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segunda-feira, 22 de agosto de 2016
Touradas, Tititica e o que nos espera
NOTA - Tenho postado pouco aqui no bloguinho, mas esse ensaio aqui eu quero compartilhar a guisa de manter como um libelo, para poder ser apreciado daqui a um tempinho, quando a merdeira se consolidar e não haver mais volta!...
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por Wilson Ramos Filho, no blog do Nassif , excerto inédito do livro Resistencia Intenacional ao Golpe de 2016
Na Espanha há aficcionados por touradas que sabem histórias, narram corridas antológicas, veneram toureiros e admiram touros valientes, os que lutam bastante antes do golpe final.
Durante o período de "instrução" da farsa do impeachment no Senado brasileiro, no início de julho de 2016, um toureiro desconhecido entrou para a história: ao invés de matar, morreu em Teruel, Aragon. Levou uma violenta cornada no peito e verteu sangue na areia tantas vezes lambuzada, há séculos, pelo viscoso e rubro sangue de miúras. O touro de Teruel, anônimo até então, também entrou para a história.
Muito provavelmente ninguém de fora de Teruel, ainda que fã da tauromaquia, saberia quem era o tal Victor Barrio que entrou para a história da pior maneira possível para um toureiro: foi corneado e estrebuchou na arena à vista de todos, de quem estava ao sol e dos que, à sombra, ensaiavam olés e bravos um pouco melhor acomodados.
Muitos dos que são contra touradas festejaram a morte de Victor Barrio; quem o conhecia passou a admirá-lo (mais pela morte que pela pouca vida de touradas medíocres, é verdade), pois também na Espanha defuntos costumam ser indultados pelos defeitos reais ou presumidos que lhes são atribuídos.
O certo é que o valente miúra que, morto, provavelmente teria suas duas orelhas oferecidas à autoridade presente, foi sacrificado nas cocheiras, como reza a tradição, sem qualquer pompa. Quem confiaria em quem mete chifres, corneia, usurpa o protagonismo que não lhe cabe? Passado o momento do aplauso, vem a sentença, inequívoca e severa: morrerá como uma vaca, suas orelhas não serão disputadas como troféu, nenhum taxidermista empalhará sua cabeça, ninguém reivindicará seu robusto rabo para guisar a tradicional cola de toro, tão mais saborosa quanto mais brigador for o touro. A dele foi uma morte sem glamour, sem memorização, uma expiração, nada mais, virou carcaça.
A morte do toureiro que entrou para a história como não pretendia, na conjuntura brasileira em que se desenvolve um Golpe de Estado, convida à reflexão. O Brasil tem uma elite econômica medíocre. Os políticos financiados por essa gente não são menos desprezíveis. Financiadores e financiados são como tiriricas, nome de uma praga que infesta plantações com raízes profundas que dificultam sua erradicação. Empresários corruptos e corruptores tramaram o Golpe de Estado por intermédio de um fraudulento processo de impeachment conduzido pela pior composição que o Parlamento brasileiro já teve.
Um palhaço, por profissão, chamado Tiririca, foi eleito Deputado Federal na atual legislatura. As elites econômicas e uma significativa parcela do estrato síntese da nova pequena-burguesia barnabé meritocrata, que sempre ridicularizaram o Deputado Tiririca por seu suposto analfabetismo, o aplaudiram quando - ao contrário do que havia anteriormente anunciado - resolveu apoiar o Golpe Parlamentar. Ignorante, Tiririca pensa que agora sim, agora será finalmente aceito por seus pares e pelas classes médias que até a semana passada dele desdenhavam. Barnabés incautos, espelhando-se no empresariado que tanto admiram, como Tiririca, baliram "fora Dilma" pensando que "agora sim" com o golpista entronado teriam seus holerites fornidos.
Sempre achei que Tiririca não destoava na Câmara dos Deputados. Conheço alguns deputados de raciocínio tão primário quanto o dele. Devo confessar, contudo, que nem nos meus piores pesadelos imaginaria a quantidade de tiriricas que infestou o Congresso Nacional nas últimas eleições. A falta de compostura daqueles tiriricas, acabrunhado admito, envergonhou-me quando tive acesso aos melhores jornais internacionais depois daquela memorável tarde de domingo, em que mais de trezentos corruptos autorizaram a abertura do processo de cassação da vontade popular.
Os empresários presos na “Operação Lava Jato”, de igual modo, não destoam da maioria do empresariado brasileiro. São aquilo: querem benefícios do Estado e defendem o livre mercado, consideram "normal" sonegar impostos e direitos aos seus empregados. Esses tiriricas que conspiraram para que sua ideologia chegasse ao governo, com o Golpe, desde há muito infestam a história de nosso país e nos envergonham.
O Brasil, por culpa desses tiriricas, foi ridicularizado mundialmente. E não por conta do Deputado Tiririca, nem sabem que ele existe. A imprensa de vários países preferiu destacar os votos criminosos dos irmãos Bolsonaro fazendo apologia da tortura, daqueles desqualificados da "bancada cristã", invocando um deus tão venal quanto eles (promete o paraíso e a salvação a quem pagar adiantado com sua fé e com seu dízimo), dos hipócritas que votaram "pela família", além de outras bizarrices que foram citadas com cruel ironia. Um vexame de proporções globalizadas. O mundo capitalista reconheceu o triste episódio em que o Brasil, por seus tiriricas, igualou-se a uma republiqueta: a bolsa de valores despencou e o dólar subiu. Os bregas que adoram "maiame" ficaram decepcionados, pois não vai dar para "toda hora comprar ternos", mal cortados, na meca dos medíocres.
As empresas viram despencar seus ganhos depois que o usurpador assumiu o governo temporário. Os barnabés que bateram panelas e desfilaram com a camiseta da CBF, apesar de seus déficits cognitivos decorrentes da ideologia meritocrata, já começam a desconfiar que militaram contra seus próprios mesquinhos interesses. Esses e outros tiriricas que conspiraram para o Golpe que, ao final, só beneficiou o capital financeiro e as grandes indústrias, como Victor Barrio, foram corneados.
Não nos enganemos, todavia, não são todos tiriricas. Entre os golpistas há ainda os traidores mau-caráter (entre os quais os que até ontem detinham cargos no governo à custa de chantagens diversas) e há aqueles, muito piores, ideológicos, que conduziram os tiriricas à efêmera fama no teatro de horrores do dia 17 de abril e que passaram a ser os principais agraciados em um "novo" governo, muito parecido com os que tivemos até 2002. Estes são a minoria que conduz os tiriricas. Com tristeza reconheço que a imensa maioria dos deputados e deputadas que envergonharam o Brasil não é diferente do estrato social a quem eles representam.
Há milhares de tiriricas que, mesmo sabendo que estariam elegendo um mau-caráter traidor que teria por "vice" um escroque, estufaram o peito para gritar "fora PT" com um ódio irracional, digamos, típico do PSTU, mesmo sabendo que o oposto da socialdemocracia (petista) seria o neoliberalismo que reduz gastos públicos, que reduz a massa salarial, a quantidade de dinheiro que circula na economia. Foram centenas de milhares os que desfraldaram as bandeiras que a brisa do Brasil beija e balança, tangidos por uma onda fascista que objetivou acabar com as políticas públicas para pobres, para coletivos vulneráveis de populações campesinas, LGTB, indígenas, negros e deserdados de um modo geral.
Esse ódio é de classe, bem verdade, mas é também transversal: milhares de gays, de negros, de pobres, de funcionários públicos, de bolsistas do PROUNI e do FIES, de marginalizados historicamente pelo capitalismo brasileiro, contaminados pelo ódio difuso, no dia seguinte do afastamento da Presidenta festejaram a "vitória" contra o "governo do PT". Conheço vários que teriam todos os motivos racionais para serem contra o rompimento da ordem institucional e que se aliaram aos golpistas. São todos tiriricas. Nas eleições passadas vários candidatos se apresentaram como "renovação" empunhando causas específicas como a "do povo cristão contra a degradação dos costumes", a do "190 km/h é crime", a dos deficientes, a dos ciclistas, a dos "corretores de seguro", a "do povo assembleísta", entre outras.
Alguns foram eleitos e no espetáculo televisionado prestaram homenagem aos tiriricas que votaram neles. Muita gente inteligente que por motivos diversos havia votado naqueles deputados tiriricas se remoeu de raiva, de remorso. Esses não são tiriricas, só entraram na "moda pós-moderna" dos "reconhecimentos" de identidades quase tribais, sempre parciais e de grupos e estamentos. Doravante, antes de votar para deputado ou para vereador, se perguntarão a que classe social pretende servir o candidato. Aprenderam da maneira mais difícil. O slogan de campanha do Deputado que sintetiza o padrão intelectual e ético da atual composição do parlamento brasileiro era "vote em Tiririca, pior que tá não fica" e com ele teve uma votação assombrosa. Pois é. Ficou. O slogan "não vou pagar o pato" do grande empresariado paulista vingou. Com o Golpe e com a ideologia que o sustenta já aumentou a concentração de renda, o desemprego e a miséria. Para isso deram o Golpe.
Os demais, os pequenos empresários que dependem da renda dos trabalhadores para vender seus serviços ou produtos, os funcionários públicos, os profissionais liberais, todos perderam. Alguns já se deram conta disso. Outros, leitores da Veja, mais lentos, tardarão um pouco mais. Os intelectuais a soldo e os ultravaidosos que imaginavam ficar famosos aderindo aos golpistas, os que rasgaram suas biografias deixando de se contrapor frontalmente ao Golpe, como Victor Barrio, entraram para a história, mas não como pretendiam. Haverá quem festeje quando forem passados por inevitáveis chifres (quem confiaria em trânsfugas?), outros tentarão sem sucesso perdoar-lhes o golpismo, conclamando à temperança e à concórdia.
O Brasil passa uma enorme vergonha internacional por causa dos tiriricas que ainda estão comemorando, avoados, o prenúncio do que - se não houvesse a resistência - poderia ser um desastre para os Direitos Sociais, para as políticas públicas para pobres e para os Direitos dos Trabalhadores. O governo do Usurpador e as cúpulas dos partidos que representam a maioria tiririca dos deputados já descartaram o Tiririca e o escroque que presidiu a abertura do processo de impeachment. O empresariado delinquente que conduziu o Golpe descartará parte dos tiriricas que infestam o Congresso. Como o touro que corneou o medíocre toureiro em Aragon, estes e outros tiriricas, inclusive o camisa preta que por enquanto ainda é incensado, serão oportunamente sacrificados, sem honras. Os golpistas não terão tanta sorte.
Sobreviverão para escutar, pelo resto de suas vidas, que são golpistas e serão responsabilizados pelos retrocessos sociais que não conseguirmos evitar. Entraram para a história como o toureiro de Teruel, da pior maneira possível.
*Wilson Ramos Filho, doutor, professor de Direito do Trabalho na UFPR (Curitiba) e no Doctorado en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo na UPO (Sevilha), advogado de sindicatos e movimentos sociais.
quinta-feira, 14 de julho de 2016
Pivatização boa dá nisso!... quero ver agora!?!...
por Luis Nassif, no seu blog
Compete a um governo interino, vulnerável, suscetível a qualquer forma de pressão, propenso a grandes negócios, o desafio empresarial da década: a intervenção na Oi-Telemar.
E não haverá como afastar de si esse cálice. Cerca de 2.500 municípios dependem da Oi-Telemar não apenas para a telefonia fixa, mas também celular. Seus sistemas de interconexão são fundamentais para o tráfego de celulares. Portanto, torna-se um caso de segurança nacional.
A Lei Geral das Comunicações prevê a intervenção. Mas a Oi-Telemar está nas mãos de fundos abutres e de acionistas especializados em chantagem. São investidores que compram ações de empresas em dificuldades, especialmente aquelas penduradas no sistema bancário, e depois criam dificuldades para qualquer forma de ajuste, visando valorizar sua participação. Acabam lucrando não com a valorização das ações, mas com o poder de chantagem.
Chega ao fim o maior golpe já aplicado contra o serviço público brasileiro, graças a dois governos consecutivos: FHC e Lula.
