintrodução da pena de morte (abolida, na França… em 1981), criticando o governo Hollande por não “dar nome aos bois” da ameaça antifrancesa (o islamismo radical), mas excluindo de seu alvo os “bons islâmicos franceses”. A senhora pretende mesmo vencer as eleições (seu papai, Jean-Marie Le Pen, fundador da FN, só chegou a um segundo turno presidencial) e demonstra que até os fascistas aprendem, quando necessário: “Papai Jean-Marie” havia criticado, em meados dos anos 1990, a presença de negros e árabes na seleção francesa de futebol, responsável segundo ele pelo seu baixo desempenho (os “bleus” não classificaram para a Copa de 1994, sendo derrotados na eliminatória, em casa, por… Israel); pouco tempo depois, Zidane e amigos lhe fizeram enfiar suas palavras numa parte de seu corpo frequentemente retratada por Charlie Hebdo.

Do outro lado dos Alpes, onde as autoridades costumam ser mais papistas que o Papa (o que não é surpreendente, num país que abriga o Vaticano), uma circular das autoridades educacionais do Veneto (de 8 de janeiro!) recomendou que se exigisse dos pais de alunos de origem árabe que se pronunciassem condenando os atentados da França, e que a questão do “terrorismo islâmico” (sic) seja abordada em sala de aula, pondo em guarda os alunos e famílias contra uma “cultura che predica l’odio contro la nostra cultura”. Ou seja, que se trata de cultura mesmo, não de armas ou de atentados.

A temida frente Al-Qaeda/EI, destinada a cobrir com uma onda de terror o planeta inteiro, se acontecer, terá por raízes não conspirações urdidas em cantos escuros de mesquitas orientais, mas negócios urdidos em corredores com os paladinos da “guerra contra o terror”. EI é, ao que parece, uma cisão de Al-Qaeda, depois que esta se mostrou cada vez menos operacional. Um oficial arrependido (há vários) da inteligência norte-americana denunciou que o “monstro” EI foi parido pelos serviços (mais ou menos) secretos ianques, diretamente ou através da intermediação de seus aliados da Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos. Os Estados Unidos se recusaram a ajudar o governo da Síria a combater grupos como Al-Qaeda e o então chamado ISIS (Exército Islâmico do Iraque e da Síria, que mudou de nome para “Estado Islâmico”). Além disso, segundo revelações feitas pelo site Wikileaks, o governo norte-americano armou grupos, como o ISIS e outros, para derrubar o governo sírio.

Quase três mil documentos sobre essa questão foram vazados pelo site de Julian Assange em agosto de 2014. Que também revelaram que isso aconteceu depois de Bashar al-Assad, o repressor presidente sírio, mostrar empenho “no combate ao terrorismo e aos grupos radicais islâmicos no Oriente Médio”, ou seja, declarar sua intenção de colaborar com os EUA na região. Para enviar as armas para o ISIS, o governo Obama usou bases clandestinas na Jordânia e na Turquia. Aliados dos EUA na região, como Arábia Saudita e Catar, também forneceram ajuda financeira e militar. Agora, o demônio parece ter-lhes fugido do controle, como já acontecera com Al-Qaeda.

Buscar as origens de toda essa porcaria, e dessa crise da política externa do imperialismo norte-americano, no “islamismo político” (Irmandade Muçulmana) fundado por Hassan por Al-Banna no Egito dos anos 1920 é um belo exercício de erudição inútil. O islamismo (institucional ou não) foi um fator de moderação, com políticas assistencialistas e prédica religiosa, e até de combate do nacionalismo e do anti-imperialismo árabe (ou iraniano) nas décadas sucessivas, quando este se aproximou mais da URSS, do maoismo e até do marxismo revolucionário. A “guerra fria” aguçou essas características. A passagem para o “islamismo com metralhadora” foi auspiciada pelos EUA em resposta a, e graças à, invasão soviética do Afeganistão (vinculada ao desenvolvimento da revolução contra o Xã Reza Pahlavi e seu governo de charmosos assassinos no Irã).

