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terça-feira, 10 de julho de 2018

O contorcionismo semiótico do Braziu...ziu... ziu!...



por Wilson Roberto Vieira Ferreira, no ótimo Cinema Secreto:Cinegnose

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A máquina semiótica da Guerra Híbrida faz nesse momento um pesado investimento ideológico para justificar os efeitos do atual modelo neoliberal imposto ao Brasil: crise, desemprego e precarização do trabalho, no qual milhões de desempregados foram promovidos repentinamente a “empreendedores”. E no rescaldo da eliminação do Brasil diante da Bélgica na Copa da Rússia está sendo mobilizado uma operação de emergência para salvar o alto investimento semiótico-ideológico feito no futebol pela grande mídia e mercado publicitário: salvar Tite e Neymar e colocar em ação o tradicional sacrifício do bode expiatório – o volante Fernandinho. Por que?

Em cada época, o futebol reflete o modismo linguístico do seu momento. Na Copa de 1978 o técnico da Seleção Cláudio Coutinho tinha um discurso repleto de conceitos estranhos como “overlapping”, “ponto futuro” e “polivalência”. Refletia a europeização do futebol com estrangeirismos ao gosto de uma nova classe média que surgia do breve “milagre econômico brasileiro” da ditadura militar – uma classe que ansiava tudo que emulava o “estrangeiro” como o Play Center em SP e cantores brasileiros que se passavam por gringos como Morris Albert.

Nos anos 1990 termos como “qualidade do passe”, “excelência tática” e “gestão do time” passaram a ocupar o discurso dos técnicos nas coletivas com a imprensa pós-jogos. Outro reflexo, dessa vez do modismo da Reengenharia e dos certificados de qualidade ISO 9000, febre nos meios corporativos. E de um futebol que buscava se profissionalizar. Pelos menos na aparência discursiva.

E agora nesse início de século XXI, na boca dos jogadores e técnicos em preleções e entrevistas pós-jogo, é um tal de “fazer a diferença” de um lado e “estar focado” do outro... Principalmente no paroxismo desse modelo linguístico atual – o jargão mérito-empreendedor-motivacional de dez em cada dez palestrantes corporativos. Cujo reflexo está no discurso do técnico da Seleção Tite, celebrado pelos comerciais do banco Itaú. “Fazer por merecer”, “desempenho”, “trabalho”, “estar determinado” e assim por diante.

Em meio aos anos da ditadura militar brasileira, as seleções de 1970 a 1978 serviram à função ideológica mais primária de “pão e circo” – como falsa consciência, cujo papel era o de encobrir os “anos de chumbo” de censura, perseguições, torturas e assassinatos políticos.

Mas desde o Golpe de 2016 o futebol, principalmente o da Seleção, passou a ter um papel ideológico mais sofisticado do que de um mero tapume erguido para esconder a realidade. Passou a ter uma função de “cimento ideológico”. De função motivacional para 14 milhões de desempregados e outros tantos milhões de “desalentados” – aqueles que nem emprego procuram mais. A incumbência não de negar a crise (papel da velha função da falsa consciência), mas de narrar por um outro viés a conjuntura de crise: como oportunidade de crescimento ou empreendedorismo individual – a chance de “fazer a diferença”.

Um papel tão sofisticado quanto das bombas semióticas da guerra híbrida a partir de 2013 (clique aqui) e da qual essa nova função ideológica do futebol faz parte.

A desclassificação do Brasil pela Bélgica no jogo pelas quartas de final na Copa da Rússia deve ser analisado como um revés momentâneo no futebol, visto como peça ideológica da atual guerra híbrida cujo País é o alvo do momento.

Uma peça dentro do grande “mecanismo” (esse sim, o verdadeiro “mecanismo”) semiótico para criar duas narrativas midiáticas bem claras para justificar (e não legitimar) todo o processo político de golpe e posteriores efeitos deletérios das medidas neoliberais aceleradas – desemprego, crise econômica, inflação, precarização do trabalho etc.


a) o discurso da corrupção

Narrativa midiática diária com o Mensalão e a interminável Lava Jato com o meganhamento da Justiça e o bordão diário na TV: “policiais federais nas ruas!...”.

Aqui, com uma função ideológica clássica de falsa consciência: estratégia de desvio da atenção, de dissimulação. Enquanto estudos da própria Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (a Fiesp dos inesquecíveis patos amarelos e de um sapo verde tardio) projetavam em 2014 que enquanto as ações corruptas no Brasil roubavam de 1,38% a 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB), as altíssimas taxas de juros levavam o pagamento da dívida pública a ocupar 57% do PIB.

Da mesma forma como as “pandemias” como gripe suína ou zika vírus ocuparam mais espaço midiático (enquanto gripe comum, diarreia ou sarampo matam em escala muito maior – clique aqui), da mesma maneira a grande mídia criou uma relação metonímica de contaminação da corrupção com todas as mazelas nacionais – da crise econômica à deterioração da saúde, educação, segurança etc.