FHC amparou Daniel Dantas nas jogadas da privatização. Permitiu que parte das Teles fosse leiloada a investidores que não se dispunham nem a aportar capitais nem a correr riscos.
Grupos como o Opportunity, o GP (na era Lehman), Andrade Gutierrez, grupo Jereissatti, Inepar, assumiram o controle de Teles e passaram a resolver seus problemas financeiros exaurindo seu caixa.
No governo FHC, Dantas conseguiu o controle da Brasil Telecom com menos de 1% do capital.
Valendo-se do boom "ponto.com" da Nasdaq, Esses grupos empurraram para a Oi-Telemar por preços exorbitantes empresas de Internet, como o IG e a HpG, datacenters, empresas de fibras óticas, em jogadas escandalosas. Um a um os grupos fizeram fortunas em cima da empresa. No governo Lula, o Opportunity deve ter ganhado R$ 7 bilhões, o mais caro cala-boca da história. Atrás dele, todos os demais grupos procederam à jogadas à custa da empresa.
No governo Dilma, o então Ministro das Comunicações Paulo Bernardo transformou uma multa de cerca de R$ 2,5 bilhões em novos investimentos - que teriam que ser feitos independentemente da multa.
A aventura final foi com o grupo português da Ongoing e da Portugal Telecom. Montou-se uma fusão mal explicada, vendendo a ideia de que nasceria uma supertele para conquistar os mercados da América Latina e África. Foi a última grande tacada em cima da Oi-Telemar, a aquisição de US$ 700 milhões em bônus do Grupo Espírito Santo, português, que já estava quebrado.
Agora se tem essa armadilha, com a empresa refém de fundos abutres e de chantagistas. A operação exigirá competência técnica, isenção, idoneidade e espírito público das pessoas que serão incumbidas da operação.
Não se tenha dúvida que Moreira Franco emprestará sua conhecida idoneidade e competência para resolver o problema. E, ciente da relevância patriótica da operação, outros varões de Plutarco, como Eliseu Padilha e Romero Jucá, não irão perder a oportunidade de ajudar o país.
sexta-feira, 17 de junho de 2016
Agreste Psicodélico - o disco maldito de Lula Côrtes e Zé Ramalho
0:00 Trilha de Sumé/Culto à Terra/Bailado das Muscarias
13:06 Harpa dos Ares
17:01 Não Existe Molhado Igual ao Pranto
24:24 Omm
30:19 Raga dos Raios
32:49 Nas Paredes da Pedra Encantada, Os Segredos Talhados Por Sumé
40:14 Maracás de Fogo
42:40 Louvação à Iemanjá/Regato da montanha
47:52 Beira mar
49:26 Pedra Tempo Animal
53:35 Sumé
A trilha em busca das origens de Paêbirú, o disco maldito de Lula Côrtes e Zé Ramalho, hoje o vinil mais caro do Brasil.
por Cristiano Bastos
No dia 29 de dezembro de 1598, os soldados liderados pelo capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, encalçavam índios potiguares quando, em meio à caatinga, nas fraldas da Serra da Copaoba (Planalto de Borborema), um imponente registro de ancestralidade pré-histórica se impôs à tropa. Às margens do leito seco do rio Araçoajipe, um enorme monólito revelava, aos estupefatos recrutas, estranhos desenhos esculpidos na rocha cristalina. O painel rupestre se encontrava nas paredes internas de uma furna (formada pela sobreposição de três rochas), e exibia, em baixo-relevo, caracteres deixados por uma cultura há muito extinta. Os sinais agrupavam-se às representações de espirais, cruzes e círculos talhados, também, na plataforma inferior do abrigo rochoso.
Inquietado com a descoberta, Feliciano ordenou minuciosa medição, mandando copiar todos os caracteres. A ocorrência está descrita em Diálogos das Grandezas do Brasil, obra editada em 1618. O autor, Ambrósio Fernandes Brandão (para quem Feliciano Coelho confiou seu relato), interpretou os símbolos como "figurativos de coisas vindouras".
Não se enganara. O padre francês Teodoro de Lucé descobriu, em 1678, no território paraibano, um segundo monólito, ao se dirigir em missão jesuítica para o arraial de Carnoió. Seus relatos foram registrados em Relação de uma Missão do rio São Francisco, escrito pelo frei Martinho de Nantes, em 1706.
Em 1974, quase 400 anos depois da descoberta do capitão-mor da Paraíba, os tais "símbolos de coisas vindouras" regressariam. Dessa vez, no formato e silhueta arredondada de um disco de vinil. A mais ambiciosa e fantástica incursão psicodélica da música brasileira - o LP Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol, gravado de outubro a dezembro daquele ano por Lula Côrtes e Zé Ramalho, nos estúdios da gravadora recifense Rozemblit.
Contar a história do álbum, longe da amálgama das pessoas, vertentes sonoras e, especialmente, da chamada Pedra do Ingá que o inspirou, é impossível. Irônico é que o LP original de Paêbirú também tenha se convertido em "achado arqueológico", assim como a pedra, 33 anos depois de seu lançamento. As histórias sobre a produção do disco, como naufragou na enchente que submergiu Recife, em 1975 e, por fim, se salvara, são fascinantes.
A prensagem de Paêbirú foi única: 1.300 cópias. Mil delas, literalmente, foram por água abaixo. A calamidade levou junto a fita master do disco para que a tragédia ficasse quase completa. Milagrosamente a salvos ficaram somente 300 exemplares. Bem conservado, o vinil original de Paêbirú (o selo inglês Mr Bongo o relançou em vinil este ano) está atualmente avaliado em mais de R$ 4 mil. É o álbum mais caro da música brasileira. Desbanca, em parâmetros monetários (e sonoros: é discutível), o "inatingível" Roberto Carlos. O Rei amarga segundo lugar com Louco por Você, primeiro de sua carreira, avaliado na metade do preço do "excêntrico" Paêbirú.
A expedição no rastro dos mistérios e fábulas de Paêbirú se inicia em Olinda (Pernambuco). O artista plástico paraibano Raul Córdula me recebe em seu ateliêr. Na parede do sobrado histórico, uma cobra pictográfica serpenteia no quadro pintado por ele. A insígnia foi decalcada da mesma inscrição que, há milênios, permanece entalhada na Pedra do Ingá. No mesmo ano de Louco por Você, 1961, o professor de geografia Leon Clerot apresentou o monumento a Córdula. O professor fizera o convite: "Me acompanhe, e verás algo que jamais se esquecerá".
Uma década depois, 1972, Raul Córdula se tornou amigo de José Ramalho Neto, o jovem Zé Ramalho da Paraíba. Os conterrâneos se conheceram no bar Asa Branca, que Córdula tinha na capital, João Pessoa: "O único boteco que ficava aberto na Paraíba inteira depois das oito horas da noite, à base de 'mensalão' pago à polícia". O Zé Ramalho compositor, atesta, nascera no Asa Branca. Córdula quis mostrar a Ramalho "algo que conhecera", e organizou uma ida ao município de Ingá do Bacamarte, localidade conhecida antigamente como Vila do Imperador, por causa da passagem de Dom Pedro II por lá.
A localização de Ingá do Bacamarte é a 85 km de João Pessoa, caatinga litorânea, na zona de transição do Agreste para o Sertão. Para "fazer a viagem", Córdula também convidou o artista recifense Lula Côrtes - jovem homem que já vivera muitas aventuras. Mas aquela, proposta por Raul, ainda não. Nenhuma surpresa foi para o guia o fato de Côrtes e Ramalho ficarem tão maravilhados com a rocha lavrada quanto os expedicionários do capitão-mor da Paraíba.
A charada talhada na parede de pedra lançava-lhes o provocante desafio: como decifrariam tais arcanos - nunca compreendidos e tão majestosos - numa música que, se não codificasse, ao menos devesse tributar à remota ancestralidade brasileira? Fora essa a centelha que incendiara as idéias. Acampados na caatinga sertaneja, frente a frente com a Pedra do Ingá, Ramalho e Côrtes se decidiram pela produção de um "álbum conceitual". O único jeito de conhecer lula Côrtes é ir visitá-lo no seu habitat: o ateliêr em Jaboatão dos Guararapes. "A Pátria Nasceu Aqui", divulga a enorme placa na divisa com a capital, Recife. O apartamento onde mora, pinta e compõe com a atual banda, Má Companhia, tem vista frontal para o Oceano Atlântico. É no primeiro apertar de mão que Côrtes deixa patente quem é: "espírito indômito". Solta a frase para se pensar: "O mar e eu somos uma coisa só desde menino".
Aos 60 anos, sua voz é profunda e roufenha. A cabeça alva, um dia revestida de pretos cabelos mouriscos. E a magra, porém resistente, compleição física remete ao obstinado homem de O Velho e o Mar. Lula tem o velho de Ernst Hemingway, entretanto, como "altruísta demais". Mais impressionado ficou com o nietzscheniano capitão Lobo Harsen, de O Lobo do Mar, romance de Jack London. Os arquétipos marítimos de London, de fato, combinam mais com ele: "Nasci à beira do mar. Ele me despertou para o cumprimento das fantasias. Nele, um dia, cacei baleias", conta, jubiloso.
É esse homem que segue narrando a mais homérica jornada de sua vida, até agora: a concepção do álbum Paêbirú. Guiados pelo parceiro mais velho, Raul Córdula, Zé Ramalho e Lula Côrtes, recém-amigos, logo de cara perceberam a fantástica mística que as inscrições da Pedra do Ingá exerciam sobre a população às cercanias do sítio arqueológico. Foi por intermédio da arquiteta, hoje cineasta, Kátia Mesel, sua companheira na época, que Lula Côrtes veio a conhecer Zé Ramalho. Junto, o casal abriu o selo Abrakadabra, pioneiro na produção de música independente no Brasil.
A "sede" do selo ficava nas dependências de um prédio pertencente ao pai de Kátia, que, nos tempos da escravatura, fora uma senzala de escravos. Para se mergulhar na saga de produção que foi Paêbirú, é obrigatório antes se falar da simplicidade do instrumental Satwa - o álbum gerido, um ano antes, por Côrtes e o violonista Lailson de Holanda. É o début do selo Abrakadabra. Lula faz a estréia fonográfica da sua cítara popular marroquina, o tricórdio, instrumento que trouxera da recente viagem ao Marrocos com Kátia.
Em Satwa, o violão nordestino de 12 cordas de Lailson dialoga em perfeita legibilidade com o linguajar oriental do tricórdio de Lula. É, provavelmente, o encontro mais fino entre o folk e a psicodelia do qual se tem registro gravado na música brasileira. Lailson, premiado cartunista, traduz: "Satwa é expressão do sânscrito: quer dizer 'interface e equilíbrio'". Em 2005, a norte-americana gravadora Time-Lag Records reeditou Satwa, a partir da master original. Só o nome, na realidade, foi remodelado: Satwa World Edition.
Como previsto, a edição esgotou como mágica. Após Satwa, Lula tinha aprimorado suas concepções musicais. Achava-se apto para o grande projeto que andara tramando com o parceiro Zé Ramalho desde a visita à "pedra encantada". Não perderam tempo e investiram em sérias pesquisas nas imediações. Eles caçavam a interpretação local, folclórica, mitológica sobre o admirável monólito escrito.
Nas adjacências vivia um grupo de índios cariris. Os músicos foram até eles, atrás da peculiaridade do seu tipo de música. Ouvindo, descobriram que os traços de uma cultura africana tinham se fundido à sonoridade dos indígenas. Se fundamentado em registros arqueológicos, Zé Ramalho e Lula Côrtes concordaram que, a partir daquele ponto, haveria um caminho, que partia de São Tomé das Letras (onde existem registros da mesma escrita rupestre traçada na Pedra do Ingá) e conduzia até Machu Picchu, no Peru. A trilha que os Cariris chamavam de "Peabirú".