Osama Bin Laden (entre outros) contou com importantes meios financeiros e militares fornecidos pelos EUA (além dos próprios, que já eram importantes, como filho de uma das mais ricas famílias sauditas) para provocar o desejado “Vietnã da URSS”, cinco anos depois do Vietnã americano. Tornou-se carta fora do baralho (americano) com a retirada soviética do Afeganistão e o consecutivo início da contagem regressiva da URSS. Mas era uma carta armada até os dentes e com contas bancárias de muitos dígitos espalhadas pelo mundo. O feitiço virou-se contra o feiticeiro e o restante, do atentado de Nairobi até o World Trade Center em 2001, é história hoje conhecida. Seu declínio e sua morte num vilarejo perdido do Paquistão, sem custódia e com 300 euros no bolso, não deram, porém, fim à história do pântano da política imperialista (norte-americana e europeia) no Oriente Médio e na Ásia Central. Os EUA se retiraram do Afeganistão e do Iraque invadidos, deixando atrás de si o caos político mais completo, devido a pressões internas e internacionais (e à sua própria crise econômica galopante), que os obrigaram também a retirar da Casa Branca o clã Bush e seus alucinados planejadores da “guerra infinita” (Donald Rumsfeld, Blackwater and Co.).

E tiveram de voltar logo depois, agora com “drones”, “tropas preventivas” e, sobretudo, agentes interpostos (enviar tropas próprias seria extremamente impopular, nos EUA), que deram nova vigência à Al-Qaeda e seus filhotes (desejados ou não). Estes já aprenderam (Osama Bin Laden sacrificou sua vida no aprendizado) que é possível ter seu próprio jogo nesse xadrez de morte. E começaram a recrutar na Europa, na Rússia, na China e nos próprios EUA, para ações onde for preciso, ou simplesmente possível. Mas só se recruta onde há bases para esse recrutamento; França é um território privilegiado. Como afirmou um panfleto (de L’Insurgé) lançado em Paris logo depois dos assassinatos no Charlie Hebdo: “Comment ne pas comprendre que ces groupes, jouant sur la xénophobie et la misère dont sont victimes, en Europe, nombre d’enfants d’immigrés, puissent à leur tour embrigader quelques dizaines de paumés? Et en usant pour cela de la religion comme d’une drogue?”.

8,4% da população francesa está composta por imigrantes; seus filhos, por sua vez, perfazem 11% da mesma população. Ao todo, quase 20% da população, sendo os árabes (ou de origem árabe) o contingente mais numeroso. A maioria dos imigrantes chegou nas décadas entre 1950 e 1970, quando as portas da França (e de outros países europeus) se abriram, em meio ao boom econômico, para trabalhadores em setores de mão de obra escassa, ou em serviços (limpeza, colheitas, serviços domésticos) que os franceses se recusavam doravante, por variados motivos (salariais, em primeiro lugar) a executar.

Os primeiros (os imigrantes) carecem de direitos políticos; os segundos os possuem, mas são objeto de discriminações cotidianas. A integração dos “OS” – peões de chão de fábrica – imigrantes na vida sindical, primeiro passo para sua integração na luta de classes e na vida social do país, foi limitada. As políticas das direções “socialistas” e “comunistas”, que só os aceitaram como enfeite, e das burocracias sindicais, foram as principais responsáveis por isso. Empilhados em alojamentos precários (os foyers Sonacotra), vítimas de mil entraves burocráticos para reunir suas famílias no novo lar, inclusive depois de décadas de trabalho. Discriminados nas escolas, discriminados até nos bares, nos lugares de lazer, confinados em guetos. Os importadores de mão de obra barata, que acelerou a acumulação de capital e os lucros do capitalismo francês nos “trinta anos gloriosos”, “esqueceram” (propositalmente, claro) que não estavam importando apenas trabalho, mas pessoas, com cultura, desejos e aspirações próprias. Atender essas necessidades não dava lucro, apenas gastos.

Pais árabes sem religião (ou não praticantes) passaram não raro a ter filhos islâmicos praticantes. O responsável da mesquita frequentada pelos irmãos Kouachi se lembrou deles (em entrevista à TV) como discretos e calados, usando roupas “ocidentais”, mas que se exaltaram (contra) quando na mesquita foi feito um chamado a participar da vida política do país, nas eleições francesas. Estrangeiros no país em que nasceram e se criaram. Essa informação vale mais que todas as descobertas de “pesquisadores” sensacionalistas à cata de negócios editoriais.

