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segunda-feira, 26 de maio de 2014

Crack - o que pode-se fazer para avançar neste cipoal?...



por Bruno Paes Manso, em seu blog SP no Divã - Estadão

Conheci pela primeira vez as modestas instalações do programa De Braços Abertos na cracolândia em setembro de 2013, ciceroneado pelo palhaço Fanfarrone (nome artístico do psiquiatra Flavio Falcone, na foto acima). Era um equipamento despretensioso, com televisão e colchões, encravado na rua Helvétia, em frente aos barracos de plástico onde morava parte da população do fluxo. No semestre passado, a instalação funcionou como uma espécie de laboratório social para firmar pactos e ganhar a confiança de lideranças que dariam respaldo à nova fase do programa meses depois. A etapa mais ousada começou em janeiro deste ano. É uma das mais tensas e ricas aventuras políticas do prefeito pelas sombras da cidade – um dos frequentadores recentemente se matou com fogo e gasolina.

O universo que gira em torno do crack e da cracolândia em São Paulo merece atenção especial de Haddad. Foi ele quem chamou o blog SP no Divã para falar do assunto, na quinta-feira. Dois dias antes, o blog já havia acompanhado o prefeito mediando um debate entre especialistas em saúde para discutir sobre drogas e políticas públicas na Frente Nacional dos Prefeitos.

Haddad acredita que a imprensa vem explicando mal o programa De Braços Abertos. “Se for para apanhar, que seja pelo que de fato estou fazendo e não pelo que acham que faço”, diz. Atualmente, Haddad lê o livro do neurologista americano Carl Hart (ver vídeo abaixo), professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, cujas pesquisas ajudaram a quebrar diversos mitos sobre o crack. Esses mitos são inúmeros, basta ver pelos tipos opostos de abordagens nos anúncios abaixo.

Sem alarde, o prefeito vai com frequência nos arredores da Helvétia e Dino Bueno para conversar com os integrantes do fluxo. Desse mergulho no assunto, Haddad fez descobertas importantes, inclusive pessoais, pelo que a conversa deu a entender. As ações do prefeito na região da Luz revelam um pouco de sua essência como político. Mesmo altamente pressionado pelo calendário eleitoral, parece disposto a enfrentar as decisões impopulares. Há um aparente desapego ao cargo que o leva a apostar muitas fichas em suas convicções, uma mistura de coragem e flerte aberto com o suicídio político, quando acha que a escolha vale a pena. É sem dúvida um político raro, já que disposto a fechar os olhos aos conselhos dos marqueteiros, para desespero de muitos aliados.

O blog convida o leitor a conhecer um pouco das descobertas que o prefeito fez na cracolândia e do plano que ajudou a coordenar para o local. Ainda não acho que seja o momento de criticar ou elogiar. Mas de tentar traduzir as ideias por trás do projeto, sem distorce-las. Listo abaixo os cincos principais achados – na minha modesta interpretação – relatados pelo prefeito na entrevista que estão orientando as ousadas ações políticas locais;

1) Quem usa crack tem vontades e faz escolhas. Não são zumbis ou objetos passivos de políticas públicas

Essa primeira descoberta funciona como a estrutura conceitual do programa. Pode parecer algo abstrato, papo de professor, mas garantiu avanços concretos. Parte da ideia de que aqueles que usam crack são capazes de fazer acordos com o poder público. Seis meses antes de começar o programa, lideranças do fluxo foram identificadas. As conversas entre eles e a Prefeitura passaram a tratar das demandas e dos compromissos a serem firmados entre as partes. Os frequentadores locais pediram trabalho, documentos, lugar para dormir – o tratamento de saúde não era a prioridade. Foram oferecidas frente de trabalho a R$ 15 por dia e vagas em um hotel com garantia de privacidade, o que abre para o consumo nos quartos. Em troca do novo lar, os 400 participantes ajudariam a desarmar cerca de 200 barracos que estavam nas ruas da Luz. No dia 15 de janeiro, os barracos foram desfeitos. O acordo inicial servia para estabelecer confiança entre os lados e permitiria compromissos futuros. Permitir que homens, mulheres, crianças e velhos não tenham medo de passar pelo local é uma das metas. “A solução não deve vir dos grandes empreendimentos imobiliários. Mas daqueles que vivem lá”, diz o prefeito.

2) O olhar sanitarista e os erros fatais da política de saturação da cracolândia em 2011

Com o avanço do debate da descriminalização do consumo de drogas, um certo consenso passou a apontar para o conclusão de que o dependente era um doente a ser tratado pela saúde. Essa visão partia, na verdade, de uma ideia simplista: enxerga o médico como uma espécie de Deus Todo Poderoso, capaz de curar o “doente” graças aos seus conhecimentos.

“Há um ponto de tangência entre a visão sanitarista e a higienista. A sanitarista trata quem usa o crack como paciente, que deve ser cuidado pelo médico. A higienista o trata como impaciente, a ser tratado pela segurança pública”.