Chegar à mística Pedra do Ingá, hoje em dia, é fácil. Seguindo pela BR 101, no trecho Recife - Paraíba, as condições de tráfego são admissíveis, mesmo sem via duplicada. Pela estrada federal, as pequenas localidades vão se cruzando: Abreu e Lima, Goiana, Itambé, Jupiranga, Itabaiana, Mojeiro. Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Pedra do Ingá (Pedra Lavrada, ou Itaticoara) é um dos sítios arqueológicos mais soberbos do mundo. O arqueólogo Vanderley de Britto, da Sociedade Paraibana de Arqueologia, já aguarda, no local, minha chegada. Segundo ele, as inscrições são originárias de sociedades pré-históricas, nativos anteriores aos encontrados no Brasil pelos europeus. "Certamente, essas gravuras" , diz, apontando o imenso painel de rocha, "são obra de sacerdotes ou pajés. Visavam ritos mágico-religiosos que visavam sortilégios para tribo", Brito explica, com sua proficiência.
Próximo à pedra, sem ter de tocá-la, o arqueólogo continua sua explanação: "As representações registram o canto mágico solfejado pelos sacerdotes nas cerimônias", prega. A pedra, na opinião do arqueólogo, seria, para os nativos, um "meio de comunicação" com os deuses (ou deusas) da natureza. A estimativa da ciência é a de que as gravações já estejam ali por volta de três a seis mil anos. "Datação exata não é possível, porque o monólito está em meio ao riacho", esclarece o professor. Vestígios, por ventura, deixados pelos gravadores, ao cinzelar a pedra, foram arrastados no trespassar das águas do ancião Araçoajipe.
Dinossauros, o arqueólogo também confirma, habitaram a região. A probabilidade - nada prosaica - de me banhar no regato que, num dia qualquer da pré-história um tiranossauro rex sorvera metros cúbicos de água, passa agora de jornalismo a uma aventura que, com prazer, obrigo-me pôr em prática. A água é morna. A sensação, arrepiante. "Animais de grande porte, como a preguiça e o tatu-gigante, no período mezosóico, habitaram a região: mastodontes, cavalos nativos e outros mega-animais também circulavam por aqui", ele lembra. Submerso na tepidez do plácido regato pré-histórico, um túnel do tempo dentro de minha cabeça fazia a imaginação vagar por mundos arcaicos desaparecidos na vastidão temporal.
De frente para o mar, lula Côrtes gosta de acreditar na epopéia interplanetária narrada em "Trilha de Sumé", a abertura de Paêbirú. "As gravações na Pedra do Ingá foram feitas com raio laser mesmo", afiança o artista, que cantarola a introdução da música, o alinhamento dos planetas: "Mercúrio/Vênus/Terra/Marte/Júpiter/Saturno/Urano/Netuno e Plutão".
Os versos seguintes cantam a saga de Sumé, "viajante lunar que desceu num raio laser e, com a barba vermelha, desenhou no peito a Pedra do Ingá". A cada descoberta que faziam com suas explorações, Côrtes e Ramalho notavam, na variedade de lendas, que todas eram sobre Sumé - entidade mitológica que teria transmitido conhecimentos aos índios antes da chegada dos colonizadores. "Todos os indícios levavam a Sumé. Até as palmeiras da região, por lá, são chamadas de 'sumalenses'", observa Lula. Para "libertar" os indígenas da crença pagã, os jesuítas pontificaram Sumé como "santidade": virou São Tomé. O que explica, no Nordeste, o fato de muitos lugarejos terem sido batizados de São Tomé. "Aqui é o lugar de São Tomé!", os padres costumavam anunciar, ao chegar numa região nova.
Na Paraíba, resta uma cidade chamada Sumé. "Seja lá quem tenha sido Sumé, o que mais se sabe, no entanto, é que muito andou por essas bandas", brinca Raul Córdula. A despeito da evangelização católica, a memória do Sumé indígena segue viva em todo o Nordeste. A crença indígena diz que, quando o pacifista Sumé se foi embora, expulso pelos guerreiros tupinambás daquelas terras, deixou uma série de rastros talhados em pedras no meio do caminho. Os índios acreditam que Sumé teria ido de norte a sul, mata adentro, descerrando a milenar trilha "Peabirú" - em tupi-guarani, "O Caminho da Montanha do Sol".
O historiador Eduardo Bueno, que passou anos de sua vida "veraneando" na praia de Naufragados, no sul da ilha de Santa Catarina, conta que tomou conhecimento da trilha lendo a aventura de Aleixo Garcia, o qual, após um tempo vivendo naquela praia, fora informado da existência de uma "estrada indígena" que conduzia até o Peru. Após muitos verões chuvosos contemplando o lugar de onde o bravo Garcia havia partido em sua jornada épica, Bueno decidiu acompanhá-lo - mas na mente: "Mergulhei em todas as fontes que traziam relatos de sua viagem. Ficção não era. Tais fontes, embora, eventualmente, contraditórias entre si, eram da melhor qualidade". O resumo mais interessante da história, diz, é o que define Peabirú como "um ramal da majestosa Trilha Inca, que ligava Cuzco a Quito e, por sua vez, outra corruptela - de 'Apé Biru'".
Em tupi-guarani, Apé significa "caminho", ou "trilha", e Biru é o nome original do Peru. Portanto, Peabirú significaria "Caminho para o Peru". Havia três inícios principais desse caminho: um, partindo de Cananéia (litoral sul de São Paulo) e, outro, da foz do rio Itapucu, nas proximidades da ilha de São Francisco do Sul (litoral norte de Santa Catarina). Um terceiro saia da Praça da Sé, em São Paulo, seguia pela rua Direita, dava na Praça da República, subia a Consolação, descia a Rebouças, cruzava o Rio Pinheiros e... chegava no Peru. "Fico pensando porque nos roubaram o prazer de desfrutar essa história no colégio", brinca Bueno. "Pensando bem, não foi esse o único prazer que nos roubaram, foi?" Muitas vezes procurado, Zé Ramalho declarou que "não quer mais falar sobre o assunto Paêbirú" - para ele, encerrado. Em algumas entrevistas, no entanto, coteja Paêbirú à Tropicália.
Um dos comentários é sobre o jeito artesanal, "como se costurado à mão", que o álbum foi feito. Agendo uma "audição comentada" de Paêbirú no ateliêr de Lula Côrtes. Enquanto, pacientemente, pinta o quadro de um farol, vai me explicando como tornaram possível (e viável) a engenhosa gravação do disco.
O álbum - duplo - é dividido em quatro lados, de acordo com os elementos Terra, Ar, Fogo e Água. Em "Terra", o resultado "telúrico" foi conseguido com tambores, flautas em sol e dó, congas e sax alto. "Simulamos, com onomatopéias, 'aves do céu', 'pássaros em vôo' e adicionamos o berimbau, além do tricórdio", ele conta.
Contrariando a prática dos "encartes vazios", a gama de instrumentos utilizados está descrita na ficha técnica de Paêbirú. Efeitos de estúdio, nem pensar: "Só havia as pessoas, vozes e instrumentos", comenta o artista. Certos efeitos, como o rasgar da folha de um coqueiro, por exemplo, muitos pensaram serem eletrônicos. No lado "Ar", além de "conversas", "risadas" e "suspiros", selecionaram-se harpas e violas sopros para músicas como "Harpa dos Hares", "Não Existe Molhado Igual ao Pranto" e "Omm".
Em "Água", as músicas têm fundo sonoro de água corrente. No mesmo lado, cantos africanos, louvações à Iemanjá e a outras entidades representativas do elemento. Na mais dançante, o baião lisérgico "Pedra Templo Animal", Lula Côrtes toca "trompas marinhas". Zé Ramalho pilota o okulelê. "Fogo", como adverte o nome, é a faceta incendiária de Paêbirú. A mais roqueira também. Entram sons trovejantes: o wha-wha distorcido do tricórdio e a psicopatia do órgão Farfisa em "Nas Paredes da Pedra Encantada". "Raga dos Raios" conserva-se, mais de 30 anos depois, como a melhor peça de guitarra fuzz gravada no rock nacional: "Guitarreira elétrica & nervosa de Dom Tronxo", diz a ficha técnica. Onde andará Dom Tronxo?
O encarte sofisticado de Paêbirú é obra de Kátia Mesel. Além de designer, ela fez a produção executiva do álbum. "São mais de 20 pessoas tocando no disco - basicamente, toda a cena pernambucana e boa parte da paraibana", a cineasta enumera. O disco só deu certo, na opinião de Kátia, porque foi feito com a alma e a criatividade soltas. "Num estúdio de dois canais, baby? Era o playback do playback do playback! A gente se consolava: 'Se os Stones gravaram na Jamaica em dois canais, por que a gente não?'
Em 'Trilha de Sumé', Alceu Valença toca pente com papel celofane. [O disco] tem desses requintes", graceja. Foi o zelo de Kátia, na realidade, que garantiu o salvamento de 300 cópias de Paêbirú da enchente de 1975. Ela guardara parte da tiragem na Casa de Beberibe, onde o casal morava - o ambiente em que muitas canções foram, gradualmente, tomando forma. "A sorte é que eu tinha deixado os discos no andar de cima. São esses que, atualmente, valem uma fortuna mundo afora", pontua Kátia. Naquele tempo, Ramalho praticamente morava com o casal na Casa de Beberibe.
A concepção gráfica do álbum foi obtida após muitas idas do trio à Pedra do Ingá. Na verdade, um quarteto, já que o irmão de Kátia, o fotógrafo Fred Mesel, seguia junto em algumas viagens. "Eu filmava em Super 8 e Fred tirava fotos da pedra com filme infravermelho", ela conta. A técnica fotográfica explica a tonalidade azul-cítrica da capa e da parte interior de Paêbirú. Especial atenção foi dada à ficha técnica.
No encarte central, fotos de todas as pessoas que participaram das gravações. Um detalhe é que todos os títulos foram montados à mão, um a um, em letra set. A diferença é que, a essa altura, Kátia era mais experiente: além de Satwa, também produzira a arte do único álbum de Marconi Notaro, No Sub Reino dos Metazoá-rios (1973). "Para lançar Paêbirú, criamos o selo Solar", acrescenta. As substâncias psicodélicas, obviamente, foram muito importantes durante o processo de composição. Para Lula Côrtes, no entanto, só de estar perto da Pedra do Ingá, é possível sentir o xamanismo emanando do monumento rochoso: "Comíamos cogumelos mais como 'licença poé-tica mental'", justifica o artista.
Crosby, Stills and Nash, T-Rex, Captain Beefheart, Grand Funk Railroad e The Byrds eram as bandas mais ouvidas pelo grupo na época. Em meados da década de 1970, a maquiagem do glitter rock já estava borrada e, nos Estados Unidos, a semente punk aflorava nos buracos sujos de Nova York. A disco music ensaiava os primeiros passos de dança. Psicodelia, no mundo, era coisa ultrapassada: encapsulara-se nos remotos anos 60. Zé da Flauta tinha 18 anos quando conheceu Lula e Kátia. No auge da repressão, a Casa de Beberibe era o templo da liberdade e da contracultura. "Aprendi muito sobre arte. Lá se conversava sobre tudo, inclusive se fumava muita maconha", confirma Zé. Ele tocou sax na vigorosa "Nas Paredes da Pedra Encantada". "Jamais me esquecerei, aliás: foi a primeira vez que entrei num estúdio e gravei profissionalmente como músico."
Outro que teve "participação relâmpago" foi o paraibano Hugo Leão, o Huguinho. Ele vinha das bandas The Gentlemen e os Quatro Loucos, nas quais Zé Ramalho tocava guitarra. Ramalho o chamou para participar como tecladista do "ousado projeto". Sua atuação ficou imortalizada no disco. São dele os riffs de órgão Farfisa em "Nas Paredes..." Para assumir a bateria, Ramalho recrutou Carmelo Guedes, outro parceiro seu nos Gentlemen. A mágica, lembra Huguinho, começou logo que entraram no estúdio.
