28 de junho último foi o sexto aniversário do golpe militar em Honduras – o dia em que um governo de esquerda democraticamente eleito foi derrubado por uma camarilha de generais, políticos de direita e latifundiários apoiados e treinados pelos Estados Unidos. Seria mais correto chamar aquilo de “Golpe Silencioso”, principalmente por ter acontecido sem repercussão da mídia, que o cobriu apenas para espalhar mais desinformação que verdades. Hoje, seis anos depois (e depois da perda de vidas inocentes e de bilhões de dólares), este vergonhoso momento da história recente permanente amplamente esquecido.
- Talvez por conta da persistente euforia sentida pelos não conservadores e pelos chamados progressistas nos meses que se seguiram à eleição e à posse de Obama.
- Talvez por conta da ainda recente crise econômica e da tormenta do resgate financeiro.
- Talvez simplesmente por conta do velho desrespeito imperialista e neocolonial pela América Latina e pelos direitos dos povos suficientemente desgraçados para viver no “pátio traseiro dos Estados Unidos”.
Seja qual for a razão, o fato é que o governo Obama e todos os que apoiaram o golpe naquele momento e agora são cúmplices da presente e contínua tragédia social, econômica e política de Honduras.
Mas por que trazer isso à tona agora ao invés de se limitar a celebrar o aniversário do golpe?... Pra começo de conversa, porque um dois principais participantes e beneficiários do golpe foi a provável candidata do Partido Democrata às presidenciais: Hillary Clinton.
Também porque, longe de ser um episódio discreto do sórdido passado imperialista dos Estados Unidos, o golpe e seu legado continuam a ser as forças motoras da sociedade e da política em Honduras. Seus participantes e beneficiários estão no governo ou passaram ao setor privado e continuam a se enriquecer em detrimento dos pobres e dos trabalhadores do país.
O governo golpista de Honduras continua engajado numa brutal campanha de limpeza étnica contra comunidades minoritárias para seu próprio benefício e para o benefício de seus patrocinadores dos Estados Unidos e de outras partes do mundo.
Talvez o mais importante nisso tudo seja o fato de que o golpe de 2009 revela até que ponto os Estados Unidos permanecem um poder imperial e neocolonial na América Latina e nos refresca a memória quanto ao que países como Venezuela, Bolívia e Equador estão enfrentando. Isso ilustra nos termos mais implacáveis o custo humano das políticas de Washington, não em livros sobre um período histórico, mas em imagens e vídeos de um país hoje sob sua bota. Isso nos recorda o quão real esta luta permanece.
O Golpe e o apoio dos Estados Unidos
Em 2006, a eleição de José Manuel Zelaya, conhecido como “Mel” por seus amigos e apoiadores, foi um divisor de águas na história de Honduras. Um país que, como seus vizinhos, vitimado por uma sucessão de governos de direita patrocinados pelos Estados Unidos, havia finalmente eleito um homem cujas políticas priorizavam o povo e não os interesses empresariais ou militares. Embora originário de uma rica família e apesar de ter sido eleito pelo Partido Liberal, Zelaya deu uma significativa guinada à esquerda depois de assumir suas funções.
Não apenas Zelaya cometeu o pecado mortal de forjar laços com o então presidente Hugo Chávez, sua Aliança Bolivariana para os Povos da América e PetroCaribe, mas ele também desafiou o status quo ao prometer representar os pobres e as classes trabalhadoras num país tradicionalmente dominado por militares e latifundiários.
Como jornalista, autor e ex-conselheiro da Missão Permanente das Nações Unidas, Roberto Quesada disse a
Counterpunch, numa entrevista exclusiva:
Zelaya chegou ao poder montado num partido tradicional, mas ele mudou as políticas do Partido Liberal dele fazendo um partido do povo. Ele transformou o palácio presidencial numa casa do povo... Pela primeira vez, os sem voz foram ouvidos... Ele queria introduzir a Quarta Urna. Pela primeira vez, o povo hondurenho iria decidir sobre uma mudança de constituição, já que aquela de 1982 só favorecia a direita e não os interesses dos hondurenhos e das hondurenhas.
E assim teria acontecido em 2009, em Honduras, um país que, a exemplo da Venezuela, da Bolívia, do Equador, e da pioneira Nicarágua, se libertaria democraticamente da hegemonia corporativa e empresarial dos Estados Unidos. Mas isso era claramente algo que Washington, mesmo com um recém-eleito presidente da “Esperança” e da “Mudança” na Casa Branca, não podia tolerar. E é aí que entra a recém-nomeada Secretária de Estado Hillary Clinton.