Enquanto isso, bancos, instituições financeiras, empresas de investimento, o mercado de crédito, de capitais, de câmbio e monetário nadam de braçadas em um ambiente dos juros altos (garantidos pelo do Banco Central), tomando o próprio Estado e a Nação como reféns do pagamento da dívida pública – decisivo para a crise brasileira.

E numa estratégia clássica de agenda setting (forçar o agendamento na mídia de determinadas pautas), bancam os intervalos publicitários dos telejornais que martelam a agenda do combate à corrupção como o saneador de todos os problemas nacionais.


b) O discurso do mérito-empreendedorismo
Ao bancar os intervalos publicitários, estimulam peças de propaganda que consolem as massas dos efeitos das medidas neoliberais a toque de caixa – no final, medidas para garantir o ambiente de juros altos do mercado financeiro.

Aqui entram o futebol e a Seleção como vitrines de uma função semiótica mais sofisticada que a mera falsa consciência: a de “cimento” ideológico – não negar a realidade da crise, mas torna-la tão verossímil quanto um acidente natural que deve ser superado pela narrativa individualista do “fazer a diferença” daquele que trabalha. Ou melhor, empreende, que “faz por merecer”.

O problema para tornar a Seleção uma peça desse mecanismo para injetar cimento ideológico nas massas estava na distância desses jovens milionários brasileiros europeizados da realidade do dia-a-dia do brasileiro. Por isso, dois personagens foram destacados para criar algum laço de empatia: Tite e Neymar Jr.

A participação de treinadores da Seleção em comerciais é algo comum desde os anos 1970, e foi progressivamente aumentando até atingir o ápice com o Felipão, na Copa de 2014, com 7 participações de comerciais. O personagem que desempenhou se encaixou no clima de instabilidade emocionou e política envolvendo a Copa e a Seleção: Felipão era figurado como um personagem cômico que tentava lidar com as cobranças da torcida, representada como exigente e que gosta de palpitar.

Ao contrário, nos comerciais dos patrocinadores atuais da Seleção (Itaú, Samsung, Cimed) Tite reina como protagonista absoluto, com aura de líder com discursos que unem estímulos motivacionais, sensatez e sabedoria.

Enquanto Neymar Jr, apesar de todos os seus chiliques, desequilíbrio e grosserias, foi definido em uma mesa de debates como “transparente emocional” e “caçado em campo”. Aquele que deverá “superar as adversidades”, criando uma empatia com os brasileiros também “caçados” pela crise e desemprego...

A derrota brasileira, enquanto o mundo ria dos memes do Neymar que atravessou a Copa tecnicamente apagado, fez nesse momento a grande mídia disparar os dispositivos semióticos para salvar todo investimento linguístico e ideológico nesse rescaldo pós-derrota.



(1) O ritual de sacrifício do bode expiatório

O volante da Seleção, Fernandinho, foi escolhido como o bode expiatório da tragédia. “Fernandinho, como no 7X1, repete falhas em nova queda do Brasil”, estampa o jornal Folha de São paulo. No JN da Globo, “Lukaku passou como quis por Fernandinho” na origem do segundo gol da Bélgica. “Um dos vilões do 7 X 1, Fernandinho marca gol contra e decepciona mais uma vez”, fuzila o Estadão.

Vão-se os anéis, ficam os dedos... sacrifica-se o culpado e salva-se todo o investimento ideológico feito na seleção até aqui.

E o resultado previsível: açodado pela grande mídia no ritual de sacrifício, Fernandinho sofreu ataques racistas em redes sociais após a eliminação do Brasil. É o modus operandi midiático desses últimos tempos.


(2) Cadê o Tite?

Estranhamente nesse momento, os críticos de plantão da grande mídia sentem-se pisando em ovos com Tite. Afinal, ele parece criar um estranho efeito nos jornalistas: sempre tão solicito, didático e paciente nas coletivas, parece fazer os jornalistas se sentirem inteligentes.

Não há o costumeiro pelotão de fuzilamento e a escolha do técnico como o previsível culpado. Por exemplo, o comentarista PVC da Fox Sports fala de “erro de diagnóstico da comissão técnica”. Outros falam que o “Brasil demorou para entender a mudança tática da Bélgica”.

O nome Tite é substituído por “comissão técnica” e “Brasil”. Há de se salvar o investimento semiótico que os patrocinadores fizeram em Tite. E tudo que o técnico representa como garoto-propaganda do mérito-empreendedorismo que se enfia goela abaixo dos brasileiros na guerra híbrida.


(3) Cadê o Neymar?

Outro investimento semiótico que precisa ser poupado. Deixou a Arena Kazan sem falar com a imprensa após a eliminação contra a Bélgica. Aliás, só falou duas vezes com os jornalistas nessa Copa. Por muito menos, técnicos como Dunga foram execrados pela grande mídia (e principalmente a Globo) - para a costumeira autoindulgência jornalística, sempre foi um pecado capital.


