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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

E se as barragens da Samarco fossem em Santa Catarina?...

Vale do rio Pinheiros - Anitápolis SC, onde se pretende abrir mineração a céu aberto da fosfateira

Cerca de 10% do fosfato explorável no país está localizado em um grupo de montanhas no interior do estado de Santa Catarina. Para extrair aquela matéria-prima e transformá-la em fertilizante, duas multinacionais tentam instalar, desde 2005, uma mineradora e uma fábrica em Anitápolis, a cerca de 90 km de Florianópolis. As empresas multinacionais Bunge (EUA - derivada da argentina Bunge y Born) e Yara (Noruega) desenvolveram um  projeto em Anitápolis para explorar a jazida de fosfato localizada no Vale do Rio Pinheiro.

O projeto prevê a abertura de uma mina a céu aberto na região e a construção de uma fábrica de fertilizante SSP (Superfosfato Simples). Anitápolis é uma cidade situada na subida da Serra Geral setentrional catarinense, perto de Rancho Queimado, Angelina, São Bonifácio e Santo Amaro da Imperatriz. Trata-se de uma região montanhosa, reduto do pouco que resta da Mata Atlântica, onde vários afluentes dos rios mais importantes do Estado têm suas nascentes.

Para viabilizar o empreendimento, que seria explorado por 30 anos, será necessário desmatar cerca de 300 hectares de Mata Atlântica e se prevê a construção de duas barragens no Rio Pinheiros para o tratamento (ou simples estocagem) de rejeitos, com cerca de 90 metros de altura cada. Além disso há a necessidade de uma linha de transmissão de energia elétrica de alta tensão com 46 km de extensão, cujo trajeto interferirá em 100 hectares de mata nativa e área agrícola. Esse tipo de atividade demanda grandes volumes de água que impactará  os recursos hídricos  locais (consumo previsto de 885 m³/h), o que afetará a disponibilidade de água na região, sem mencionar que o tráfego de substâncias perigosas, como o enxofre, será diário entre o porto de Imbituba e Anitápolis.

Então seria assim: para a implantação da Indústria de Fosfatados Catarinense (IFC), a mata nativa daria lugar a uma mina a céu aberto, muitas espécies seriam expulsas de seu habitat e o empreendimento seria edificado na área da bacia hidrográfica do rio dos Pinheiros, que faz parte da bacia hidrográfica do rio Braço do Norte, formada por 19 rios nos municípios de Anitápolis, Santa Rosa de Lima, Rio Fortuna, Grão Pará, Braço do Norte e São Ludgero.

A maior parte dos moradores destes municípios vive da agricultura, familiar ou do agronegócio. Uma barragem de rejeitos certamente irá contaminar a água, que os habitantes estariam expostos a substâncias químicas, como o ácido sulfúrico, ocasionando chuva ácida e outros fatores deletérios. A própria Fundação do Meio Ambiente (Fatma) emitiu um documento comprovando que "tecnicamente é possível alegar que a obra de engenharia representa riscos ao meio ambiente", de maneira que a Associação Montanha Viva protocolou uma ação civil pública no judiciário solicitando a anulação da Licença Ambiental Prévia, emitida em 2009.

Com essa fosfateira em operação em Anitápolis os 1.760 hectares de terras catarinenses seriam comprometidos com a mineradora, bacia de rejeitos, área industrial e depósito de estéril, ou se Santa Catarina estivesse produzindo 200 mil toneladas de ácido sulfúrico por ano já se teria uma boa carga de chuva ácida... Mas, os órgãos ambientais estaduais e a instituição licenciadora, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), estariam aptos a controlarem as consequências de uma possível catástrofe ambiental como a que a que acabou de acontecer em  Minas Gerais e Espírito Santo?...

Santa Catarina é o maior produtor de carvão mineral do país, com quase 47% do total nacional. O extrativismo de carvão mineral é predominante nas áreas de baixada litorânea, em Urussanga, Criciúma, Lauro Müller e Tubarão. As graves degradações de rios e áreas de rejeitos dessa atividade minerária JAMAIS tiveram soluções efetivas e causam problemas às populações e as cidades que abrigam esta atividade econômica desde sempre. Rios contaminados com rejeitos de carvão ficam mais ácidos que água de bateria dos automóveis naquela região.

Os segmentos carbonífero e cerâmico têm mais de duas mil empresas. As indústrias de cerâmica de Santa Catarina  produzem 60% do total brasileiro de pisos e revestimentos. A mineração de caulim, caulinita e argilas que se usa nas cerâmicas também são negligentemente operadas do ponto de vista ambiental, como facilmente se pode imaginar.  Santa Catarina possui, ainda, as maiores reservas nacionais de fluorita e sílex. Recursos minerais como os depósitos de quartzo, bauxita e pedras semipreciosas, além de petróleo e gás natural, também estão entre as principais matérias-primas do estado. Tudo isso alimenta irremediavelmente a cupidez de muitos... como se resolverá isto?...





terça-feira, 24 de novembro de 2015

Argentina - contexto histórico geopolítico e eleição 2015


 
por André Araujo (está ficando habitué), no blog do Nassif

[com adendos dos índios daqui nos colchetes]


O grande boom da Argentina foi a frigorificação da carne inventada pelos ingleses [no crepúsculo do século XIX], o que deu à Argentina por cinquenta anos o rótulo de maior exportador de carne bovina do mundo, fazendo o esplendor do campo argentino e o brilho de Buenos Aires, a Paris da América do Sul, cidade das luzes, da cultura, das artes.

A riqueza da Argentina de 1885 a 1935 fazia do Brasil da época uma tapera. Grandes transatlânticos vinham da Europa diretamente à Buenos Aires sem parar no Brasil. Os ricos criadores de gado tinham mansões em Paris e Londres e argentino virou sinônimo na Europa de milionário. Ao contrário do Brasil, as mansões nas estâncias imitavam chateaus franceses e castelos ingleses onde servia-se a francesa e mordomos à inglesa atendiam as portas.

O apogeu econômico e político da Argentina se deu em 1938, quando seu Chanceler, Carlos Saavedra Lamas, ganhou o Prêmio Nobel da Paz por ter conseguido a paz na Guerra do Chaco entre Paraguai e Bolívia.