Clinton admitiu desde então aberta e descaradamente seu papel central na legitimação, no apoio e no fornecimento de cobertura política para o ilegal e internacionalmente condenado golpe contra Zelaya. Como observou o colaborador de
Counterpunch, Mark Weisbrot, Clinton declarou claramente em seu livro
Hard Choices que:
Nos dias que se seguiram [ao golpe], falei com a Secretária [Patricia] Espinosa no México… Combinamos um plano para restaurar a ordem em Honduras e garantir que eleições justas e livres pudessem ser organizadas rápida e legitimamente, o que tornaria a discutível a questão Zelaya.
No que consistia exatamente o plano? Além de fornecer cobertura diplomática ao não chamar aquilo claramente de golpe de Estado, Clinton apelou para seu velho sócio Lanny Davis e para Bennett Ratcliff, que sussurraram doçuras aos ouvidos direitistas de Washington e de Wall Street, produzindo inclusive um risível
op-ed no Wall Street Journal, abrindo caminho para “eleições” em Honduras, com o objetivo de, como disse Clinton, “tornar a questão Zelaya discutível”.
O próprio Davis explicou isso numa
entrevista dada poucas semanas após o golpe:
Meus clientes representam o CEAL, o Conselho empresarial da América Latina, [seção Honduras]... Eu não represento o governo e não dialogo com o presidente [interino] [Roberto] Micheletti. Meus principais contatos são [os bilionários] Camilo Atala e Jorge Canahuati. Orgulho-me em representar empresários que estão comprometidos com o primado da Lei.
De fato, Davis expôs candidamente seu papel de agente de uma poderosa
oligarquia financeira e de latifundiários que, até a eleição de Zelaya, sempre havia controlado firmemente as rédeas do governo de Honduras.
Essencialmente, Clinton e seu capanga tiveram um papel chave para facilitar um golpe ilegal contra um governo democraticamente eleito em benefício de seus amigos bilionários de Honduras e da agenda geopolítica dos Estados Unidos na região.
Apesar da retórica populista de sua presente campanha presidencial, Clinton tem diligentemente trabalhado em favor da direita, das forças antidemocráticas da América Latina e em favor do Império de maneira geral. É óbvio que nada disso é surpreendente para quem vem acompanhando o que fazem Clinton e o imperialismo estadunidense nesse campo.
Da mesma forma, em nada surpreende o papel dos Estados unidos no treinamento e no apoio aos generais hondurenhos que conduziram o golpe daquela manhã de junho de 2009. Como
observou naquele momento o Observatório da Escola das Américas -
School of the Americas Watch (SOAW):
(...) o golpe de 28 de junho em Honduras foi conduzido pelos graduados da Escola das Américas Gen. Romeo Vásquez Velásquez, chefe do Estado- Maior Conjunto das Forças Armadas de Honduras, pelo Gen. Luis Prince Suazo, chefe da Força Aérea…
O Col. Herberth Inestroza, Procurador das Forças Armadas, veterano da Escola das Américas, justificou o golpe militar e declarou numa entrevista ao
Miami Herald:
(...) seria muito difícil para nós, com o treinamento que tivemos, estar em relação com um governo esquerdista. Isso é impossível.
Herberth Inestroza também confirmou que a decisão de dar o golpe partiu das Forças Armadas. Segundo informação que o Observatório da Escola das Américas obteve do governo dos Estados Unidos graças à Lei de Liberdade de Informação, Vásquez estudou na Escola das Américas pelo menos em dois períodos: primeiramente em 1976 e depois em 1984… O chefe da Força Aérea, General Luis Javier Prince Suazo, estudou na Escola das Américas em 1996.
A Escola das Américas (desde então rebatizada
Western Hemisphere Institute for Security Cooperation, WHINSEC) é um instituto das Forças Armadas dos Estados Unidos localizado em Fort Benning, Georgia, de infame celebridade por graduar um verdadeiro "quem é quem" entre ditadores militares da América Central e da América do Sul, líderes de esquadrões da morte e outros fascistas de carteirinha que deixaram suas marcas sangrentas em seus respectivos países. Ela já foi chamada de “Escola dos Ditadores” e de “fábrica de golpes de Estado” e tudo indica que Honduras foi a vítima mais recente de seus ilustres alunos.
De fato, não foi a primeira vez que Honduras sofreu esse tipo de ação pois tanto o General Juan Melgar Castro (ditador militar, 1975-1978) e Policarpo Paz Garcia (chefe de esquadrões da morte e depois ditador militar, 1978-1982) foram graduados na Escola das Américas. Nem carece dizer, o legado dos Estados Unidos em Honduras é vergonhosamente sangrento.