Mas diante do alto investimento financeiro e ideológico em Neymar, até a autoindulgência da imprensa foi supreendentemente neutralizada. Enquanto , condescendente, o coordenador técnico Edu Gaspar declarou numa coletiva aos jornalistas: “Não é fácil ser Neymar...”.


4) Craques-commodities

Terminada as quartas de final, todas as seleções sul-americanas deixaram a Copa. Parece sintomático.

Sintoma da “commoditização” do futebol desse continente, reflexo da condição de nações sub-industrializadas reduzidas em exportadoras de commodities – exportar produtos primários de baixo grau de transformação para serem beneficiados lá fora. Modelo que favorece a própria banca financeira e mercado publicitário que patrocinam a Seleção.

De maneira análoga, o continente exporta jovens jogadores como simples commodities que serão transformados em craques nos clubes europeus, além de ganharem alto valor agregado em marketing, publicidade e mídia. Craques que jamais funcionarão nas seleções dos seus países de origem.

Craques-commodities serão sempre cronicamente disfuncionais nas suas seleções nacionais. E nas seleções sul-americanas essa realidade parece ser mais dramática.

Crônica: Terceiro Mundo, um trem para nada mais




por Pedro Marin, no blog do Nassif

Foi em um desses ominosos dias em que deveria me despedir. Peguei minha mochila, lhe dei um beijo e saí, com meu compadre, às 10 da noite. Não demorou muito até pararmos uma das vans que operam quase clandestinas em Guarulhos. Subimos nos bancos da frente. O motorista acelerava e costurava entre as vias e, às vezes, as calçadas, como se o mundo todo tivesse sido criado por Deus na forma de atalhos. Enquanto isso, tratávamos do cenário político e da crescente influência dos militares na política nacional.


O Comandante do Exército, General Villas Boas, havia tuitado em 3 de Abril, cerca de uma semana antes, que assegurava “à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.” A mensagem do General irrompeu no Jornal Nacional naquela noite, um dia antes do STF julgar o habeas-corpus de Lula.

De qualquer maneira, as ruas do bairro dos Pimentas que levam à estação de São Miguel Paulista passam por ao menos três das dezenas de favelas da região. Em uma dessas, a “Favela do Pantanal”, se empilham pequenas casas de madeirite, acima de um pequeno córrego (o “Pantanal”.)

Chegamos enfim a São Miguel, quarenta minutos depois. (A viagem usualmente leva uma hora de ônibus, mas a disposição dos motoristas para a velocidade são a razão pela qual a maior parte do povo prefere as vans semiclandestinas.)

Pego o trem. São 11 da noite.

Kreeeeeeen… A porta do vagão abre subitamente, e um mascate passa por ela, anunciando os chocolates que vende. Antes de chegar ao destino, ao menos mais quatro deles aparecerão vendendo seus produtos. São parte dos 34,2 milhões de brasileiros que agora trabalham informalmente, sem registro. De acordo com o IBGE, trata-se do maior número de trabalhadores sem carteira registrada na história, sendo essa a primeira vez em que o número daqueles que trabalham por conta própria superou o daqueles com trabalhos formais (33,3 milhões).

E então chego à estação do Brás. Essa é a principal conexão entre o sistema de trens, que cobre as periferias distantes de São Paulo, ao metrô. Há na estação quatro plataformas, e acima de cada uma delas há uma tela gigante; são quatro monstros luminosos que vendem tudo, de celulares a geladeiras, e alumiam as massas que ansiosamente esperam o próximo trem. Sendo um habitante do Terceiro Mundo, o leitor entenderá perfeitamente a estranheza de se viver sob as asas do progresso e do consumo, de um lado, e do subdesenvolvimento e pobreza do outro, como se fôssemos ovelhas admirando os telões, com sede de Coca-Cola apesar da água enlameada que bebemos, impressionados com a imponência estrutural dos shoppings aos finais de semana, mas acostumados à visão diária da arquitetura paleolítica das favelas. O novo (velho) controle ideológico, sob o qual as contradições do Mundo são profundamente escondidas estando à frente de nossos olhos, como se não pudesse haver perversidade em uma realidade tão aberta e transparente. As telas, o semiclandestino, as favelas, os trens, os vendedores: nada impressiona. Tudo é simplesmente como é. O clarão do anúncio evidencia a blusa costurada na Índia, mas é sob sua sombra que vivem os generais e os dados do IBGE.

A maior parte das pessoas, mesmo que vivam na Favela do Pantanal, mesmo que peguem estes trens, mesmo que neles vendam doces às 11 da noite, só verá o brilho atordoador das telas. Como o escritor mexicano Fabrizio Mejía escreveu: “a cultura dominante não se mantêm por ser melhor, mas por criar a ilusão de que não há nada mais.”

Pedro Marin, 22, é editor-chefe e fundador da Revista Opera. Foi correspondente na Venezuela pela mesma publicação, e articulista e correspondente internacional no Brasil pelo site Global Independent Analytics