O vídeo ai de cima correu pelas redes sociais. Os manifestantes passam em frente à casa modesta que ostenta uma faixa de apoio à luta dos professores. Naquele momento estão esparsos, de modo que o vídeo capta a reação, um a um, dos bem nutridos vestindo camisas amarelas da CBF diante da faixa. Xingam, gritam, esbravejam e pouco falta para um pogrom para destruir a casa.
Contra que ou contra quem? Em uma sociedade absurdamente desigual, eles mostram o seu ódio, não contra os de cima, não, por exemplo, contra os especuladores da dívida pública que se apropriam de boa parte da renda nacional parasitariamente. O alvo do ódio, dos esgares de ressentimento, do choro e ranger de dentes é quem está embaixo na escala social ou econômica. Uma faixa de apoio à categoria dos educadores, essencial a qualquer sociedade, que até as pedras das ruas sabem que são maltratados e mal pagos, desencadeia uma pueril associação de ideias que expressa a pobreza do imaginário dessa gente: a esquerda é inimiga e a esquerda está no poder porque os debaixo votam na esquerda. Eles são superiores a essa gente que mora em casas simples, com uma fachada escrito em cima que é um lar, e devem suportar a presidenta que os inferiores elegem.
São os mesmos que nas redes sociais deixam frases como “tem que começar a exterminar essa raça”; “a solução é começar a matar”; “eu quero a cabeça dele. Pago em dólar”; “dá nojo olhar para esse safado. Morre camundongo da caatinga”; “porco sujo que deve ser largado no mato para ser comido vivo pelas onças”; “culpa foi não ter matado a Dilma”; “ a culpa é dos militares. Deveriam ter acabado com toda essa raça de bandidos na ditadura militar”.
Por que esse gente está tão furiosa? O fenômeno é mundial e aqui tem especificidades e cores próprias.
Thomas Pikety, autor de O Capital no século XXI, apontou em entrevista recente a perda patrimonial da classe média como foco de tensões sociais que pode explicar o crescimento da direita e do egoísmo social. Na década de 70, diz ele, esse grupo possuía até 30% do patrimônio total. Hoje está mais próximo de 25%, ao mesmo tempo em que aumenta a concentração de renda nas mãos dos 10% mais ricos. É o que, diz Pikety, pode levar a classe média para a extrema-direita: “quando não conseguimos resolver os problemas sociais de forma tranquila, a tentação é colocar a culpa no outro: trabalhadores, imigrantes, gregos preguiçosos, etc.”.
A análise de André Singer em Os sentidos do lulismo também nos fornece pistas, na mesma direção, para explicar esse cenário. O lulismo favoreceu, em uma ponta, o extrato mais baixo da escala social, o subproletariado, aumentando o seu poder de consumo; em outra ponta, permitiu ou consentiu com a acumulação pelo grande capital. Isto está de algum modo em harmonia com o que diz Pikety. Vemos que no lulismo a classe média não foi convidada para a festa. Ameaçada de perder seus privilégios sociais, extorquida pelos planos de saúde, mordida pelo leão dos tributos que leva mais de 1/3 de seus ganhos – considerando a taxação de sua renda e taxação pelo que consome – pagando escolas com preços abusivos para seus filhos, ela reage instintiva e brutalmente.
Então, não percebe que está sangrando porque não há investimento do Estado e não há investimento do Estado porque 45% do orçamento da União é apropriado pelos de cima por meio do mecanismo da dívida pública.
E nesse momento entrega-se aos instintos mais selvagens e corre para o fascismo. É o que vemos no vídeo: o seu “inimigo” social não é o tubarão que se apropria de recursos gerados por toda a sociedade, mas aquele que mora na casa humilde e coloca na fachada uma faixa de apoio aos mal pagos professores; o “inimigo” é o miserável que é miserável porque é incompetente, não tem mérito e recebe dinheiro do Estado; o inimigo é o haitiano que vem roubar empregos dos brasileiros.
A nau dos insensatos é uma alegoria renascentista que representa a existência humana como um barco que conduz tolos que não sabem de onde vem, para onde vão e não conseguem dar um mínimo de racionalidade a suas vidas. O quadro de Bosch que tem esse nome mostra em primeiro plano duas figuras apalermadas tentando abocanhar um alimento sem perceber que ele vai ser subtraído por ladrões. A alegoria é perfeita para essa estulta classe média que não sabe por onde e por quem está sendo lesada.
A alegoria expressa alguns séculos antes a ideia iluminista de que o mal social decorre da desrazão, do não pensar. No opúsculo O que é o Esclarecimento, (Aufklärung) Kant dizia que o Iluminismo era a saída do homem da menoridade que consiste em não fazer uso do próprio entendimento e deixar-se tutelar. Se lembrarmos que o nazismo galvanizou parte da sociedade alemã afirmando que havia uma conspiração internacional entre as altas finanças controladas pelos judeus e o bolchevismo para dominar o mundo temos a exata dimensão do sentido da afirmação de Kant e do quão longe estamos, mais de dois séculos depois, do ideal iluminista de uma sociedade que se organiza e se conduz por juízos racionais.
Ausência de juízos racionais e fascismo estão sempre associados. Um não vive sem o outro. Não à toa um general franquista, às vésperas da guerra civil espanhola, tentou impedir, em uma cerimônia pública, que o filósofo Unamuno falasse bradando “abaixo a inteligência, viva a morte”.
Abaixo a inteligência, viva a morte é o que move fautores de políticas regressivas, autoritárias, de respostas instintivas, desprovidas de mínima racionalidade. Quando uma parte da sociedade se move para a direita, as consequências sociais são amplas. Não se limitam a aspectos econômicos. Elas se espraiam pelo direito, pela cultura, pelos costumes, pelo clima geral de intolerância que vai tomando a sociedade como uma onda. A insana proposta de redução da maioridade penal é uma boa amostra disto.
Quando bem nutridos manifestantes ensaiam um pogrom contra uma casa humilde vemos que o caldo de cultura do fascismo está pronto e que arriscamos singrar mares embarcados na nau dos insensatos.