A sua não entrada ao lado dos Aliados na Segunda Guerra, o início do peronismo em 1943 e o fato de tornar-se refúgio de nazistas a partir de 1945 carimbou a Argentina como Pais pouco confíavel ao sistema ocidental de poder.

A Argentina só entrou como membro das Nações Unidas por pressão do Brasil, a vontade dos EUA era deixá-la fora, como fizeram com a Espanha, por ser considerada simpatizante do nazi-fascismo, a Argentina só declarou guerra à Alemanha em março de 1945 por violenta pressão dos EUA, em 1945 expulsou o Embaixador americano Spruille Braden.

O peronismo foi um processo de redistribuição da riqueza do campo nas cidades, especialmente Buenos Aires. Perón, que assumiu plenos poderes em 1946, passou a controlar a exportação de carne através do IAPI-Instituto Argentino de Promocion del Intercambio e tabelou o preço internamente, de maneira que os operários de Buenos Aires comiam filet mignon todo dia, a riqueza se espalho e a indústria floresceu especialmente em metalurgia e tecidos.

A comida era tão barata que famílias de funcionários de médio escalão almoçavam todo dia em restaurantes no centro de Buenos Aires. Essa festa durou até 1953, fim da primeira fase do peronismo, quando acabaram as reservas.

A Argentina acumulou imensas reservas durante a Segunda Guerra, era celeiro de carne e trigo da Europa com sua produção interna desorganizada, a Argentina só exportava e não importava por causa da guerra, acumulou divisas que deram para gastar nos oito anos seguintes.

De crise em crise se arrasta da queda de Perón em 1953 até hoje, a Argentina perdeu o bonde da História mas tinha um capital humano admirável, povo altamente educado, o sistema educacional formado pelo Presidente Domingo Faustino Sarmiento é de excepcional qualidade e se manteve durante todas as crises.

Brasileiros que conheceram a Argentina na década de 50, como eu, levaram um choque ao ver o refinamento das confeitarias em grande quantidade, o povo ultra bem vestido, jornaleiros de terno e gravata, meninos saindo de escolas públicas de blazer estilo londrino, São Paulo era uma aldeia comparado com Buenos Aires, a Avenida Corrientes com cinemas e teatros colados um ao outro, até as duas horas da manhã as ruas movimentadíssimas com restaurantes e bares funcionando, iluminação farta, uma quantidade enorme de livrarias, mostrando um povo culto e sofisticado.

A população basicamente europeia, o equipamento urbano em abundância, o metro de Buenos Aires é de 1914, parques imensos e super bem ajardinados, como Palermo, os edifícios de apartamentos elegantes com estilos Art Nouveau, Art Deco ou clássico francês, os bairros residenciais no modelo inglês de Olivos e Martinez, palácios residenciais de imensos terrenos com coudelaria para os cavalos.

O ponto de desconexão dessa sociedade, que parecia perfeita, foi a riqueza excessiva do campo contra a modéstia de vida da classe proletária urbana de Buenos Aires, Córdoba, Santa Fé, Rosário, e outras... O peronismo foi uma tentativa de redistribuição dessa renda do campo mas não soube parar no processo e acabou por descapitalizar o campo.



[nota dos índios aqui do blogo - O PERÍODO DAS DITADURAS MILITARES FICA DE FORA DESTE BREVE DESCRITIVO, ASSIM COMO A "ERA" MENEM]


O grande inimigo do peronismo foi sempre o campo. Peron sabia manejar, Evita não, agrediu o que pode os "terratenientes", expressão da aristocracia rural. [Depois] o kirchenismo, um puxadinho do peronismo [agravou isso]. Faltava aos dois Kirchner o carisma do casal Perón, [de modos que] continuaram nessa luta contra o campo, mas Cristina exagerou, em 2013 deixou de abrir a Feira Rural de Palermo, a maior da Argentina, uma exibição mundialmente conhecida, maior que qualquer feira rural brasileira, o que foi tomado como um insulto ao agrobiz argentino. Não precisava ter sido insolente a esse ponto, o campo é que sempre garantiu a economia da Argentina, nenhum presidente antes deixou de abrir La Rural. Cristina brigou com todos, com o agrobiz, com a indústria, com o comércio, com os sindicatos, com os EUA, com os bancos, não tinha a mínima capacidade gerencial ou política, o marido era muito mais equilibrado, sem o marido ela perdeu o eixo da sensatez. Os anos Kirchner viram o rebanho de gado de corte cair de 55 milhões de cabeças para 39 milhões, no ranking dos exportadores de carne o País caiu de 2º para 7º lugar, suplantado pelo pequeno Uruguai.

A tarefa de Macri é muito difícil, recuperar a economia argentina é mais complicado do que relançar a economia brasileira, a Argentina está sem reservas internacionais, apenas 19 bilhões de dólares para um economia de 480 bilhões de dólares é nada, só os compromissos fixos de 2016 são de 27 bilhões.

Mas a eleição de Macri vai mudar vários eixos na América do Sul, Cristina Kirchner tinha conflito com todos os vizinhos e Macri obviamente vai tentar desfazer tantos nós de desentendimentos e já avisou que vai bater de frente com a proto-ditadura venezuelana, muito ligada à Cristina, Chávez comprou bilhões de dolares de bônus argentinos em monentos de crise.

Essa virada afetará toda a América do Sul, com reposicionamento de peças no tabuleiro do xadrez geopolitico.



COMENTÁRIOS - Jorge Rebolla

[E os Abutres?...] com asas do juiz americano Thomas Griesa defendendo a sua espécie?...  Sem crédito externo como liberalizar a economia, principalmente a taxa de câmbio?... Um acordo com eles?... os abutres?...

Caso não consiga a curto prazo respirar em divisas internacionais restará apenas uma brutal desvalorização da moeda. Coisa absolutamente negativa para a popularidade do novo presidente nas classes abaixo da média.