Fracasso da badalada “sociedade multicultural”, da “tolerância entre culturas”? Mas a própria noção de “tolerância” não implica que haja “tolerantes” e “tolerados”, isto é, opressores e oprimidos? Quem é que quer ser apenas “tolerado” durante toda uma vida? Alguns setores da vida do país se abriram para os árabe-franceses, em especial na cultura; alguns franceses passaram a apreciar a música árabe. O rap franco-árabe conquistou algum lugar nas paradas. Mas foi pouco, foi lento, e a máquina trituradora da sociedade de classes continuou a funcionar com muito maior rapidez e eficiência.

A crise econômica e o “desemprego estrutural”, a partir de meados da década de 1970, completaram a catástrofe. “Les Français d’abord” não foi só um slogan de partidos de extrema-direita (depois, apenas de direita), mas também uma frase que se ouvia com demasiada frequência nas filas das agências oficiais de emprego. E a esmola oferecida aos desempregados crônicos passou a ser chamada, quando concedida a trabalhadores estrangeiros, de aproveitamento parasita por parte destes dos impostos pagos pelos “honestos franceses”. A extrema direita xenófoba (no início, explicitamente antissemita) pulou gradativamente de menos de 1% para mais de 20% dos votos, obtidos inclusive entre os setores mais pobres dos antigos eleitorados socialista e comunista.

Fracasso do sistema educacional francês em integrar comunidades de origem alógena aos valores e tradições republicanas da França, inclusive quando já se encontram na sua terceira geração de árabes nascidos no país? Valores que integram, por exemplo, a invasão napoleônica do Egito, em 1798 (as peças arqueológicas e obras de arte roubadas na empreitada enfeitam até hoje o Museu do Louvre e o Museu Britânico, em que pesem as reclamações dos governos egípcios). A colonização da África do Norte pelos franceses, a partir de 1830. As aventuras coloniais africanas de Napoleão III. A corrida às colônias de franceses (e outros europeus) na África e na Ásia, na passagem do século XIX para o século XX.

E, no século XX, os acordos Sykes-Picot que dividiram Oriente Médio ao sabor dos interesses das potências colonialistas europeias. A repressão sangrenta da revolta encabeçada por Abdelkrim (Abd el-Krim El Khattabi) no Marrocos franco-espanhol, na década de 1920, realizada pelo marechal Pétain, o mesmo que entregou depois a França aos nazistas. O uso das “tropas coloniais” para as tarefas mais sujas, podres e perigosas, como a ocupação do Rühr alemão (1923), ou na Segunda Guerra Mundial. A “guerra suja” (foi aí que o termo foi cunhado) de França contra a luta pela independência da Argélia, modelo das ditaduras latino-americanas. O bombardeio massacrador de Sétif e Guelma, com 50 mil mortos. O massacre de manifestantes pela independência argelina no metro Charonne, em 1962, com dezenas de mortos e feridos, ordenado pelo prefeito parisiense Maurice Papon (depois julgado por crimes de guerra e colaboracionismo com os nazistas). E, como dizem os franceses, j’en passe (os massacres no Chade e em Ruanda, a intervenção na Líbia, a atual intervenção “anti-islâmica” no Mali)… Como “integrar” as vítimas às tradições e valores de seus açougues?

Por que estava “Charb” na lista de alvos de Al-Qaeda, ao lado de Shalman Rushdie e outros? Existe uma explicação mais óbvia do que a óbvia, citada inicialmente: porque essa lista existe. Se não existisse, Al-Qaeda, grupo (ou melhor, franquia) terrorista, perderia uma de suas razões de ser. O terrorismo existe em razão de seu alvo, real ou imaginário, justificado ou inventado.

E porque Charlie Hebdo? Vamos deixar de lado a explicação sem pé nem cabeça de que se trata de uma publicação de extrema esquerda, portanto ateia, marxista-anarquista ou coisa que o valha. As críticas de Charlie Hebdo à corrupção estatal e ao capitalismo predador a situam (sem grande destaque) dentro de uma constelação de publicações francesas semelhantes (sendo a mais célebre Le Canard Enchaîné). Charlie Hebdo não tem vínculos políticos explícitos, a não ser a colaboração de seu mais célebre cartunista, mundialmente reconhecido e assassinado a 7 de janeiro, Georges Wolinski, e do próprio “Charb”, com as publicações do Partido Comunista (PCF).