As bases foram criadas na hora, como num susto: "Cravei um tom maior: Mi! O sonho começara. Os segredos da Pedra do Ingá, finalmente, pareciam que seriam desvendados. A guinada sonora ainda ecoa pelo espaço", acredita. Em minha jornada, sigo para a capital paraibana. Em João Pessoa, Telma Ramalho, a prima mais jovem de Zé Ramalho, diz não esquecer uma passagem da pré-adolescência: a mãe, Teresinha de Jesus Ramalho Pordeus, professora de História, conversava com o sobrinho em seu escritório: "Zé contava a ela como se desenrolavam as gravações de Paêbirú".Uma lembrança viva é ter ouvido o disco aos 12 anos: "Não entendi nada. Só lembro de 'Pedra Templo Animal' e 'Trilha de Sumé', as mais pop", diverte-se.
Outra memória é ter apresentado uma réplica da Pedra do Ingá na feira de ciências do colégio. A trilha sonora foi Paêbirú. "Levei a vitrolinha e botei para rodar." Telma faz a contundente revelação: "Tive caixas de Paêbirú em casa. Uma verdadeira fortuna cultural e financeira". Para Cristhian Ramalho, filho de Zé Ramalho e afilhado de Lula Côrtes, Paêbirú também tem significação especial: "Meu pai me levava à Pedra do Ingá quando criança. Ele ia para achar inspiração". Sem dúvida, diz Cristhian, Paêbirú e a Pedra ainda exercem influência sobre a sua obra. "Em 1975, ele escreveu uma poesia muito bonita, que diz: 'Venho de uma dessas pedras rolantes'. Houve, por parte dele, grande misticismo envolvido na minha chegada", conta, orgulhoso, o filho.
Uma das pessoas que, na época do lançamento, compraram o álbum foi a arquiteta Terêsa Pimentel. Aos 14 anos, em 1974, ela não sabia ao certo o que procurava na sua vida. Apesar disso, sabia "o que não queria". "Ouvíamos os locais: Ave Sangria, Marconi Notaro, Flaviola & O Bando do Sol, Aristides Guimarães, o 'udigrudi' nordestino. Vendi minha bicicleta Caloi verde-água para comprar Paêbirú. Hoje, sou feliz por ter vendido a bicicleta e ter adolescido naquela atmosfera", conta. Terêsa é irmã do músico Lenine, ao qual Lula Côrtes presenteou com sua última cópia de Paêbirú, há alguns anos. "Para tirar uns samplers", diz Lula.
De Jaboatão dos Guararapes, eu e Lula seguimos para a casa de Alceu Valença, no centro histórico de Olinda. Lula bate à porta do casarão. Festa quando Valença cruza o amplo saguão para saudar Lula, velho parceiro em Molhado de Suor, um dos seus primeiros discos. "A gente tocou em 'Danado para Catende', que depois virou 'Trem de Catende'", Alceu conta. "Até então Lula só compunha, mas não cantava. Fiz a cabeça do pessoal da Ariola: 'O cara é o máximo!' Na gravadora, ninguém tinha a menor idéia de quem era o cara, muito menos que fizera algo como Paêbirú." Souberam, no entanto, quando o álbum Gosto Novo da Vida, de Lula Côrtes, foi premiado como "a melhor venda do ano da gravadora Ariola", em 1981. Em três meses, vendeu 32 mil cópias. Depois, teve sua reedição emperrada por causa de um processo movido pela Rozemblit, que alegava plágio em uma música. "Foi o primeiro artista que vi fumar no palco, no Teatro João Alcântara", diz Alceu. Ambos riem. Lula acende um cigarro. "Participei de Paêbirú. Dei uns gritos lá", resume Alceu. "Foi na reza de 'Não Existe Molhado Igual ao Pranto'", Lula emenda. "O estúdio da Rozemblit tinha acústica maravilhosa. Era o ambiente mais natural possível: cheguei e fui me deitando num canto. A banda tocava. Sonolento, me espreguicei: 'Ommmmmmmm...'." "Foi como num mantra. Quando Alceu começou, todo mundo veio atrás e não parou mais", conclui Lula. É nessa tradição do "livre espírito" que Paêbirú foi realizado.
No texto homônimo - uma raridade datilografada só encontrada no interior dos LPs sobreviventes da cheia e escrito depois da ingestão de cogumelos colhidos no meio do caminho -, Lula Côrtes nos dá uma última idéia da grande aventura que foi Paêbirú: "Nós caçávamos o passado, e os corações se encheram de esperança com aquela visão. O caminho que havíamos abandonado mais atrás era o das Pedra de Fogo, outro pequeno aglomerado quase sem nenhuma chance de vida. A água é muito escassa. Conversávamos sobre as pedras. E ao longo, no horizonte, o lombo prateado da Borborema desenha curvas leves, demonstrativas de sua imensa idade. Os nativos tinham mapas nos rostos, o sol lhes rachou os lábios como racha a terra, as pedras duras e afiadas que dificultavam a caminhada lhes endureceu o riso. A informação parecia estar correta. Achamos o regato e acompanhamos o sentido. A água era clara e bastante salgada. A irrealidade se apossava cada vez mais dos nossos corpos e mentes, e toda a lenda que nos havia enchido os ouvidos, até aquele dia, parecia florar de tudo."
O desmonte da legislação de agrotóxicos e as ameaças para o povo brasileiro
por Cleber A. R. Folgado*, no EcoDebate
Na atual conjuntura temos visto a afirmação – da qual concordo – de que impeachment sem crime é golpe. Os áudios divulgados recentemente apontam para a existência de uma complexa trama, com intencionalidade clara, em torno da construção deste golpe. Há que se atentar, porém, para o fato de que existem outras tramas curso. Portanto não é apenas a democracia que se encontra ameaçada, mas um conjunto de outros direitos historicamente conquistados pelo povo brasileiro. O Projeto de Lei 3200/15 e o Projeto de Lei 1687/15 são alguns dos instrumentos da trama em curso que aponta para o desmonte da legislação de agrotóxicos, o que em outras palavras significa a ameaça de direitos sociais.
Antes de adentrar nos retrocessos que propõem o PL 3200/15 e o PL 1687/15, façamos um breve resgate histórico sobre como se formou a atual legislação de agrotóxicos.
Histórico de construção da lei de agrotóxicos
O sistema normativo de agrotóxicos brasileiro tem como pedra angular a Lei 7.802 de 11 de julho de 1989. Antes dessa lei, os agrotóxicos eram regulados por um conjunto disperso de normas que tinham como base principal o Decreto 24.114 de, 12 de abril de 1934, que tratava da defesa sanitária vegetal. Em virtude dessa dispersão de normas e da limitação das próprias normas em si, o sistema normativo de agrotóxicos da época era extremamente frágil. Essa fragilidade normativa somada aos programas de incentivo governamental para adoção do pacote tecnológico químico-dependente da revolução verde foram elementos fundamentais para que se consolidasse o uso de agrotóxicos como prática hegemônica nos processos produtivos no Brasil.
Na medida em que o ciclo vicioso de uso de agrotóxicos se consolidava no campo brasileiro, as contradições do modelo também iam aparecendo, de modo passa-se a identificar contaminações de mananciais de água, animais, pessoas, etc. Infelizmente a capacidade legislativa de criar normas de proteção a saúde e ao meio ambiente não acompanhava a velocidade com que os venenos se proliferavam na prática produtiva agrícola.
Fruto dessas contradições, no ano de 1982, descobre-se que as águas do Rio Guaíba, principal fonte de abastecimento de água potável da capital gaúcha – Porto Alegre – estavam contaminadas por resíduos de agrotóxicos, tais como heptacloro, endosulfan e outros produtos da família dos organoclorados, amplamente utilizados na produção agrícola da região. Este fato possibilitou que um conjunto de organizações, liderados pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) se mobilizassem e a partir de um longo processo de luta e pressão social aos parlamentares, fosse aprovada no dia 02 de dezembro de 1982 a lei estadual de agrotóxicos, que só viria a ser publicada no Diário Oficial do estado em 22 de dezembro de 1082 com a descrição de Lei nº 7.747. O texto sancionado pelo governador Amaral de Souza apresentava cinco vetos, que foram derrubados em votação no dia 14 de abril de 1983, mantendo-se na íntegra o texto aprovado.
Após a aprovação da Lei Estadual de Agrotóxicos do Rio Grande do Sul, vários outros estados da federação seguiram o exemplo e construíram suas legislações estaduais, tendo por base a Lei gaúcha. Dentre elas podemos citar: a Lei Paranaense nº 7.827, de 29 de dezembro de 1983; a Lei Paulista nº 4.002, de 05 de janeiro de 1984 (2); a Lei nº 6.452, de 19 de novembro de 1984, do Estado de Santa Catarina (3); as Leis Estaduais do Rio de Janeiro nº 801, de 20 de novembro de 1984, e nº 1.027, de 06 de agosto de 1986 (4); a Lei Estadual do Mato Grosso nº 4.638, de 10 de janeiro de 1984 (5); a Lei Estadual de Minas Gerais nº 9.121, de 30 de dezembro de 1985; dentre outras.
Diante da pressão social através da construção de leis estaduais para legislar especificamente os agrotóxicos, o governo federal se vê acuado e realiza a primeira tentativa de criar uma lei federal em 1986, quando o então Presidente José Sarney nomeou Pedro Simon como Ministro da Agricultura. O novo ministro tratou de reunir uma comissão especial afim de construir um anteprojeto que pudesse substituir o Decreto 24.114/1934. O Decreto nº 91.633, de 09 de setembro de 1985, criou a Comissão Especial composta por 27 membros, que tinham a tarefa de em 60 dias construir o anteprojeto de lei para os agrotóxicos. A comissão cumpriu o prazo e em ato solene, no dia 9 de janeiro de 1986, pelas mãos professor Flavio Lewgoy, decano representante da AGAPAN, entregou o anteprojeto ao Ministro Pedro Simon que o encaminhou a Casa Civil. Alegando vícios de constitucionalidade, a Casa Civil tentou devolver o anteprojeto à comissão que já havia se extinguido.
Logo em seguida Pedro Simon foi substituído no Ministério da Agricultura por Íris Resende, que aceitou a volta do anteprojeto para o Ministério da Agricultura, e autorizou, mesmo sob forte manifestação contrária de ex-integrantes da comissão especial, que alterações fossem feitas no anteprojeto. As alterações no anteprojeto atendiam com as pressões exercidas pelos representantes da indústria de agrotóxicos, no entanto, o anteprojeto ficaria parado no palácio por quatro anos, sem nenhuma movimentação para sua aprovação.
Apenas em 1989, devido a pressões sociais em torno da questão ambiental, incluindo o ainda recente assassinato de Chico Mendes em 1988, é que o anteprojeto da lei de agrotóxicos é retomado no âmbito do Programa Nossa Natureza. Em 24 de abril de 1989 ele é submetido pelo Poder Executivo ao reexame do Congresso Nacional, onde recebeu a caracterização de PL nº 1.924. Como o projeto foi enviado em regime de emergência, este teria então apenas 45 dias para sua apreciação, e caso não fosse apreciado, seria aprovado automaticamente por decurso de prazo e sancionado.
Durante o processo de tramitação o PL 1.924 recebeu 28 emendas parlamentares que em geral buscavam contribuir com a redação do texto, sem alterações de conteúdo, com exceção apenas do substitutivo proposto pelo Deputado Federal Jonas Pinheiro, que propôs um novo PL que ao tramitar foi recusado por todas as comissões que o apreciou.
Nas comissões em que tramitou o PL 1924, foram propostos três substitutivos. Frente as três propostas de substitutivo, acordou-se pela construção de uma única redação, afinal havia a necessidade de se chegar a um texto comum, haja visto que o prazo para apreciação parlamentar estava por exaurir-se, o que se ocorresse sem que os parlamentares tivessem aprovado teor consensual, o projeto inicial enviado pelo Poder Executivo é que terminaria por ser sancionado.