Honduras: Pé de apoio das Forças Armadas dos Estados Unidos na América Central
Que ninguém se deixe levar pela crença de que os Estados Unidos deixaram de se envolver militarmente em Honduras depois do golpe de 2009. Com efeito, há apenas duas semanas, as
Forças Armadas dos Estados Unidos anunciaram o envio de um contingente de Marines para Honduras supostamente para “fornecer assistência durante a temporada de furacões”. No entanto, a verdade é que os Estados Unidos estão simplesmente dando continuidade e até expandindo sua parceria militar e fazendo uma ocupação, de facto, de Honduras e de outros países chave na América Central.
Num entrevista exclusiva para
Counterpunch, a coordenadora da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) nos Estados Unidos e membro do Partido Liberdade e Refundação (LIBRE), Lucy Pagoada, explicou sucintamente:
O golpe nos forçou a despertar para a realidade de Honduras. Vivi em Honduras até os 15 anos de idade. Nunca tinha visto meu país tão militarizado quanto se tornou após 2009. Ele foi transformado numa grande base militar financiada pelos Estados Unidos. Eles têm até forças da Escola das Américas por lá. Houve vários níveis de violência e tortura contra a resistência e a oposição desde o golpe.
Segundo Pagoada e outros militantes tanto em Honduras quanto nos Estados Unidos, o país se tornou essencialmente um anexo das Forças Armadas dos Estados Unidos, atuando como um palco para toda uma variedade de operações militares de Washington na região.
Esta conclusão
foi confirmada por um informe do
North American Congress on Latin America (NACLA), que afirma:
O permanente crescimento da assistência estadunidense às forças armadas [de Honduras], [é] um indicador do apoio tácito dos Estados Unidos. Mas o papel dos Estados Unidos na militarização das forças nacionais de política tem sido igualmente direto. Em 2011 e 2012, o Drug Enforcement Administration’s Foreign-deployed Advisory Support Team (FAST)…instalou-se em Honduras para treinar unidades locais de política antidrogas e para ajudar na planificação e execução de operações de interdição de drogas. Apoiados pelos Estados Unidos, helicópteros equipados com armas de alto calibre desenvolvem operações dificilmente distinguíveis de operações militares típicas. Aliás, a população local se refere aos agentes do DEA e da polícia hondurenha como “soldados”.
Segundo o New York Times, cinco “comandos no estilo esquadrão” FAST foram enviados em várias regiões da América Central para treinar unidades locais de luta contra as drogas... Em julho de 2013, o governo hondurenho criou uma nova unidade de polícia de “elite” chamada TIGRES (Tropas de Inteligência e Grupos de Resposta Especial de Segurança). A unidade, que segundo os grupos defensores de direitos humanos é de natureza militar, bem como novas forças de polícia militar, tem recebido treinamento em técnicas de combate tanto pelas unidades de Forças especiais da Colômbia quanto por unidades militares dos Estados Unidos.
Para aqueles que têm um agudo entendimento de como os Estados Unidos apoiaram os esquadrões da morte na América Central nos anos 70 e 80, a descrição acima é de causar arrepios. Essencialmente, as forças militares dos Estados Unidos e seus agentes encobertos fornecem armas, treinamento e coordenam uma grande diversidade de unidades bem treinadas cuja função é aterrorizar comunidades cujo único crime, longe de qualquer envolvimento com drogas, consiste em ser de oposição ao governo ou em ter o azar de estar em terras cobiçadas pelos interesses empresariais apoiados pelos Clinton e seus comparsas.
Obviamente, a presença militar dos Estados Unidos tem uma dimensão regional, na medida em que Washington tenta usar seus recursos para reafirmar ou manter seu controle sobre toda a região, controle este que vinha perdendo desde a eleição de Hugo Chávez há 15 anos e da subsequente ascensão de Evo Morales na Bolívia, de Rafael Correa no Equador e de Daniel Ortega na Nicarágua. Mas, desde uma perspectiva estritamente hondurenha, essa cooperação militar existe para dar aos militares hondurenhos, tanto às forças de segurança quanto à Polícia, o necessário apoio para operações de limpeza étnica e assassinato de opositores políticos para que o país seja seguro para os “negócios”.
A limpeza étnica de Honduras em nome do lucro
As operações militares em Honduras têm como primeiro objetivo enriquecer os oligarcas que governam o país desde a derrubada de Zelaya, em 2009. O objetivo é uma limpeza étnica de primeira ordem, inclusive pela força bruta e pela expulsão, de maneira a liberar as propriedades para sua privatização. Um dos meios através dos quais isso tem lugar é criação das chamadas cidades-modelo, um programa que promove paraísos fiscais para terras roubadas das nações indígenas e privatizadas.
Uma das comunidades mais profundamente afetadas são os Garifuna, uma nação de afro-indígenas, em cujas excelentes terras que se estendem por centenas de milhas ao longo da costa caribenha; o governo corrupto do presidente Hernandez e seus patrocinadores financeiros de Tegucigalpa e dos Estados Unidos pretendem criar uma zona turística milionária.