Quero ver como o Macri administrará a situação, será um governo de ajuste com nível aceitável de impopularidade ou um novo "de la Rua"?...

domingo, 22 de novembro de 2015

Samarco, a agonia no capitalismo financeiro




por André Araujo, no blog do Nassif

O caso das barragens da Samarco nos leva a reflexões colaterais sobre o capitalismo financeiro e seus personagens. A Samarco hoje é controlada pela maior companhia de mineração do mundo, a BHP, fusão da Broken Hill Proprietary, fundada na Austrália em 1851, e a Billiton, originada na Indonésia holandesa na mesma época, depois integrante do Grupo Royal Dutch Shell, e a nossa Vale, cuja origem é a americana Itabira Iron, de Percival Farquar, maior empresário do Brasil nas primeiras décadas do Século XX, empresa nacionalizada pelo Presidente Artur Bernardes e que virou Cia. Vale do Rio Doce na década de 40.

Como empresas tão experientes lograram correr um nível de risco patrimonial tão alto a ponto de incorrer em indenizações que provavelmente vão zerar o valor financeiro da Samarco? Esta faturou R$ 7,2 bilhões em 2014, ganhou líquidos 2,8 bilhões e investiu apenas 78 milhões em segurança ambiental. Com um pouco mais reforçaria as barragens, que são de terra, as mais baratas que existem, instalaria sensores para monitorar o risco da pressão do volume sobre a parede e, com mitigação maior de risco, transformaria a parte de terra despejada na represa em pellets, que poderiam ser armazenados fora da represa e diminuiriam consideravelmente o volume dentro da barragem. Assim, ficaria com muito menor ocupação resultante apenas em água impura, mas em muito menor volume do que o conjunto lama+detritos+água. Essa solução mais definitiva custaria um pouco mais, mas seria um seguro infinitamente mais barato do que o custo econômico que agora cairá sobre a empresa que será devorada pelas indenizações.

Como os executivos não assumiram esse caminho? Por causa do modelo de capitalismo financeiro que vem assumindo a direção das grandes empresas da economia produtiva. Foram-se os executivos "de indústria", "do ramo". Hoje, assumiu uma geração de jovens calculistas que trabalham exclusivamente com planilhas, índices, taxas de retorno. Não tem ligação com o produto físico, com as máquinas, com a terra, com o minério, com a barragem. O mundo deles e de seus chefes e acionistas é exclusivamente financeiro.

O lucro pode ser fantástico, mais de um terço do faturamento, mas nem por isso a pressão para obter mais é da essência dessa cultura financeira. Fora das planilhas e dos "budgets", dos "targets", não tem mais nada no radar, nem o futuro da empresa, é só o próximo trimestre, base dos bônus. No semestre posterior pode ter caído o CEO mundial do grupo e o CEO da Samarco, então a única meta que conta é o lucro do trimestre.

Conheci profundamente o sistema. De 1974 a 1978, fui o principal executivo de uma subsidiaria de multinacional americana no Brasil, havia uma obsessão com a meta trimestral, nada mais importava. No fim de cada trimestre, todos os executivos-chefes de cada divisão viajavam para a matriz em St. Louis, eram 130 divisões no mundo e lá mesmo no bunker do subsolo do prédio havia, durante toda a semana, em um auditório, uma revisão do budget de cada divisão. Se o executivo não tivesse atingido a meta era execrado em público e alguns despedidos lá mesmo. Depois, partia-se para fixação da nova meta para o trimestre seguinte, a pressão era intensa visando aumentar o lucro prometido, máxima pressão, até que o executivo acabasse por aceitar, mesmo sabendo que era impossível atingir, pelo menos ele teria o emprego por mais um trimestre.

Era um sistema diabólico para espremer cada divisão como um limão. Isso há 40 anos. Hoje, está muito pior, o único critério de sucesso é aumentar a taxa de retorno para o acionista com o mínimo de investimento, o mínimo de empregados e o maior aproveitamento dos ativos. Os que atingiam e ultrapassavam um pouco viravam heróis e eram homenageados com convite para jantar com o CEO, ganhavam sorrisos e cumprimentos, às vezes até promoção no ato.

Esse "capitalismo do trimestre" leva a mega distorções. É possível aumentar o lucro no curto prazo economizando em itens que causarão danos só no longo prazo, como não fazer a manutenção periódica dos equipamentos, trocar mão de obra cara por mais barata, rebaixar a qualidade do produto, continua vendendo, mas vai queimando a marca. Economizar na segurança ambiental é uma típica manobra para aumentar o lucro no curto prazo, a custo do longo prazo...

Esse é o típico capitalismo AMBEV: padronizar todas as cervejas, só muda o rótulo, o gosto é o mesmo. Isso faz cair o custo por causa dos mega volumes de uma fabricação uniforme, abrindo espaço para centenas de fábricas de cervejas artesanais, porque o consumidor não quer o mesmo paladar padronizado. Isso é o capitalismo financeiro, os controladores da AMBEV são todos financistas e não industriais, heróis do capitalismo de corte de custos até o osso.

Hoje, firmas como a BHP e a Vale são controladas por fundos e não por pessoas. Os fundos querem taxas de retorno, é preciso pressionar os executivos. Estes, encostados na parede, cortam custos essenciais para fazer subir a taxa de retorno. Esse capitalismo deixa destroços pelo caminho, no limite vão acabar com o emprego e a sustentabilidade do planeta. O caso SAMARCO pode ser um dos maiores símbolos desse sistema que gera sua própria autodestruição.



ADENDO DE COMENTARISTAS 
Quem vai defender os capitalistas?... (rdmaestri)

A questão básica do capitalismo com o nível de concentração de renda que se está chegando é simples: Quem vai defender os capitalistas?

Quando no meio da guerra fria lá pela década de 60 havia no mundo uma classe média que não era muito numerosa mas era estatisticamente significativa. Esta classe média abanava para o operariado industrial da época uma perspectiva de ascensão social. Este operariado que outros chamam de proletariado viam ao longe, embalados por uma propaganda de provável sucesso futuro, uma visão de futuramente seus filhos ou netos virem a pertencer a pequena mas brilhante aos olhos de todos (classe média) uma prosperidade como nunca vista na face da Terra. Uma casa, uma máquina de lavar roupa, uma TV ou mesmo um pequeno automóvel era o sonho que grande parte dos que sustentavam a ideia de prosperidade capitalista,

Porém com o tempo os bons e prósperos empregos industriais e mesmo os empregos nos outros setores, vem minguando e desaparecendo. Temos uma população mais educada, temos uma população mais informada, porém esta população com nível superior hoje provavelmente ganha menos do que seus pais que talvez possuíssem o primeiro grau incompleto.