Assim, considerando as apreciações feitas durante o processo de tramitação, tais como as propostas de emendas e substitutivos, chegou-se a um texto comum para o Projeto de Lei 1.924, que por sua vez foi aprovado no dia 15 de junho de 1989 pela Câmara dos Deputados e enviado ao Senado, que o apreciou em caráter revisório e o aprovou no dia 06 de julho de 1989 sem nenhuma alteração. Assim, apenas cinco dias depois, o PL 1.924, já devidamente aprovado, foi sancionado pelo Presidente José Sarney como Lei Federal nº 7.802, de 11 de julho de 1989, tornando-se assim, a primeira Lei de caráter amplo e específica sobre os agrotóxicos, inaugurando uma nova concepção regulamentar sobre o tema e orientando a formação de um novo sistema normativo para agrotóxicos no Brasil.
Feito esse resgate, que aqui tem como objetivo demonstrar que a Lei 7.802/89 é fruto de um longo processo de luta social, das quais várias demandas estão incorporadas no texto de tal lei, vejamos do que se trata o PL 3200/15 e o PL 1687/15.
O desmonte da lei de agrotóxicos e o golpe dentro do golpe
Projeto de Lei 1687/15, é a numeração que recebeu na Câmara Federal o Projeto de Lei 679, protocolado no Senado Federal pela então Senadora Ana Rita, no dia 10 de novembro de 2011. O PLS 679/11 tinha como proposta alterar a Lei 7.802/89, para incorporar Art. 21-A na lei de agrotóxicos, criando a Política Nacional de Apoio ao Agrotóxico Natural, com o objetivo de estimular as pesquisas, a produção e o uso de agrotóxicos não sintéticos de origem natural.
No processo de tramitação do PLS 679, foram feitas três propostas de textos substitutivos que por sua vez alteram completamente o horizonte da proposta apresentada, de modo que ao invés de se construir uma política para incentivar a produção de verdadeiros defensivos naturais, o texto final garante mais investimentos para a produção de agrotóxicos e a destinação de recursos públicos para as empresas, repetindo assim, o que já foi feito no passado com a criação do Programa Nacional de Defensivos Agrícolas, em 1975, no âmbito do II Plano Nacional de Desenvolvimento.
Após os substitutivos, o texto final aprovado no Senado e encaminhado à Câmara, recebendo o número de PL 1687/15, dentre outras coisas, cria o art. 12-B para instituir a instituir a Política Nacional de Apoio aos Agrotóxicos e Afins de Baixa Periculosidade. Desse modo, é possível perceber que o processo legislativo no Senado alterou de forma drástica a proposta inicial do PLS 679, transformando-o num instrumento de incentivo para as empresas de produção de agrotóxicos, que já gozam de várias benefícios, tais como as isenções de impostos.
Tramitam no Congresso Nacional mais de 50 Projetos de Lei que apontam para algum tipo de alteração na Lei 7.802/89 (lei de agrotóxicos), em sua grande maioria tais PLs buscam desmontar o sistema normativo de agrotóxicos, flexibilizando a legislação existente e garantindo benefícios aos setores que defendem os venenos.
O famigerado PL3200
No dia 06 de outubro de 2015 foi protocolado pelo Deputado Federal Covatti Filho (PP/RS) o PL3200/15 que dispõe sobre a Política Nacional de Defensivos Fitossanitários e de Produtos de Controle Ambiental, seus Componentes e Afins, bem como sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de defensivos fitossanitários e de produtos de controle ambiental, seus componentes e afins, e dá outras providências.
O PL 3200 desmonta por completo a legislação atual de agrotóxicos, tornando-a frágil e permissiva, de modo que vários direitos sociais são atropelados pelo texto proposto. Em ato da presidência da Câmara dos Deputados, no dia 24 de fevereiro foi criada uma Comissão Especial para analisar o PL3200. Esta comissão aprovou vários requerimentos para a realização de audiências públicas acerca do tema. Todavia, no último dia 23 de maio, foi deferido requerimento determinando a apensação do PL 3200 ao PL 1687/15, que por sua vez encabeçará o bloco dos PLs em apreciação. Isso além de alterar o nome da comissão, que passa a constar como “Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei nº 1687, de 2015, do Senado Federal, que “altera a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, para instituir a Política Nacional de Apoio aos Agrotóxicos e Afins de Baixa Periculosidade”, e apensado (PL 3200/15)”, também determinou que o projeto de lei tramite em regime de prioridade, ou seja, os prazos até então vislumbrados serão reduzidos.
Trata-se de uma manobra legislativa que acelera a tramitação de ambos os PLs, inviabilizando ainda mais a participação da sociedade no processo de discussão. Além disso, invisibilizam o PL3200, visto que ele é o pior, pois propõe a revogação da Lei 7.802/89. Dentre as propostas deste Projeto de Lei, destacamos algumas:
a) Os agrotóxicos passam a ser chamados de “produtos defensivos fitossanitários e de controle ambiental”. Essa é uma manobra que tem como objetivo esconder o perigo dessas substâncias tóxicas. Agrotóxicos são biocidas, ou seja, são feitos para matar a vida. É inadmissível que voltemos a utilizar uma nomenclatura da década de 1930, quando muitos dos efeitos dessas substâncias não eram conhecidos como hoje. Agrotóxicos não são defensivos, são venenos que ameaçam a vida das pessoas e contaminam o meio ambiente.
b) Cria a Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito), que funcionará nos moldes da CTNBio. Será competência desta Comissão a edição e alteração de atos normativos referentes aos agrotóxicos; avaliação e homologação de relatórios de avaliação de risco de novo produto ou de novos usos em ingrediente ativo; avaliar os pleitos de registro de novos produtos técnicos, dos respectivos produtos formulados, pré-misturas e afins; emitir pareceres técnicos conclusivos nos campos da agronomia, toxicologia e ecotoxicologia sobre os pedidos de aprovação de registros de produtos, bem como as medidas de segurança que deverão ser adotadas;estabelecer as diretrizes para a avaliação agronômica, avaliação e classificação toxicológica e ambiental de produtos;promover, mediante pedido ou de ofício, a reavaliação de produtos, e de propor a sistemática de incorporação de tecnologia de ponta nos processos de análise, controle e fiscalização e em outras atividades cometidas aos órgãos registrante; etc.
A CTNFito ficaria alocada no MAPA e passaria a ser um super-órgão a quem compete quase tudo que diz respeito aos agrotóxicos, assumindo para si o que hoje é competência tripartite da ANVISA, IBAMA e MAPA. A composição proposta para a CTNFito é de 23 membros efetivos e respectivos suplentes, designados pelo MAPA. A divisão da composição é de 15 especialistas de notório saber científico e técnico, das áreas de química, biologia, produção agrícola, fitossanidade, controle ambiental, saúde humana e toxicologia. Além desses, completa a equipe representantes de cinco ministérios (Agricultura; Desenvolvimento, Indústria e Comércio; Meio Ambiente; Saúde e; Ciência, Tecnologia e Inovação) e representantes de órgão legalmente constituído de proteção à saúde do trabalhador; de órgão legalmente constituído representativo do produtor rural (muito provavelmente este representante será da CNA) e ainda um representante de associações legalmente constituídas de produtores de defensivos fitossanitários (diga-se representante das empresas).
c) Cria-se a possibilidade de prescrição de receita agronômica para aplicação de agrotóxicos antes da ocorrência da praga, ou seja, de forma preventiva, supostamente visando o controle de alvos biológicos que necessitam de aplicação de produto. Sem dúvidas este mecanismo vem para resolver a recorrência de emissão do que se conhece popularmente por “receituário de gaveta”, ou seja, quando o profissional emite a receita agronômica sem sequer ter pisado na lavoura para diagnosticar o problema. Essa é uma prática muito comum e extremamente perigosa, atualmente proibida por lei.
d) Para efeito de registro, passa-se a admitir um grau de risco aceitável em relação às características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas dos agrotóxicos. Atualmente isso é expressamente proibido pela art. 3º, parágrafo 6º, da Lei 7.802/89. Trata-se de uma ameaça ao direito à saúde, que coloca em risco a vida das pessoas, em especial das populações camponesas.
e) Será permitido também que o registro de um produto técnico possa ser feito por equivalência, com base nas diretrizes definidas pela CTNFito.
f) Passa-se a permitir o uso de agrotóxicos já registrados para uma determinada cultura, numa outra cultura para o qual ele não foi registrado. Trata-se do que estão chamando de “culturas com suporte fitossanitário insuficiente – CSFI”, em outras palavras, são os minorcrops.
g) Limita-se a competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios no que diz respeito a legislar sobre os agrotóxicos. A competência para controlar e fiscalizar o transporte interestadual torna-se exclusividade da União, e aos Estados, DF e Municípios compete legislar supletivamente sobre o uso, o comércio e o armazenamento, bem como fiscalizar o uso, o armazenamento e o transporte interno.Em relação ao texto da lei atual, é suprimido o mecanismo normativo que permitia os Estados e o DF legislar sobre a produção, bem como fiscalizar o consumo e o comércio de tais produtos. Aos Estados, o DF e os Municípios é vedado explicitamente a possibilidade de restringir o alcance do registro federal. Trata-se, portanto, de uma centralização das competências em nível federal, diminuindo o alcance das pressões sociais que com muita luta conseguiram aprovar leis estaduais e municipais, em alguns aspectos mais avançadas que a legislação federal.
h) As decisões dos órgãos registrantes de agrotóxicos (ANVISA, IBAMA e MAPA) passam a ser vinculadas aos pareceres da CTNFito, ou seja, os pareceres da comissão serão de cumprimento obrigatório por tais órgãos.
i) Passa a ser facultativa ao usuário a devolução das embalagens vazias de agrotóxicos, ou seja, ele devolve se quiser. Isso configura um enorme retrocesso no que se refere a proteção ambiental, visto que a devolução dessas embalagens para a reciclagem é um importante avanço, ainda obviamente, que acreditamos que devemos nos preocupar mais com o produto venenoso que havia dentro daquela embalagem, do que necessariamente com a embalagem em si.
Estes são alguns dos retrocessos que estão previstos no PL3200/15, que quando vinculado ao PL1687/15, representam enormes riscos e perigos para o campo brasileiro. Dentre os diversos problemas possíveis, caso estes PLs sejam aprovados, destacamos as seguintes ameaças ao campo brasileiro:
1- Haverá um aumento de circulação de agrotóxicos com maior teor toxicológico, ou seja, produtos cada vez mais perigosos estarão sendo usados no campo. Isso além de contaminar os alimentos, trará como consequência uma maior contaminação do ambiente, dos animais e das pessoas que trabalham no campo. Os assalariados rurais dos grandes empreendimentos do agronegócio, provavelmente serão as principais vítimas;
2- Como boa parte dos agrotóxicos são pulverizados por avião, e visto que 70% daquilo que se joga de avião nas lavouras torna-se deriva técnica, ou seja, é levado pelo vento e não atinge o alvo desejado, as populações que vivem próximas de áreas que usam pulverização aérea de agrotóxicos, serão extremamente afetadas com contaminação desses agrotóxicos cada vez mais perigosos;
3- O meio ambiente que atualmente já sofre as consequências do uso de venenos na agricultura, também ficará ainda mais vulnerável, de modo que problemas tais como o extermínio das populações de abelhas, mutações em peixes, contaminação dos lençóis freáticos, e até das águas das chuvas, dentre outras – situações estas que já são recorrentes – irão se tornar ainda mais frequentes e com níveis de contaminação ainda maior;
Em síntese, os dois PLs em questão além de desmontar o atual sistema normativo de agrotóxicos, irão consolidar uma legislação extremamente permissiva que representa apenas os interesses das grandes corporações do ramo dos agrotóxicos e aos grandes latifundiários do agronegócio. A população brasileira em seu conjunto será afetada, seja diretamente ou indiretamente. No campo brasileiro irá se concentrar os principais problemas, tais como a contaminação das pessoas e do ambiente, porém, o meio urbano também será vítima desse processo, visto que os alimentos que chegam aos centros urbanos estarão contaminados com venenos cada vez mais tóxicos.
Mobilizar-se contra esta trama em curso é uma tarefa histórica que cabe a toda a sociedade. Não podemos deixar com que golpes e retrocessos extingam direitos historicamente conquistados com muita luta pelo povo brasileiro.