O específico de Charlie Hebdo não é isso, mas seu humor escrachado, multidirecional e sem limites (morais, políticos, ou seja lá o que for) de qualquer espécie. De valor desigual, e convenhamos em que produzir semanalmente cinquenta páginas de humor gráfico ou escrito escrachado em extremo não é tarefa para qualquer um. Perto de Charlie Hebdo, o CQC (brasileiro ou argentino) ou o extinto Cassetta & Planeta de Bussunda e amigos parecem programas infantis com roteiro redigido por freiras. Algumas de suas capas (sobre a morte de de Gaulle; sobre a exposição do cadáver de Paulo VI durante uma semana no Vaticano, ilustrada por um queijo camembert em decomposição; sobre a fracassada e carbonizada expedição americana para resgatar os reféns de Teerã – Carter offre un méchoui aux iraniens – e outras) se tornaram históricas.

Sustentou-se que se trata de uma tradição especificamente francesa, do “país da liberdade”, que remonta à própria Grande Revolução do século XVIII. Uma verdade parcial (ou, como dizia Sarmiento, a pior das mentiras): o humor bombástico dos panfletistas e desenhistas revolucionários tinha, naquele tempo, alvos bem específicos (a família real, a nobreza, o sistema autocrático, etc.). Charlie Hebdo tem (tinha?) todos os alvos, franceses, europeus, internacionais. Ninguém estava a salvo. Aventuraria dizer que Charlie Hebdo era (junto com seus antecedentes, Hara-Kiri e publicações assemelhadas) o último e impenitente sobrevivente de Maio 1968, do escrache total com vistas à “revolução total”. Por ser francês (e muito) – foi imitado por outras publicações europeias, que não conseguiram chegar nem perto – padeceu também de taras e preconceitos tipicamente franceses: a capa com Maomé de quatro, com uma estrela no lugar do ânus (Une étoile est née) era bem menos “irreverente” do que totalmente carente de graça ou comicidade, o tipo de baixaria que nem sequer faz sorrir. Com certeza, o editor David Brook, no New York Times, fez bem em lembrar que, nos Estados Unidos, a publicação de Charlie Hebdo não seria permitida…

E com certeza, “Cabu”, “Charb”, “Honoré”, “Tignous”, Wolinski, “Oncle Bernard”, Elsa Cayat, Mustapha Ourrad, Michel Renaud, Frédéric Boisseau, Franck Brinsolaro, nem suspeitavam que seriam um dia celebrados como símbolos da “liberdade francesa” (um conceito que os fazia ou faria rir às gargalhadas) por governos de corruptos e açougueiros, políticos de direita, e ícones do conformismo artístico e cultural. Os que foram às ruas foram por eles, os iconoclastas sem limites assassinados sob as ordens de fascistas de periferia, não por Hollande, Sarkozy ou Le Pen (ou por Merkel, Rajoy ou Renzi). Mas, por enquanto, não têm alternativa política a eles, e tiveram de aceitá-los, bon gré, mal gré, à cabeça das passeatas.

Mas são muitos os que sabem que, por trás desse “fantasma da liberdade” (diante do qual os “bons islâmicos” da Europa deveriam se ajoelhar e aprender, como se fossem crianças ignorantes, mas perigosas) se desenha um Estado policial “antiterrorista” e, no bojo deste, um fascismo new age e um aprofundamento das políticas e dos massacres colonialistas e imperialistas, em primeiro lugar no Oriente Médio, na Ásia central e na África. O terrorismo indiscriminado que usa Maomé como pretexto para defender os interesses de burguesias periféricas, e também de um clero reacionário e parasita, existirá enquanto as massas árabes não tenham uma alternativa política independente. O proletariado e as massas exploradas na Europa podem lhes pavimentar o caminho lutando contra o capitalismo e o imperialismo em seu próprio país e continente. Por uma sociedade em que as culturas de todo o mundo possam se desenvolver livremente como expressões de um único gênero humano, sem necessidade de gurus “multiculturais” nem de policiais “civilizados” autorizados a impor a “civilização” com bombas, massacres e saques impostos aos “incivilizados”. A religião (todas), nesse processo, trouvera son compte.