Agora se põe o seguinte dilema, qual a esperança e qual o futuro que vão prometer a esta imensa massa de desempregados ou subempregados? Pois se não for prometido nada, rapidamente eles se darão conta que a farsa acabou.

Durante anos a fio, o último suspiro teórico do capitalismo, o neo-liberalismo propagandeou a volta ao passado como a grande solução, ou seja, a volta as relações pré-industriais de relações de trabalho. Mesmo com toda esta propaganda nem aqueles que tem ou tiveram alguma chance de surfar na onda do último modismo do capitalismo não estão acreditando mais.

Talvez tenhamos, da mesma forma que os neo-liberais recuperaram as bandeiras da miséria como a solução para a pobreza, recuperar as velhas bandeiras guardadas no fundo dos armários e no fundo dos corações, de dar como solução a pobreza não a riqueza ao custo dos outros, mas a igualdade e a vontade de marchar para uma nova sociedade.

Cachorros velhos não apreendem truques novos, mas cachorros velhos que nunca puderam mostrar os seus velhos truques talvez esteja na hora de mostrá-los.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Barragens, tanques e açudes



  •  a negligência, não apenas da Samarco, a dona das barragens e a autora dos rejeitos que vazaram, mas de todos os envolvidos na cadeia da mineração, dentro e fora do governo.
  • o tsunami de Mariana é produto dos homens, combinação de erros e negligências, soma de deveres que não foram cumpridos e obrigações que não foram respeitadas.
  • achando que a tragédia será minorada pela multa que aplicará, o governo federal a calculou em 250 milhões de reais. Anunciou de boca cheia a punição.



por Lucio Flávio Pinto, em seu blog

Logo em seguida ao rompimento das duas barragens de rejeitos de minérios em Mariana (Minas Gerais). no dia 5, a Vale informou que realizou, no fim de semana seguinte, “uma verificação detalhada das condições estruturais de 115 das barragens mais relevantes da empresa”.

Nessa inspeção, diz ter vistoriado todos os nove componentes dessas barragens e que “nenhuma alteração foi detectada”. Mas admitiu que só concluiria a checagem “nos próximos dias”. Não voltou mais ao assunto nem foi cobrada pela imprensa.

Segundo a Agência Nacional das Águas, apenas 5,7% (856) das 15 mil barragens existentes no Brasil foram vistoriadas entre 2012 e 2014, das quais apenas 14% têm nível de risco identificado. A maioria dessas estruturas (89%) é para uso múltiplo de água; 5% para contenção de rejeitos de mineração; 4% para geração de energia; e 2% para contenção de resíduos industriais. A ANA admite que as autoridades não conhecem danos em caso de acidentes na maioria das construções desse tipo.

O controle dessas barragens é mínimo, mas já foi muito pior, segundo a ANA: no ano passado o número de vistorias cresceu 83% em relação a 2013. A agência diz que a atenção vem se acentuando nos últimos anos, mas pelo histórico de indiferença, ignorância e negligência, não é suficiente para dar à sociedade uma segurança qualquer diante de acidentes mais graves, como o de Mariana.

Além disso, a elevação da quantidade de vistorias foi descompensada pela queda dos investimentos federais em operação, manutenção e recuperação de barragens em 2013 e 2014 os recursos permaneceram estáveis, sofreram redução de 60% em relação a 2012.

Segundo a ANA, o ano de 2014 foi marcado como o de maior número de acidentes desde 2011, quando teve início do acompanhamento realizado pela agência.

O que assusta ainda mais é que no setor mineral a Samarco, dona das duas barragens que se romperam, vinha sendo considerada uma das melhores no trato com o meio ambiente. O que esperar então das piores?

O último relatório da ANA, de 2014, informa que entre as barragens com risco conhecido, 27,5%, ou 577 unidades, têm alto risco, definido conforme suas características técnicas, como estado de conservação e atendimento ao Plano de Segurança da Barragem. Apenas 5,6% das barragens cadastradas têm planos de emergência feitos.

Para estabelecer um padrão elementar de segurança para o perigo dessas barragens espalhadas pelo país, os governos, cada um deles na sua esfera específica (mas cumulativa e conflitante) de competência precisaria ter uma estrutura capaz de fazer o que a Vale diz ter realizado em suas 115 barragens, dentre as quais algumas devem ser das maiores do Brasil.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Retrato dos tempos que correm - Significado e perspectivas da crise atual


por Fabio Konder Comparato, pescado no Carta Maior

Empregamos a todo tempo a palavra crise para caracterizar o lamentável estado atual de nossa política e de nossa economia, sem entender a semântica original do vocábulo. Ele foi criado por Hipócrates, a partir do verbo grego krito, kritein, cujos sentidos principais no grego clássico eram de separar ou discernir, de um lado, e de julgar ou decidir, de outro. Para o Pai da Medicina, krisis designava o momento preciso em que o olhar justamente dito crítico do esculápio conseguia discernir o tipo de doença que acometia o paciente, permitindo-lhe fazer com precisão o diagnóstico e o prognóstico.

Infelizmente, temos sido incapazes de entender que sofremos de uma moléstia que não é passageira nem local. Muito pelo contrário, ela não surgiu nem tende a desaparecer de uma hora para outra no Brasil. Tampouco foi provocada por determinado partido, ou por este ou aquele político que ocupou ou ocupa atualmente o cargo de Chefe de Estado.

Analisemos, pois, em primeiro lugar, a moléstia no âmbito mundial, para, em seguida, procurarmos diagnosticá-la na sociedade brasileira, sugerindo afinal um tratamento adequado.

I - A Consolidação Mundial do Capitalismo Financeiro

A doença – séria e duradoura – cujos sintomas vieram agora à luz do dia, afeta na verdade o mundo inteiro e não pode ser tratada superficialmente; como se, diante de uma infecção generalizada, o tratamento do paciente se limitasse a ministrar analgésicos para simples dor de cabeça.