*Cleber Folgado é integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS.
(2) A Lei Estadual de São Paulo sofreu algumas alterações através da Lei nº 5.032 de 15/04/86.
(3 ) Revogada pela Lei nº 11.069, de 29 de dezembro de 1998, atualmente em vigor.
(4) Ambas revogadas pela Lei nº 3.972, de 24 de setembro de 2002.
(5) Revogada pela Lei nº 5.850, de 22 de outubro de 1991.
sábado, 28 de maio de 2016
Bioeconomia: perspectivas e desafios numa economia baseada em biomassa
adaptado do portal do Clube de Engenharia - resenha de uma palestra proferida em 19 de maio de 2016 por José Vitor Bomtempo Martins, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Embora o tema pareça novo, a bioindústria tem sido testada em todo o mundo. Atualmente, vêm trabalhando com biomassa e bioeconomia start-ups de base tecnológica, investidores de risco e empresas estabelecidas de diferentes indústrias, como energia, petróleo e gás, química, biotecnologia, agroindústria, alimentos, papel e celulose... inúmeras empresas já utilizam materiais como resíduos urbanos, bio-óleo, gases de exaustão fermentados e algas em sua produção. Este modelo de indústria, embora ainda não definido, representa, sem dúvida, uma oportunidade para novos competidores, empresas e países: cada iniciativa é inovadora.
Para além dos biocombustíveis
A porta de entrada do tema da biomassa foram os biocombustíveis, como o etanol. A possível estruturação de uma indústria derivada da biomassa é um assunto que inclui os biocombustíveis, mas vai além. Por ser incipiente, existem diversas definições de bioeconomia. Uma definição canadense, por exemplo, inclui um compromisso de sustentabilidade. Outra, americana, sugere uma transição industrial. Na definição da Confederação Nacional da Indústria (CNI), de 2014, a bioeconomia “está relacionada à invenção, desenvolvimento e uso de produtos e processos biológicos nas áreas da biotecnologia industrial, da saúde humana e da produtividade agrícola e pecuária”. A CNI propõe ainda diminuir a dependência do petróleo, dispor de opções tecnológicas com menor impacto ambiental, transformar processos industriais e aumentar a produtividade agrícola.
A premissa é usar a biomassa vegetal ou animal para produtos químicos e industriais, que sejam sustentáveis, na transição industrial para o uso de biomassa. No caso do Brasil, o país carrega o histórico com os biocombustíveis, um conhecimento que agora vai se estruturando: “É fundamental entender essa atividade como uma estrutura industrial emergente”.
Inovação e competitividade
Sem estrutura industrial definida, a bioeconomia é um setor com dinâmica de concorrência baseada em inovação. A previsão é que se criem cada vez mais políticas que a incentivem, na busca de estruturar novas empresas, com um novo modelo de negócio. A área coloca biotecnologia avançada e industrial à disposição para indústrias que não faziam tal uso. A visão da bioeconomia é uma visão de mudança, segundo o professor: muda a matéria-prima da indústria, dos combustíveis fósseis, para a biomassa.
A estruturação da bioeconomia depende da co-evolução de cinco dimensões-chave: matérias-primas; tecnologias de conversão; produtos; modelos de negócio e, envolvendo tudo isso, uma paisagem sócio técnica propícia. Incluindo instituições, regulações e tendências da sociedade. Para a indústria química, por exemplo, é complicado mudar a matéria-prima utilizada, pois esta está baseada na localização geográfica da indústria, a quantidade necessária e demais escalas.
Desafios das matérias primas renováveis
Existem questões quanto ao uso de matérias primas renováveis. Se vindas diretamente da natureza, a extração deve ser baseada em conhecimento de como se explorar aquele bem. Outro aspecto que perpassa é a sazonalidade: um fruto, por exemplo, tem safras. No período de entressafra não tem produção. É preciso, ainda, saber lidar com os resíduos. No caso de carvão e petróleo, os resíduos servem a indústrias alheias à de energia. Para a biomassa, portanto, é preciso também descobrir fins para os resíduos das matérias-primas renováveis e organizar um processo de disponibilidade para, a partir daí, estruturar a indústria. A mudança para a bioeconomia deve representar sustentabilidade.
Mesmo que a matéria-prima seja abundante, como o esgoto, por exemplo, a grande dificuldade é como estruturar o projeto industrial. Em 2005, quando surgiu o Mapa do Biodiesel, este mostrava uma infinidade de elementos que poderiam ser biodiesel, mas ao longo do tempo só duas foram desenvolvidas com esse fim: soja e sebo (gordura animal). Diversas outras questões, da produção industrial, cercam o assunto da biomassa. Além da principal dúvida - que matéria-prima utilizar? -, é preciso pensar em processos de conversão, biotecnologia a ser utilizada, processos químicos, etc. As empresas continuam testando as diversas rotas para chegar aos produtos.
A primeira geração de biocombustíveis foi de um produto substituto “imperfeito”, o etanol, que apresentou alguns obstáculos como adaptação dos motores, e se apresentou com uma estrutura muito cara, mas que nos anos 80 era necessário, afirmou. E há os produtos substitutos “perfeitos”, como os biohidrocarbonetos, o polietileno verde (da empresa Braskem) e os combustíveis de aviação. Mas é preciso descobrir que produtos podem se tornar efetivamente competitivos nas biorrefinarias, com uso eficiente da biomassa. Além do uso para o funcionamento da indústria, buscam-se novas embalagens sustentáveis. Um exemplo seria o polyethylene-furanoate, chamado de PEF, e uma nova versão do PET: o PET renovável a partir de p-xileno renovável.
quarta-feira, 18 de maio de 2016
Não fale mal do SUS, você ainda vai precisar dele
Sim, rever o tamanho do SUS: Para Maior!...
por Alexandre Padilha (ex-Ministro da Saúde), no Carta Maior
Fruto da luta democrática e da capacidade de construir consensos institucionais a partir de necessidades simbólicas do nosso povo, o Brasil assumiu um compromisso inédito para um país de mais de 200 milhões com a criação do SUS: estabelece que a Saúde é um Direito de Todos e um dever do Estado.
Ao longo da sua história, esse Direito vem sofrendo ataques sistemáticos. De um lado por interesses privados e corporativos, no seio de um mercado de produtos, tecnologias e serviços gerado pelo esforço de acesso universal a 200 milhões de pessoas. Do outro, por aqueles que não admitem um Estado que garanta direitos e, sim, defendem um Estado que apenas garanta as condições para os interesses de mercado, incluindo aí apenas as politicas compensatórias necessárias para garantir a sobrevivência dos seus consumidores e um ambiente político de estabilidade.
Esta disputa constante ao longo dos seus mais de 25 anos foi repleta de avanços e recuos, mantendo inconclusos seus desafios estruturantes como: um financiamento sustentável compatível com o esforço realizado por outros países com sistemas universais, responsabilidade sanitária dos 3 entes federativos e consolidar um modelo de atenção humanizado em que a medicalização e a hospitalização não sejam a tônica.
No período mais recente, dois baques para a consolidação do SUS foram a retirada da CPMF, imposto que incidia sobre a parcela mais rica do pais e combatia a sonegação, e as tentativas bem sucedidas subsequentes de reduzir os recursos vinculados.
Apesar disso, avançamos no enfrentamento:
1) de interesses de algumas corporações no debate e implementação do Mais Médicos e todas as medidas de fortalecimento da Atenção Básica;
2) de interesses exclusivos do mercado, com a Lei que estabelece regras para incorporacão de medicamentos e tecnologias (criando a Comissão nacional de Incorporação tecnológica no Sus) e no início da implementação do ressarcimento ao SUS pelos planos de Saúde;
3) de interesses pautados pelo obscurantismo com a ampliação de uma rede de atenção Psicosocial não manicomial, com o nome social no cartão SUS, com a lei que obriga os serviços de saúde a garantirem a atenção integral as mulheres vítimas de violência (profilaxia contra gravidez indesejável, contra DSTs e registro de provas para denúncia à justiça no próprio serviço de saúde )
4) de superação do modelo hospital e médico centrado com a expansao da urgência pré-hospitalar, da atenção domiciliar e dos consultórios na rua, por exemplo.
É alarmante, neste cenário, que a direção apontada pela autoridade máxima do SUS é em reduzí-lo e não enfrentar os desafios para a busca constante do seu fortalecimento. Em um momento em que o país precisa discutir e se mobilizar para reduzir a carga tributária sobre seus trabalhadores e ampliar a participação tributária dos setores mais ricos, dos proprietários de helicópteros, iates e aviões, das grandes heranças, das movimentações financeiras, dos bônus e dividendos não tributados para manter e ampliar o SUS. Um sistema de saúde que, cada vez mais, se depara com o subfinanciamento e os novos custos decorrentes do envelhecimento e da nossa realidade urbana, falar em redução do SUS é um sinal absolutamente contrário aos nosso desafios.
Apesar dos avanços, nossos números não permitem qualquer afirmação no sentido de reduzir o tamanho do SUS . O acesso à saúde ainda é muito desigual. Mesmo com o passo decisivo do Mais Médicos, que garantiu médicos compondo equipes na atenção primária para mais de 60 milhões de habitantes, ainda estamos longe de parâmetros de cobertura similares aos Sistemas universais europeus que nos inspiraram na Europa.
Em 2003, simplesmente inexistiam serviços na rede pública que ofereciam diagnóstico e tratamento integral de alta complexidade em cardiologia, neurologia e oncologia fora das capitais de mais da metade dos estados da federação do país e na quase totalidade dos estados do Norte e Nordeste, por exemplo. E onde existiam, havia uma profunda concentração relacionada ao mercado privado de saúde.
Iniciamos o caminho para superar esta desigualdadede de acesso com os governo Lula e Dilma. Foram políticas de expansão das redes de urgência e emergência, a criação e implantação do SAMU, planos nacionais de expansão de cuidados especializados da Saúde integral da mulher, de rede oncológica, unidades do trauma e cardiologia, expansão dos programas de formação de especialistas, mas o país ainda é muito desigual. Por exemplo, o Brasil é dividido em 436 regiões de saúde . Dessas, 103 possuem serviços de atendimento integral a mulheres com câncer de mama, apenas 15 Unidades federativas têm serviços especializados para todos os procedimentos cirúrgicos de tratamento para coluna e 21 estados têm serviços especializados para todos os tratamentos de cardiologia. Mais acesso ao SUS é um dos desafios cruciais para reduzir a desigualdade social e regional no Brasil.
Não basta crescer, é necessário crescer junto com os que mais precisam, mais vulneráveis. O envelhecimento populacional; características de populações vulneráveis: como aqueles que vivem em situações rua, aqueles que ocupam os espaços rurais, aqueles cuja atividade profissionais ou modos de viver nas cidades tornam seus horários incompatíveis com o uso regular das unidades, contrastes culturais como a população indígena e imigrantes exigem não apenas um SUS maior, mas mais próximo dos modos diversos de vida dos 200 milhões de brasileiros. O SUS precisa crescer em tamanho e em diversidade .
Um compromisso de um SUS maior e com mais acesso não significa compactuar com o que existe de desperdício, de desvio e de gastos excessivos travestidos de acesso universal. Mas é preciso ficar bem claro que os gastos excessivos não tem qualquer relação com as diretrizes do SUS, pelo contrário, são frutos ou de interesses privados não republicanos ou da persistência de um modelo que supervaloriza a subespecialidade ou a incorporação tecnológica critica. O combate ao desperdício ou custos excessivos exigem Mais SUS e não Menos SUS.
Na cidade de São Paulo, o esforço do Prefeito Fernando Haddad em reconstruir a Atenção Básica mostrou uma parte deste caminho. Em 2012, de cada 100 consultas na atenção básica, 24 demandavam encaminhamento para especialistas. Em 2015, além de ofertar 1 milhão a mais de consultas na atenção básica,de cada 100 apenas 12 demandaram encaminhamento para especialistas. No Brasil, o enfrentamento feito pelo Minisitério da Saúde em relação a máfia de órteses e próteses revelou que não é entregando ao privado que se reduzirá o desperdício.