Uma
reportagem de TeleSur de 2014 informa que a comunidade Barra Vieja Garifuna está ameaçada de expulsão pelo governo hondurenho, que pretende privatizar suas terras em favor do
(...) futuro projeto turístico Bahia de Tela, que prevê a construção de cinco Indura Beach e Golf Resort. Numa aliança com o capital privado, o governo de Honduras detém 49 por cento das ações, enquanto 51% ficam em mãos do setor privado.
A cidade de Nova Iorque
acolhe hoje cerca de 250 000 Garifuna de Honduras, Nicarágua, Guatemala e Belize; eles veem com amargor como suas famílias e amigos que estão em Honduras continuam a enfrentar a perseguição conduzida por governos de direita ao serviço dos interesses financeiros dos Estados Unidos ou de qualquer outro lugar.
Obviamente, os Garifuna não estão sós em sua desgraça, já que muitas outras comunidades indígenas estão enfrentando uma indizível repressão nas mãos do governo militarizado de Honduras e da versão século XXI dos esquadrões da morte.Como relatou Lucy Pagoada em sua entrevista a
Counterpunch:
Margarita Murillo, uma indígena, dedicou sua vida à defesa da terra e de seus trabalhadores. Ela foi assassinada: dispararam-lhe sete balaços em sua casa, no departamento de Yoro... Ela era uma líder da resistência.
Com efeito, o
brutal assassinato de Murillo em agosto de 2014 foi outro pavoroso lembrete da guerra empreendida pelo governo hondurenho contra camponeses e povos indígenas que reagem à sua expulsão pelas elites empresariais.
Murillo, que havia sido recentemente eleita presidente da Asociativa Campesinos de Producción Las Ventanas, era advogada de seus camaradas indígenas e dos pobres; ela havia mediado uma disputa de terras entre famílias locais e um grupo de ricos latifundiários da região. Foi uma execução típica praticada por três mascarados.
O assassinato de Murilo foi muito mais que um simples crime motivado por uma luta fundiária localizada; foi antes uma clara advertência lançada contra o movimento de resistência em Honduras para significar que qualquer esforço organizado para reagir ao governo e aos ricos latifundiários que o apoiam terá de enfrentar a força bruta.
Esse é o tipo de mensagem que o povo de Honduras, particularmente quem viveu nos anos 70 e 80, entende muito bem. De fato, tal violência e o desespero que ela produz levaram muitos hondurenhos, particularmente membros da etnia Garifuna, a buscar uma vida melhor nos Estados Unidos.
Maria Vives é uma assistente administrativa de ministros da
Give Them to Eat ministries of the Bronx Spanish Evangelical Church. Ela disse a
Counterpunch:
Temos sopa de galinha e cestas básicas. Ajudamos pessoas em situação de emergência. Três mulheres Garifuna apareceram no verão passado e expressaram suas necessidades; elas estavam frustradas. Elas haviam sido pegas cruzando a fronteira puseram tornozeleiras nelas. Elas foram algemadas. (...) As pessoas ficaram sabendo que ajudávamos os necessitados e rapidamente apareceram quase 60 mulheres com suas crianças (...) Elas tinham várias razões para deixar Honduras. Por conta da violência, por exemplo: estavam matando muitas pessoas na vizinhança para se apropriar de suas terras. Algumas pessoas estavam apavoradas com medo de que seus filhos se juntassem a gangues. A partir de certa idade, as crianças são recrutadas por essas gangues. Sei de uma mãe que tem um de seus três filhos recrutado por um esses grupos.
A mídia-empresa, quando faz alguma cobertura dessa realidade, sempre fala na “
crise da imigração infantil” de 2014, mas na realidade se trata de uma crise de refugiados. Aquelas crianças, acompanhadas ou não, estavam fugindo precisamente dessa violência que ora descrevo.
Garifuna, membros de outras etnias indígenas ou camponeses, aquelas crianças buscaram refúgio nos Estados Unidos para fugir dos horrores perpetrados contra eles em Honduras. Mas estes horrores, é claro, foram tacitamente aprovados e encobertos pelo governo dos Estados Unidos.
Ao celebrar o sexto aniversário do golpe de 2009 contra o governo legal de Honduras, devemos não apenas reconhecer neste evento outro vil exemplo do imperialismo estadunidense e de seu apoio a governos repressivos na América Latina. Devemos também reconhecer que aquele evento singular desencadeou uma série de eventos que levaram à crise social e política atual de Honduras.
Como nos disse Roberto Quesada:
Não podemos falar do golpe como se fosse algo do passado. O golpe continua e deixa o país num estado caótico.