Vivemos hoje – nós e TODOS os demais povos na face da Terra – as graves consequências da passagem histórica do capitalismo, como primeira civilização mundial da História, da sua fase industrial para a fase financeira (1) - ver notas no final do post. Se até o último quartel do século passado os empresários industriais comandavam a vida econômica, hoje são os bancos que ditam as regras, não só nessa área, mas também no campo político.

Em 2011, três matemáticos do Instituto Politécnico de Zurique, listaram os 50 maiores conglomerados empresariais do mundo. Desse total, 48 eram grupos financeiros (2).

Já foram identificados 28 bancos, que controlam atualmente os mercados mundiais de câmbio, juros e valores mobiliários (3). Até a generalização das políticas neoliberais nas últimas décadas do século XX, os bancos dependiam dos Estados, que fixavam as taxas de juros e de câmbio. Hoje, tais valores são fixados pelos próprios bancos operadores, que impõem suas decisões de mercado aos bancos centrais, doravante autônomos em relação aos governos.

Recentemente, uma ONG muito respeitada no mundo inteiro, a Global Policy Forum, afirmou em relatório que a ONU é manipulada por empresas transnacionais, algumas das quais violam abertamente direitos trabalhistas e normas ambientais.

Mas o neoliberalismo global foi ainda mais além no campo da desregulamentação da atividade financeira empresarial. A fim de conter os efeitos da depressão econômica que tomou conta do mundo inteiro com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, os Estados Unidos haviam editado em 1932/1933 o Glass-Steagal Act, que separou as atividades dos bancos de depósito das dos bancos de investimento. Pois bem, em 1999 aquela lei foi revogada nos Estados Unidos, sendo concomitantemente abolida, nos demais países do globo, a referida separação entre aquelas atividades bancárias. Com isto, voltou-se a permitir aos bancos a utilização dos depósitos monetários de seus clientes para negócios deles próprios, bancos, inclusive a especulação nos mercados de valores mobiliários, de câmbio ou de mercadorias.

Como sabido, a partir da Revolução Industrial em meados do século XVIII, a riqueza mundial cresceu em ritmo e intensidade jamais vistos na História. Esse crescimento, porém, vem recuando nitidamente no mundo todo, desde a segunda metade do século XX. Na China, o país de mais acelerado crescimento econômico das últimas décadas, a atividade industrial atingiu em 2015 o menor nível em 78 meses.

Os efeitos dessa desindustrialização geral já se sentem nitidamente no mercado de trabalho. Segundo relatório recente da OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, foram recenseados 47 milhões de desempregados nos 34 países que dela fazem parte.

É bem provável que se instaure desde logo, no mundo todo, uma fase de estagnação econômica generalizada, justamente devido à implantação mundial do capitalismo financeiro, em substituição ao capitalismo industrial. E a razão é óbvia: enquanto a essência da atividade industrial é a produção de bens, a atividade financeira por si mesma não produz nenhuma riqueza concreta de base.

Como se vê, a celebrada eficiência do sistema capitalista na produção de riqueza vê-se hoje totalmente desmentida. Com isso, a fantástica desigualdade social, por ele criada no mundo inteiro, já não tem a menor condição de ser reduzida, menos ainda eliminada. No início da Revolução Industrial, estimou-se que entre o povo mais rico e o mais pobre do planeta a diferença em termos econômicos era de 2 para 1; atualmente, ela é estimada em 80 para 1! Levando-se em conta o crescimento inexorável da população mundial e a estagnação geral da produção de bens, notadamente de alimentos, não é difícil visualizar o prognóstico sombrio de Malthus, feito no final do século XVIII. E as vítimas serão, como sempre, as camadas mais pobres do mundo todo.

Ora, o que se constatou recentemente é que o capitalismo financeiro tem contribuído para acelerar o ritmo dessa desigualdade. Assim é que o banco Crédit Suisse, ao publicar em 2010 o seu primeiro relatório sobre a riqueza global (Global Wealth Report), estimava que os 50% mais pobres da humanidade possuíam menos de 2% dos ativos mundiais. Pois bem, no relatório do corrente ano de 2015, o Crédit Suisse constatou que a metade mais pobre da humanidade possui menos de 1% da riqueza planetária.

Por incrível que pareça, se a grande depressão de 1929 provocou uma redução da desigualdade econômica mundial, tendo afetado todas as classes sociais, a crise de 2007/2008, da qual ainda não logramos sair, provocou um efeito contrário. Exemplo: nos EUA, o 1% mais rico da população absorveu 95% da riqueza produzida após a crise.

As instituições financeiras, como se disse, por si sós não produzem riqueza alguma. Na melhor das hipóteses, elas servem de alavanca auxiliar da produção, mediante o serviço de crédito.

Acontece que, no presente, os bancos passaram a concentrar cada vez mais suas atividades nos negócios puramente especulativos, reduzindo drasticamente o serviço de crédito. A lucratividade de tais negócios especulativos é muito maior. Mas, em compensação, eles suscitam um enorme risco de súbito e generalizado colapso, como se viu em 2008 com a brusca depreciação dos chamados derivativos, neologismo criado nos Estados Unidos para designar operações de crédito bancário, que servem de lastro à emissão de valores mobiliários em cascata, cujo valor não é contabilizado no balanço dos bancos. Estimou-se que em 2013 o valor total dos derivativos negociados no mercado mundial era de 710 trilhões de dólares; isto é, cerca de dez vezes o valor da produção anual de bens e serviços no mundo todo!

Outro fator que veio reforçar a generalizada submissão dos Estados, no mundo inteiro, à dominação dos bancos foi a progressiva substituição dos tributos pela dívida pública, no financiamento das despesas estatais. Os papeis dessa dívida, como não poderia deixar de ser, são tomados pelos bancos e repassados aos investidores privados. Para estes, tal operação financeira provocou de imediato um duplo e substancial benefício: de um lado, o não-aumento (ou mesmo a redução) da carga tributária; de outro, a oportunidade de ganhos suplementares pelo recebimento de juros da dívida pública. Em pouco tempo, os empresários industriais, que já haviam se deixado seduzir pela especulação com valores mobiliários, foram se transformando, total ou parcialmente, em rentistas.