Assim como na cobertura da imprensa internacional sobre o golpe, muitas vezes, a luz da vivência de outros países nos fazem valorizar os avanços que conseguimos com muita luta. Na última semana, dois fatos que vivenciei na batalha em buscar mais qualidade para a saúde da cidade de São Paulo evidenciam o quanto não podemos permitir qualquer passo atrás, naquilo que já foi conquistado na busca de um sistema universal. Um deles, durante o lançamento da nossa política de Saúde para população imigrante, as expressões de defesa do SUS de quem já viveu as exclusões de direitos em outros países. O outro, durante a visita de 14 cidades chilenas à nossa rede, cientes das nossas dificuldades, mas espantados de como garantimos um conjunto de atendimentos e procedimentos aparentemente básicos gratuitamente no SUS -- algo que só ocorre com pagamento no Chile.
A agenda inicial daqueles que assumiram o governo federal sem voto é exatamente aquela que foi sucessivamente derrotada nas urnas em 2002, 2006, 2010 e 2014. Isto só torna cada vez mais cristalino que a chamada "ponte para o futuro" mais parece um episódio da série daquele blockbuster "De volta para o futuro", em que a tal máquina do tempo levava seus personagens ao passado, ao invés do futuro. Para enfrentá-la não há nenhuma máquina produzida pela ficção, mas a realidade concreta consolidada ao longo da história: a luta nas ruas, nas redes e nos espaços institucionais, resistência e muita articulação política para ampliarmos a aliança com a sociedade na defesa dos seus direitos seriamente ameaçados. É uma oportunidade única para todos aqueles que se referenciam na esquerda, que defendem o mínimo de desigualdade e o máximo de diversidade que influenciará nas nossas escolhas do presente e nos caminhos do futuro.
terça-feira, 17 de maio de 2016
A agricultura convencional e a transdisciplinaridade
Entrevista com Antonio Donato Nobre, cientista do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – CCST/Inpe, conduzida pelo IHU On-Line
IHU On-Line - Quais os impactos da produção agrícola nas mudanças climáticas? Quais os riscos que o modelo do agronegócio (baseado nas grandes propriedades e produção em larga escala de uma só cultura por vez) representa?
Antonio Donato Nobre - A ocupação desordenada das paisagens produz pesados impactos no funcionamento do sistema de suporte à vida na Terra. A expansão das atividades agrícolas — quase sempre associada à devastação das florestas que têm maior importância na regulação climática — tem consequências que se fazem sentir cada vez mais, e serão devastadoras se não mudarmos a prática da agricultura.
A natureza, ao longo de bilhões de anos, evoluiu um sofisticadíssimo sistema vivo de condicionamento do conforto ambiental. Biodiversidade é o outro nome para competência tecnológica na regulação climática. A maior parte da agricultura tecnificada adotada pelo agronegócio é pobre em relação à complexidade natural. Ela elimina de saída a capacidade dos organismos manejados de interferir beneficamente no ambiente, introduzindo desequilíbrios e produzindo danos em muitos níveis.
Como aliar agricultura e pecuária à preservação de florestas e outros ecossistemas? Como o novo Código Florestal brasileiro se insere nesse contexto?
Antonio Donato Nobre - Extensa literatura científica mostra muitos caminhos para unir com vantagens agricultura, criação de animais e a preservação das florestas e de outros importantes ecossistemas. Esse conhecimento disponível assevera não haver conflito legítimo entre proteção dos ecossistemas e produção agrícola. Muito ao contrário, a melhor ciência demonstra a dependência umbilical da agricultura aos serviços ambientais providos pelos ecossistemas nativos.
Em 2012, contrariando a vontade da sociedade, o congresso revogou o código florestal de 1965. A introdução de uma nova lei florestal lasciva e juridicamente confusa já está produzindo efeitos danosos, como aumentos intoleráveis no desmatamento e a eliminação da exigência, ou o estímulo à procrastinação, no que se refere à recuperação de áreas degradadas. Mas a proteção e recuperação de florestas tem direto impacto sobre o regime de chuvas.
Incrível, portanto, que a agricultura, atividade que primeiro sofrerá com o clima inóspito que já bate às portas do Brasil, tenha sido justamente aquela que destruiu e continua destruindo os ecossistemas produtores de clima amigo. Enquanto estiver em vigor essa irresponsável e inconstitucional nova lei florestal, a degradação ambiental somente vai piorar.
De que forma o conhecimento mais detalhado sobre as formas de vida, e a relação entre elas, em florestas, como a amazônica, pode inspirar formas mais eficientes de produção de alimentos e, ao mesmo tempo, minimizar impactos ambientais?
Antonio Donato Nobre - A biomimética é uma nova área da tecnologia que copia e adapta soluções engenhosas encontradas pelos organismos para resolver desafios existenciais. Janine Benyus, a pioneira popularizadora desse saber, antes ignorado, costuma dizer que os designs encontrados na natureza são resultados de 3,8 bilhões de anos de evolução tecnológica. Durante esse tempo, somente subsistiram soluções efetivas e eficazes, que de saída determinaram a superioridade da tecnologia natural.
Ora, a agricultura precisa redescobrir a potência sustentável e produtiva que é o manejo inteligente de agroecossistemas inspirados nos ecossistemas naturais, ao invés de se divorciar deste vasto campo de conhecimento e soluções, como fez com seus agrossistemas empobrecidos, envenenados e que exploram organismos geneticamente aberrantes.
Qual o papel do solo na “composição da equação do clima” no planeta? Em que medida o desequilíbrio do solo pode influenciar nas mudanças climáticas?
Antonio Donato Nobre - Microrganismos e plantas têm incrível capacidade para adaptar-se ao substrato, seja solo, sedimento ou mesmo rocha. Essa adaptação gera simultaneamente uma formação e condicionamento do substrato, o que o torna fértil para a vida vicejar ali. O metabolismo dos ecossistemas, incluindo sua relação com o substrato, tem íntima relação com os ciclos globais de elementos químicos. A composição e funcionamento da atmosfera depende, para sua estabilidade dinâmica, portanto, para o conforto e favorecimento da própria vida, do funcionamento ótimo dos ecossistemas naturais.
Na equação do clima, os ecossistemas são os órgãos indispensáveis que geram a homeostase ou equilíbrio planetário. A agricultura convencional extermina aquela vida que tem capacidade regulatória, mata o solo, fator chave para sua própria sustentação, e introduz de forma reducionista e irresponsável nutrientes hipersolúveis, substâncias tóxicas desconhecidas da natureza e organismos que podem ser chamados de Frankensteins genéticos.
Todos estes insumos tornam as monoculturas do agronegócio sem qualquer função reguladora para o clima, e muito pior, devido à pesada emissão de gases-estufa e perturbações as mais variadas nos ciclos globais de nutrientes, a agricultura tecnificada é extremamente prejudicial para a estabilidade climática.
Desde a perspectiva do antropoceno , como avalia a relação do ser humano com as demais formas de vida do planeta hoje? Qual o papel da tecnologia e da ciência nessa relação?
Antonio Donato Nobre - Esta nova era foi batizada de antropoceno porque os seres humanos tornaram-se capazes de alterações massivas na delgada película esférica que nos permitiu a existência e nos dá abrigo. O maior drama da ocupação humana do ambiente superficial da Terra é que tal capacidade está destruindo o sistema de suporte à vida, sistema esse dependente 100% de todas demais espécies as quais o ser humano tem massacrado em sua expansão explosiva.
Infelizmente, na expansão do antropoceno, o conhecimento científico tem sido apropriado de forma gananciosa por mentes limitadas e arrogantes, e empregado no desenvolvimento sinistro de tecnologias e engenharias que por absoluta ignorância tornaram-se incapazes de valorizar o capital natural da Terra. Este comportamento autodestrutivo tem direta relação com a visão de ganho em curto prazo e a ilusão de poder auferida na aplicação autista de agulhas tecnológicas.
Em que medida a aproximação entre ciência e saberes indígenas pode contribuir para um novo caminho em termos de preservação do planeta e produção de alimentos?
Antonio Donato Nobre - Cada pesquisador sincero, inteligente e com mente aberta deve reconhecer a máxima milenar da sabedoria socrática: "somente sei que nada sei". O conhecimento verdadeiro e sem limites internos impõe uma postura sóbria e humilde diante da enormidade da complexidade do mundo e da natureza. Hoje, a ciência mais avançada dá inteiro e detalhado suporte ao saber ancestral de sociedades tribais, que perduraram por milênios. Descer do salto alto da arrogância que fermentou graças ao individualismo permitirá reconhecer essa sabedoria básica de sustentabilidade, preservada no saber indígena.
Para a ciência, a aprender com o saber nativo está a veneração pela sabedoria da Mãe Terra; a intuição despretensiosa que capta o essencial da complexidade em princípios simples e elegantes; e sua capacidade holística e lúdica de articular a miríade de componentes do ambiente em uma constelação coerente e funcional de elos significativos.
De que forma a tecnociência e a tecnocracia impactam na forma de observar o planeta? O que isso significa para a humanidade?
Antonio Donato Nobre - A ciência é esta fascinante aventura humana na busca do conhecimento, evoluída aceleradamente a partir do renascimento na Europa. Muitas são suas virtudes e incríveis suas aplicações. No entanto, tais brilhos parecem infelizmente vir acompanhados quase sempre de alucinantes danos colaterais, nem sempre reconhecidos como tal. Na ciência, que gera o conhecimento básico; na tecnologia, que aplica criativamente esse conhecimento; e na engenharia, que transforma conhecimento em realidade, grassa uma anomalia reducionista que permite a hipertrofia de soluções pontuais, desconectadas entre si e do conjunto.
Tal abordagem gera soluções autistas que não se comunicam, tumores exuberantes cuja expansão danifica tudo que está em volta. Assim, a tecnociência olha o mundo com um microscópio grudado em seus olhos, vê pixel, mas ignora a paisagem. Abre caminhos para que ânimos restritos se apropriem de conhecimentos parciais e destruam o mundo. É preciso remover os microscópios dos olhos, olhar o conjunto, perceber as conexões e, assim, aplicar o conhecimento de forma sábia e benéfica.
De que forma conceitos como a Ecologia Integral, presentes na Encíclica Laudato Si’ , do papa Francisco, contribuem para o desenvolvimento de uma visão sistêmica do ser humano sobre o planeta? Qual a importância de uma perspectiva multidisciplinar acerca da temática ambiental?
Antonio Donato Nobre - Ecologia Integral deve significar o que o nome diz. Aliás, se não for integral não pode ser denominada ecologia. Isso porque na natureza não existe isolamento, cada partícula, cada componente, cada organismo e cada sistema interage com os demais, sob o sábio comando das leis fundamentais. Por isso a ação humana pode gerar um acorde harmonioso na grande sinfonia universal, ou — se desrespeitar as leis — tornar-se fonte de perturbação e destruição.
Mais importante do que ser multidisciplinar é ser não-disciplinar, isto é, integrar e dissolver as "disciplinas" em um saber amplo e articulado, sem fronteiras artificiais e domínios de egos. A ciência verdadeira é aquela oriunda do livre pensar, do profundo sentir e do intuir espontâneo. A busca da verdade está ao alcance de todas as pessoas, não é nem deveria ser território exclusivo dos iniciados na ciência. Todos somos dotados da capacidade de inquirir e temos como promessa de realização o dom da consciência. Cientistas são facilitadores, e como tal deveriam servir aos semelhantes com boa vontade, iluminando o caminho do conhecimento, guiando na direção do saber.
Como avalia a agroecologia no Brasil hoje? O que a ciência e a tecnologia oferecem em termos de avanços para esse campo?
Antonio Donato Nobre - Agroecologia, agrofloresta sintrópica, sistemas agroflorestais, agricultura biodinâmica, trofobiose, agricultura orgânica, agricultura sustentável etc. compõem um rico repertório de abordagens que convergem na aspiração de emular em agroecossistemas a riqueza e funcionamento dos ecossistemas naturais. Uma parte dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos autistas de até então pode ser aproveitada para essa nova era de agricultura produtiva, iluminada, respeitadora, harmônica e saudável.