A depressão global desencadeada em 2008 com o colapso do mercado de derivativos levou os bancos centrais dos Estados Unidos e da União Europeia, a fim de evitar as insolvências em cascata, a socorrer os bancos privados, tomadores daqueles papeis ditos “tóxicos”. Esse financiamento excepcional, como era de se esperar, não foi feito com recursos orçamentários, mas sim com a emissão de novos papeis da dívida pública. Para se ter uma ideia do que isso representa como risco de colapso do sistema econômico mundial, basta considerar os seguintes dados, recentemente divulgados pelo Fundo Monetário Internacional: o somatório da dívida pública dos Estados desenvolvidos do planeta, o qual em 2001 representava 75,8% da média do PIB total desses países, passou a corresponder em 2014 a 118,4% dele.

Inútil dizer que os tomadores de tais papeis de dívida fazem parte do sistema bancário privado, e que este exerce enorme pressão sobre os Estados emitentes, a fim de que os juros não sejam reduzidos e, sobretudo, para que os devedores públicos não deixem de honrar os valores do principal no vencimento.

Em suma, os Estados, que até o final do século XX eram reguladores das atividades dos bancos privados, tornaram-se atualmente seus reféns. O caso muito comentado da Grécia é o melhor exemplo. Feitas as contas, estima-se que os bancos alemães, tomadores dos papeis da dívida estatal grega desde 2010, obtiveram até 2015 um lucro de 100 bilhões de euros. Será ainda preciso explicar por que razão a Alemanha foi o Estado mais intransigente na negociação da dívida grega no Conselho da Europa?

Vale a pena salientar tais fatos, pois eles explicam a natureza e as perspectivas de solução da atual crise política e econômica brasileira, como reflexo da crise global. Encontramo-nos, hoje, inteiramente mergulhados no capitalismo financeiro, cuja dominação é mundial.

II - A Submissão do Brasil ao Capitalismo Financeiro Mundial

Em toda organização política, os principais fatores estruturantes sempre foram a relação de poder e a mentalidade coletiva, isto é, o conjunto de valores e costumes vigentes no seio do povo. Durante milênios, ambos esses fatores foram estritamente moldados pela religião. A partir do início da era moderna, porém, a adesão a uma fé religiosa foi perdendo importância na vida dos diferentes povos. Com o advento da sociedade massas, no final do século XIX, iniciou-se uma fase jamais vista na História, fase essa na qual a mentalidade coletiva passou a ser formada pelo sistema de poder político, de caráter não religioso na maior parte do mundo.

Com efeito, ao se consolidar mundialmente a civilização capitalista em fins do século passado, a relação íntima entre esses dois fatores estruturantes da organização política foi radicalmente alterada. Desde então, o poder político passou a plasmar a mentalidade coletiva, utilizando-se, para tanto, do controle dos meios de comunicação de massa, o qual é exercido hoje, na quase totalidade dos países do globo, por oligopólios empresariais.

Pois bem, entre nós, desde os primórdios da colonização portuguesa, o poder político efetivo – diferentemente do poder oficial, isto é, do poder legitimado pelo ordenamento jurídico – nunca pertenceu de fato, nem mesmo parcialmente, ao povo. Ele foi exercido, sem descontinuar, por dois grupos intimamente associados: os potentados econômicos privados e os grandes agentes estatais. Nossa oligarquia sempre apresentou, assim, um caráter binário: quem exerce o efetivo poder soberano não é apenas a burguesia empresarial, como sustentou a análise marxista, nem tampouco unicamente a burocracia estatal, como pretenderam os seguidores de Max Weber, a exemplo de Raymundo Faoro (4); mas ambos esses grupos, conjuntamente.

Esta, na verdade, a principal causa da corrupção endêmica que vigora no Brasil no plano estatal. Os grandes empresários e os principais agentes do Estado – incluídos agora nessa categoria os administradores de empresas estatais – sempre estiveram convencidos de que podem dispor, em proveito próprio, dos recursos financeiros públicos. “Nem um homem nesta terra é republico, nem zela e trata do bem comum, senão cada um do bem particular”, já afiançava o primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, em livro editado originalmente em 1627 (5).

Essa oligarquia binária não é, na verdade, uma originalidade brasileira, mas sim um traço essencial do sistema capitalista. Como salientou Fernand Braudel, que lecionou na Universidade de São Paulo logo após a sua fundação, o capitalismo só triunfa quando se une ao Estado, quando é o Estado (6).

No curso de nossa História, tivemos uma sucessão de potentados econômicos privados, aliados aos principais agentes do Estado (inclusive magistrados): senhores de engenho; traficantes de escravos; grandes fazendeiros, sobretudo na região sudeste até a Revolução de 1930; empresários industriais; e, finalmente, controladores das grandes instituições financeiras.

Na verdade, o fato mais relevante da economia brasileira nas últimas décadas tem sido o ritmo acelerado do processo de desindustrialização. Para se ter uma ideia disto, é importante considerar que em 1995 a produção industrial representava 36% do PIB brasileiro, quando vinte anos após, segundo dados apurados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, ela não ultrapassa 9%; ou seja, um quarto daquela cifra.

Com isso, como não poderia deixar de acontecer, iniciou-se em 2015 um período de recessão econômica cuja conclusão é difícil de prever-se, repetindo-se assim, certamente de maneira agravada, o episódio ocorrido em 1930 e 1931, como consequência da depressão mundial provocada pelo crash da Bolsa de Nova York em 1929.

Ainda como efeito da desindustrialização do país, o desemprego explodiu. Em julho de 2015, o total de desempregados no país somava 8,6 milhões, o número mais alto já assinalado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). E isto, considerando-se apenas os trabalhadores regulares, com carteira assinada.

Intimamente ligado a esse dado é o fato de que, atualmente, meio milhão de brasileiros vive sem cobertura de plano de saúde, como informou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Na verdade, o Brasil encontra-se hoje nas mãos dos banqueiros. Os cinco maiores bancos (Itaú Unibanco, Bradesco, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Santander) controlam 86% do total dos ativos financeiros; quando em 1995 o montante desses ativos por eles controlados era de 56%. No primeiro semestre de 2015, enquanto o Produto Nacional Bruto entrava em recessão, o lucro líquido contábil dos quatro maiores bancos do país crescia 46% em relação ao mesmo período do ano anterior.

O desinvestimento, tanto público quanto privado, é um dos piores resultados da entrega total da economia brasileira ao controle das instituições financeiras, nacionais e estrangeiras. Em 2014, o investimento de empresas estatais no Brasil foi o menor em três anos. Ora, o ajuste fiscal proposto pela Presidente Dilma Roussef em seu segundo mandato veio estender esse encolhimento ao vasto setor das políticas sociais. Assim é que o orçamento fiscal da União Federal para 2016, já em si mesmo profundamente austero nessa área, acabou sofrendo no curso de 2015 um corte de verbas em nada menos do que 7 programas sociais, notadamente educação e saúde: um bilhão de reais no primeiro setor e mais de um bilhão no segundo.

Em compensação, como é óbvio, o governo federal não mexe no volume da dívida pública, nem reduz a taxa da Selic (sistema especial de liquidação e custódia), ou seja, o índice pelo qual são balizados os juros cobradas pelos bancos. Ora, do total do déficit orçamentário da União Federal em 2015, 96,9% são representados pelos juros acumulados da dívida e apenas 3,1% pelo excesso de despesas primárias em relação aos créditos!


III - Sugestões para o Enfrentamento da Morbidez Generalizada


Diante de tudo o que se acaba de expor, surge inevitavelmente a indagação feita no livro publicado 1902 por um certo Vladimir Illich Ulianov, mais conhecido sob o pseudônimo de Lenin: – Que Fazer?

Comecemos por reconhecer o fato de que a solução revolucionária, por ele apresentada como a mudança súbita e radical do poder na sociedade, modelo ao mesmo tempo tão louvado e temido no mundo todo até há pouco, já não convence ninguém. É que esse tipo de ruptura brusca da ordem social não só absolutiza o poder estatal, como deforma gravemente a mentalidade coletiva, suprimindo a consciência individual e social dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Foi o que se viu, de maneira dramática, com as revoluções bolchevique e maoísta, as quais deram origem aos regimes comunistas na Rússia e na China no século XX. Aliás, com a derrocada de ambos no último quartel do século, voltaram à tona, nos dois países, as velhas tradições de autocracia burocrática, doravante ligadas à integral adoção do sistema capitalista, contra o qual foram feitas as revoluções.

Se quisermos, pois, iniciar o tratamento da moléstia que tomou conta da humanidade toda na época contemporânea – o capitalismo financeiro –, precisamos mudar de modo substancial e permanente as instituições de poder, bem como reformar a mentalidade coletiva, com base em novos valores que a elas se adequem. E tais valores, escusa dizer, são o oposto do individualismo privatista, próprio do capitalismo.

Ora, isto não se faz e nunca se fez da noite para o dia. Em geral, tem-se em matéria de revoluções o modelo clássico, que é o da França no século XVIII. Mas o que se deixa na sombra, ao assim considerar, é o fato de que a preparação da Revolução Francesa principiou pelo menos dois séculos antes, com a mudança na visão de mundo, provocada pela Reforma Calvinista e a chamada Revolução Científica de Copérnico, Tycho Brahe e Kepler, seguidos por Galileu e Isaac Newton.

Ensaiemos, pois, uma breve resposta, primeiro no plano mundial; depois, no quadro político e econômico brasileiro.

IV - O tratamento da doença no plano mundial

A organização, ou melhor, desorganização do poder capitalista no mundo todo – não só o poder propriamente político, quanto o econômico, ambos complementados pelo poder ideológico – manifesta hoje sinais evidentes de impotência para enfrentar os problemas que se avolumam perigosamente, e que põem risco a sobrevivência da humanidade: o terrorismo, notadamente de índole religiosa; a destruição sistemática da biosfera; a probabilidade crescente de um colapso econômico mundial; entre outros.

Ao mesmo tempo, a ética própria do capitalismo, a qual logrou moldar a mentalidade coletiva contemporânea em todos os povos da Terra – a saber, a realização do interesse material como finalidade última da vida – não somente denota uma incapacidade crescente para fazer face a tais problemas, como revela-se ainda um perigoso estimulante deles.

Mas como proceder?

No tocante à organização do poder mundial, começamos a sentir crescentemente o mesmo estado de espírito, que tomou conta da maioria dos governantes logo após o término da Segunda Guerra Mundial, e que propiciou a fundação da Organização das Nações Unidas em 1945, conforme enunciado na introdução da Carta de São Francisco. Ou seja, a necessidade de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra [...], reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e mulheres, assim como das nações grandes e pequenas [...], promover o progresso social e melhores condições de vida, dentro de uma liberdade mais ampla”.

Para alcançar tais objetivos, o caminho a ser seguido só pode ser a construção de uma organização política mundial, fundada nos princípios fundamentais da República, da Democracia e do Estado de Direito. A saber:

1) a supremacia do bem comum da humanidade, em relação ao interesse próprio de qualquer povo em particular;
2) a atribuição da titularidade do poder supremo ao conjunto dos povos, reunidos em federação no plano mundial;
3) o estabelecimento de controles efetivos ao abuso de poder em todos os níveis, à luz do princípio supremo do respeito à dignidade humana.

No concernente à superação da ética do egoísmo dito esclarecido, própria da civilização capitalista, é alvissareiro constatar que, atualmente, os líderes de algumas das maiores religiões do mundo vêm sublinhando a necessidade de se evitar que o princípio fundamental do altruísmo, comum a todas elas, venha a ser ensombrecido pela repetição mecânica de asserções dogmáticas (7).

Em suma, importa agora mais do que nunca, no início deste novo milênio, revitalizar em todos os povos as duas Regras de Ouro, enunciadas pela primeira vez no chamado Período Axial da História (8), quais sejam:

1) não fazer aos outros o que não se quer que eles nos façam;
2) fazer o bem a todos, sem distinção de pessoas, sejam elas desconhecidas, amigas ou inimigas.