É preciso, porém, que o isolamento acabe, que os conhecimentos sejam transparentes, integrados, articulados, simplificados e recolocados em perspectiva. Se as agulhas tecnológicas foram danosas, como os transgênicos, por exemplo, ainda assim serão úteis para sabermos o que "não" fazer. Na compreensão em detalhe das bases moleculares da vida, abrindo portais para consciência sobre a complexidade astronômica existente e atuante em todos os organismos, a humanidade terá finalmente a prova irrefutável para o acerto das abordagens holísticas e ecológicas.
Deseja acrescentar algo?
Antonio Donato Nobre - É preciso iluminar e revelar a imensa teia de mentiras criada em torno da revolução verde com seus exuberantes tumores tecnológicos. As falsidades suportadas por corporações, governos, mídia e educação bitoladora desde a mais tenra idade, implantaram um sistema mundial de dominação que, literalmente, enfia goela abaixo da humanidade um menu infernal de alimentos portadores de doenças.
Esse triunfante modelo de negócio não se contenta em somente alimentar mal, o faz via quantidades crescentes de produtos animais, os quais requerem imensas áreas e grandes quantidades de água e outros insumos para serem produzidos.
Com isso a pegada humana no planeta torna-se destrutiva e insuportável, e a consequência já se faz sentir no clima como falência múltipla de órgãos. Apesar disso, creio que ainda temos uma pequena chance de evitar o pior se, como humanidade, dermos apoio irrestrito para a busca da verdade.
Precisamos de uma operação Lava Jato no campo, e a ciência tem todas as ferramentas para apoiar esse esforço de sobrevivência.
sexta-feira, 13 de maio de 2016
Registro para a História - estrutura da sacanagem 2005-2016
por Maria Ines Nassif, na Carta Maior
A estratégia do golpe institucional, em 2016, com papel ativo do baixo clero do Legislativo e de instâncias judiciárias (o juiz de primeira instância Sérgio Moro e o Supremo Tribunal Federal), e ação publicitária dos meios de comunicação tradicionais (TV Globo e a chamada grande imprensa) começou a ser desenhada em 2005 no chamado Escândalo do Mensalão.
Um ano antes das eleições presidenciais que dariam mais um mandato ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o país foi sacudido por revelações de que o PT usara dinheiro de caixa dois de empresas para pagar as dívidas das campanhas das eleições municipais do ano anterior, suas e de partidos aliados. O tesoureiro do partido, Delúbio Soares, era o agente do partido junto a empresários e a uma lavanderia que até então operava com o PSDB de Minas, a agência de publicidade DNA, de Marcos Valério. Delúbio tornou-se réu confesso. Outro dirigente do partido, Sílvio Pereira, foi condenado por receber um Land Rover de presente de um empresário.
Em torno do episódio – crime de captação de caixa dois pelo partido que está no governo e recebimento de presentes em troca de favores – se iniciaria a maior ofensiva institucional contra um partido político jamais ocorrida em períodos democráticos do país. Toda a máquina midiática tradicional foi colocada a serviço de provar – com fatos amplificados, versões ou falsificações – que o governo de Lula estava corroído pela corrupção, que o PT aparelhara a máquina pública para auferir ganhos desonestos para o partido ou para os seus aliados, que o governo corrompera os aliados – ironia das ironias, os “corrompidos”, os partidos da base aliada, eram o PMDB, o PTB, o PP, o PR.... – com mesadas para os parlamentares, destinadas a garantir as maiorias em plenário necessárias para aprovar matérias de interesse do Executivo.
O termo “mensalão” foi criado nessa jogada de marketing, destinada a transformar um escândalo de caixa dois, no qual todos os partidos estavam envolvidos (a lavanderia de Marcos Valério não tinha restrições ideológicas à adesão de qualquer um deles), em um modo peculiar de corrupção do PT, a compra direta do parlamentar, sem que em nenhum momento houvesse sido provado o pagamento regular a deputados e senadores da base aliada. Afinal, o dinheiro da lavanderia de Marcos Valério foi direto para o caixa dois de outros partidos políticos, no período pós-eleições municipais – e o “denunciador” do mensalão, o presidente do PTB, Roberto Jefferson, chegou a confessar, quando se viu em tribunal, que dinheiro era para pagamento de dívidas de campanha.
Para ser corrupção, todavia, era preciso que se caracterizasse o dinheiro do caixa dois como originário dos cofres públicos. O Ministério Público, então presidido pelo procurador Antônio Fernando de Souza, hoje advogado do deputado tardiamente afastado da presidência da Câmara, Eduardo Cunha, inventaria a ficção de um dinheiro desviado da empresa Visanet pelo diretor de Marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolatto. A Visanet era uma empresa privada, do grupo internacional Visa, e esse dinheiro foi tratado indevidamente como produto de desvios do Banco do Brasil, estatal, num julgamento na maior instância judiciária do país, que não poderia se dar ao luxo de um erro deste tamanho.
Pizzolatto não tinha autonomia para assinar uma única ação de marketing sozinho. A “prova” que Souza apresentaria contra ele, aceita pelo relator Joaquim Barbosa, do STF, foi assinada por outras três pessoas e submetida a um comitê, e depois à diretoria de um banco – a ação publicitária, ao final, fora autorizada por mais de uma dezena de pessoas. Não existia possibilidade de que Pizzolatto tivesse desviado o dinheiro: para isso, teria que ter mais de dez cúmplices, e ainda assim atuaria sobre dinheiro privado, que não era do Banco do Brasil.
O Supremo Tribunal Federal, nas vésperas da eleição de 2014, julgou midiaticamente o caso e perpetrou barbaridades jurídicas nunca antes vistas na história desse país. O relatório do ministro Joaquim Barbosa transformou um crime de captação de caixa dois em desvio de dinheiro público, e jogou as provas de que o dinheiro definitivamente não havia sido desviado do Banco do Brasil para um inquérito paralelo. Por fim, decretou segredo de Justiça. Sequer os advogados de defesa tiveram acesso a elas. Também não tiveram acesso a provas da origem do dinheiro lavado por Marcos Valério: a transferência de fartos recursos do caixa de um empresário interessado em decisões de governo (que não foram tomadas, inclusive por oposição do ministro José Dirceu, condenado sem provas), repassados aos partidos da base aliada. O empresário em questão chegou a aparecer no início do escândalo na mídia e sumiu como um fantasma das páginas dos jornais e dos inquéritos policiais e judiciais.
Com a opinião pública dominada por uma campanha diária de nove anos, o STF legitimou sua decisão de avalizar as conclusões de Barbosa, acatou o estranho instrumento do “domínio do fato” e, a partir disso, a pretexto de ouvir a voz das ruas, aceitou as barbaridades que seriam praticadas pelo Ministério Público e pela justiça de primeira instância na Operação Lava Jato, nos últimos três anos.
O STF transformou um crime de caixa dois em crime de corrupção, de formação de quadrilha, etc. etc. sem provas. Dos réus que foram condenados, alguns cometeram crimes, mas não os que os levaram para a prisão; outros eram inocentes de quaisquer crimes e foram condenados assim mesmo. Poucos foram condenados por crimes que efetivamente cometeram. A Agência DNA foi punida por atuar como lavanderia do PT e dos partidos aliados, mas tardiamente responsabilizada pelo Mensalão do PSDB (que vai deixar todos os implicados soltos até a prescrição do crime, o mesmo que levou o PT e seus aliados à cadeia). O deputado José Genoíno, então presidente do PT, foi preso por um empréstimo efetivamente feito pelo partido e quitado no prazo estipulado em contrato.
Dirceu foi eleito o vilão nacional e encarcerado – e de novo encarcerado no Lava Jato – sem nenhuma prova contra si. E Pizzolatto, depois de uma fuga sensacional, amarga cadeia porque, junto com um comitê de dezenas de pessoas, autorizou uma campanha publicitária do Banco do Brasil paga pela Visa Internacional. Alguns membros do mesmo comitê respondem a um processo na primeira instância que está esquecido na gaveta de um juiz da capital federal.
Desde então, o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal se constituem em peças fundamentais nas articulações contra os governos petistas, iniciadas em 2005 e que tiveram desfecho no golpe institucional deste 2016. Eduardo Cunha e Michel Temer não existiriam sem a cumplicidade das duas instituições e a inexplicável ingenuidade do PT: o mesmo partido que em determinado momento se dispôs a jogar com as armas da política tradicional, indo à cata de dinheiro de caixa dois das empresas para financiar campanhas eleitorais, não entendeu a natureza da elite que o financiava, nem a impossibilidade de acordo com a política tradicional e com instituições de vocação conservadora que mantiveram seu perfil conservador e corporativo, apesar de seus membros terem sido majoritariamente escolhidos pelos presidentes petistas.
O PT não entendeu que jogava as suas fichas, a nível institucional, numa política de conciliação de classes num quadro onde as próprias políticas do governo davam as bases para uma acirrada luta de classes, que se tornou explícita quando o golpe começou a mostrar sua cara. Essa foi uma contradição inerente aos governos petistas.
Na campanha eleitoral de 2014, a presidenta Dilma Rousseff venceu no segundo turno porque rapidamente as forças de esquerda se articularam em torno dela, em reação à onda de comoção criada pela direita, que se utilizou do clima proporcionado pelo julgamento político levado a termo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) poucos meses antes do início do processo eleitoral, no chamado caso do mensalão; e pela entrada em cena do juiz de primeira instância Sérgio Moro que, aproveitando-se das licenças jurídicas a que se permitiu o STF em 2013, fez o seu próprio tribunal político, fechando o cerco ao PT por um esquema de corrupção na Petrobras que – basta ler com atenção as delações premiadas – era enraizado na empresa e mantinha em diretorias protegidos de partidos que estavam aliados aos governos petistas depois de 2002, mas igualmente aos governos anteriores, do PSDB e do PMDB e do governo Collor.
Já são 11 anos de massacre, com armações com grande similaridade.
O Ministério Público encontra um escândalo qualquer e começa a investigar, considerando provas basicamente de um lado. Sem consistência para pedir um inquérito, vaza os dados para um órgão de imprensa, que os publica como grande escândalo, desconhecendo o fato de que as provas não existem. Imediatamente, a matéria do jornal, baseada em vazamentos do próprio MPF, vira o indício que o MPF usa para pedir ao juiz – a Moro, ou ao STF, ou a algum outro – para abrir o inquérito.
No caso de Moro, seguem-se prisões sem base legal e coações à delação premiada. Chovem no Youtube reproduções de interrogatórios presididos pelo próprio juiz Moro onde ele deixa claro ao interrogado – normalmente um velho com problemas de saúde -- que será libertado apenas se delatar; e de advogados protestando contra ele por não considerar sequer uma prova apresentada pela defesa antes de condenar um implicado. Nesses vídeos, é claro que Moro está investido da intenção de condenar antes de ouvir a defesa. Para ele, não existem inocentes em um campo político. No outro campo político, suas intenções são dóceis. O justiceiro é bastante permissivo com o campo político da direita.
Nada justifica que um juiz de um tribunal de exceção sobreviva numa democracia com amplos poderes, acima daqueles que a Constituição lhe confere, sem a aquiescência da maior instância judiciária. Moro existe e faz o que quer porque o sistema jurídico está contaminado pelo partidarismo. Moro não existiria sem um Barbosa que o precedesse. Moro não existiria sem o ministro Gilmar Mendes, que impunemente transformou o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em palanques contra os governos do PT. Não existiria sem o ministro Dias Toffoli, que se tornou moleque de recados de Mendes; sem a tibieza das duas ministras mulheres; sem o conservadorismo ideológico de Teori Zavascki (que contamina o seu discernimento jurídico); sem a falsa objetividade jurídica de Celso Melo; sem a frouxidão de Edson Fachin; sem a excessiva timidez de Ricardo Lewandowisk.
A Justiça não evitou o golpe porque é parte do golpe. O Ministério Público não reagiu ao golpe porque era um dos conspiradores.
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