V - Como iniciar no Brasil o tratamento da doença

Para voltar ao conceito original de crise, excogitado por Hipócrates, o que importa não é fixar a atenção sobre o bom ou mau desempenho de nossos governantes para enfrentar os problemas socioeconômicos que se acumulam. Tal equivaleria a cuidar de um sintoma superficial da doença, sem diagnosticar sua verdadeira causa, que é a submissão do nosso país à soberania do capital financeiro, nacional e internacional.

Não é mister grande acuidade de espírito para perceber que esse enfrentamento equivale a percorrer um caminho longo e repleto de dificuldades de toda sorte. Ele não se faz da noite para o dia, nem com base em improvisações.

É indispensável e urgente atuar em duas frentes, intimamente relacionadas: a vida política e a vida econômica.

No campo político, as mudanças devem ocorrer em relação aos dois fatores fundamentalmente estruturantes: a relação de poder e a mentalidade coletiva.

O poder político, no Brasil, como acima salientado, sempre foi oligárquico, sendo exercido conjuntamente, em proveito próprio, pelos potentados econômicos privados e os grandes agentes estatais. Ora, atualmente, os titulares desse poder soberano acham-se na incapacidade absoluta de enfrentar a crise, pois são eles que as engendraram e são eles os únicos que dela se beneficiam. Seria ridículo esperar que as instituições financeiras aceitassem voluntariamente submeter-se ao poder regulatório do Estado, deixando que este voltasse a fixar as taxas de juros e câmbio a serem observadas no mercado, e a separar bancos de depósito e bancos de negócio, como dispôs o Glass-Steagall Act de 1933 nos Estados Unidos, editado em plena crise provocada pelo crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Urge encontrar um caminho para impor tais medidas aos atuais “donos do poder”.

No terreno propriamente político, é da mesma forma urgente começar a introduzir em nosso ordenamento jurídico os mecanismos institucionais da democracia direta. O plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa, declarados no art. 14 da Constituição como instrumentos da soberania popular, acham-se até o presente – mais de um quarto de século após a promulgação da Lei Maior – totalmente bloqueados pelo controle oligárquico.

Igualmente no campo político, permanece inquebrantável o oligopólio empresarial dos meios de comunicação social – grande imprensa, rádio e televisão –, utilizados como instrumentos do poder ideológico capitalista. A Constituição Federal, em seu art. 220, § 5º, declara que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Mas até hoje o Congresso Nacional não editou lei para regular essa proibição constitucional (9).

A mesma falta de regulação legislativa ocorre com a norma do art. 221, inciso I da Constituição, segundo a qual “a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão ao princípio de preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”. Escusa frisar que, numa sociedade de massas como a existente atualmente no mundo inteiro, a intercomunicação do povo por intermédio dessas instituições, livre de censuras e propagandas ideológicas dissimuladas, é indispensável para que o regime democrático possa funcionar a contento; sobretudo em sociedades profundamente desiguais sob o aspecto socioeconômico, como a brasileira.

Em matéria propriamente econômica, assinalo algumas medidas que me parecem indispensáveis para enfrentar a crise atual.

Importa assim, antes de tudo, dar início ao processo de reindustrialização nacional, por meio de estímulos fiscais e econômicos.

Urge também regular o endividamento público. Assinalo, a esse respeito, que o art. 52, inciso VI da Constituição dispõe ser da competência privativa do Senado Federal a fixação dos limites globais do montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; mas sempre por proposta do Presidente da República. Inútil dizer que, submetidos à dominação bancária, nossos Chefes de Estado têm se revelado incapazes de atuar nessa área de acordo com os verdadeiros interesses nacionais.

Assinalo, ainda, que o art. 163, inciso III da Constituição determina competir à lei complementar dispor sobre a dívida pública externa e interna, nela incluída a das autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo Poder Público. Até hoje, tal lei não foi editada.

Eis, em resumo, o que me parece essencial para darmos início ao processo de mudança em profundidade de nossa vida política, econômica e social, no rumo de uma sucessão da vigente civilização capitalista, por uma civilização mundial realmente humanista.

(1) Procurei estudar o capitalismo sob o aspecto global de uma civilização, e não apenas como sistema econômico, em A Civilização Capitalista – Para compreender o mundo em que vivemos, 2ª edição, 2013, São Paulo, Companhia das Letras.
(2) Stefania VITALI, James GLATTFELDER, Stefano BATTISTON, The network of global corporate control, PLOS ONE, [S.I.], Oct. 2011.
(3) Sobre o assunto, o economista francês François Morin vem fazendo análises percucientes, com a previsão de um novo cataclismo financeiro, agora de proporções catastróficas. Cf. Un monde sans Wall Street? (Éditions du Seuil, 2011); La grande Saignée – Contre le cataclysme financier à venir (Lux Editeur, 2013); L’Hydre mondiale – L’oligopole bancaire (Lux Editeur, 2015).
(4) Cf. sua obra já clássica, Os Donos do Poder – Formação do patronato político brasileiro, 3ª edição revista, Editora Globo, 2001.
(5) História do Brasil 1500 – 1627, Livro Primeiro, Capítulo Segundo.
(6) La dynamique du capitalisme, Éditions Flammarion, Paris, 2008, p. 68.
(7) Vejam-se, a esse respeito, as considerações expostas pelo atual Dalai Lama em seu livro Ethics for the New Millenium, Riverhead Books, Nova York. Atente-se, igualmente, para os escritos e declarações públicas do Papa Francisco.
(8) Foi o período assim chamado por Karl Jaspers (Vom Ursprunt und Ziel der Geschichte, 1ª ed. Em 1949), compreendido entre os séculos VIII e II a.C., em que viveram alguns dos maiores sábios de todos os tempos: Buda na Índia, Lao-Tsé e Confúcio na China, os grandes profetas de Israel, os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles na Grécia.
(9) Tive a honra, em 2011, de patrocinar no Supremo Tribunal Federal, duas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão. Tais ações receberam parecer em grande parte favorável da Procuradoria-Geral da República em 2013, mas continuam aguardando ingresso em pauta de julgamento.