Nos dois casos, quem usa crack é visto como um objeto passivo das políticas públicas, sem voz, vontade, incapazes de fazerem escolhas. Foram essas crenças que levaram o Governo do Estado, em 2011, a apostar na internação e na ocupação territorial da cracolândia para tentar solucionar o problema. Concebida pela saúde e pela segurança pública, resultou em cenas iniciais de truculência da PM. A aposta era que a ocupação policial da cracolândia afastaria os traficantes. Sem as drogas, o dependente seria induzido a buscar a internação ou o tratamento para se desintoxicar. Foi apelidada de Operação Dor e Sofrimento. Nos primeiros dias, o Governo chegou a afirmar que a cracolândia havia acabado, assim como a PM deu prazo para o fim do fluxo. Houve cerca de mil internações e mil detenções. O resultado foi espalhar as cracolândias pela cidade, sendo que o fluxo da região central permaneceu alto. Com o passar dos meses, todos perceberam que o programa “enxugava gelo”, sendo abandonado aos poucos.

O novo programa aposta na reconstrução de identidades a partir dos acordos e do permanente contato com os agentes de diversas pastas. Estruturar novas histórias e laços é visto como um caminho.

3) Os ex presidiários são a imensa maioria na cracolândia, a sociedade que está aberta para amarrar novos laços

No levantamento sobre a população da cracolândia, a Prefeitura identificou que cerca de 70% eram ex-presidiários. Pessoas que passaram anos encarcerados e que foram morar no centro ao deixar a prisão. Alguns se tornaram lideranças nas ruas da Luz. A partir desses dados, o prefeito e sua equipe compreenderam algo fundamental que muitos nunca vão entender. A cracolândia não é apenas um lugar, um território, mas é acima de tudo uma espécie de sociedade alternativa. Aqueles que passam a viver no local constroem uma nova identidade, formam outros laços, estabelecem regras e hierarquias. O crack é uma espécie de “soma”, droga que permite aos frequentadores daquele mundo suportar a nova rotina.

Esse ponto é fundamental. A cracolândia resiste porque é o local do exílio para histórias mal vividas na cidade. A vida anterior é tão pesada que a nova passa a ser aceita mesmo quando vivida em função do crack. É o caso dos ex-presidiários e de muitos moradores de rua. As prisões colocam nas ruas, diariamente, pessoas sem amigos e renegados pelos parentes. Não são aceitos pela sociedade, não conseguem novos empregos. A cracolândia é a única que os recebe de braços abertos. Não é à toa que permanece a tantas investidas. Também não é à toa que o nome do programa, escolhido pelos frequentadores do local, foi De Braços Abertos.

4) Não há exigência de abstinência. As pessoas precisam aprender a administrar o uso da droga

Há na literatura científica um teste com cocaína e ratos que costumava respaldar os tratamentos de drogas. Dava-se aos roedores presos em uma gaiola a droga e comida. Os ratos morreram de tanto consumir cocaína, o que deu a entender que a dependência poderia ser mortal. O teste orientou tratamentos de abstinência radical. Os novos experimentos do neurologista Carl Hart foram além e ampliaram as ofertas da gaiola. Foi dado cocaína e comida ao rato, mas também parceiro sexual, rodinhas para ele correr, entre outros mimos. O rato sobreviveu. Comia, namorava, andava na rodinha e dava uma cafungada. Depois, o experimento foi feito com humanos, a partir de oferta de dinheiro e crack.

Foram esses estudos que permitiram direcionar o tratamento para que o consumidor aprendesse a administrar o uso de drogas. Respalda cientificamente os tratamentos de redução de danos. A abstinência é bem-vinda, mas deve-se principalmente coibir os males do uso, como os acidentes de trânsito quando se bebe, o uso em espaço público, a transmissão de doenças, etc. A internação nessa terapia só ocorre em casos extremos. Abandona-se o olhar moral sobre o uso das drogas. Pode-se consumir, desde que respeitadas certas regras vigentes no ambiente público. Em São Paulo, no programa da Prefeitura, os acordos não passam pela exigência da abstinência das drogas. É preciso reconstruir as trajetórias, remodelar identidades, mesmo que a droga continue fazendo parte da nova vida.

5) A desprivatização das ruas e calçadas, um dos passos decisivos. “Ao alcance das mãos”

A cracolândia é parte da história da cidade (veja vídeo abaixo). É a nossa sombra, aquilo que preferimos manter no escuro. A solução passa pela compreensão do problema em profundidade. O programa De Braços Abertos seguiu esse caminho em direção às entranhas ao estabelecer diálogo com aqueles que frequentam o local. Em quatro meses, houve avanços concretos. “A solução está ao alcance das mãos”, disse o prefeito. Foram oferecidas 400 vagas, com salários de R$ 15 por dia para jornadas de 20 horas por semana. A adesão segue alta. O prefeito empregou alguns em seu gabinete. Comerciantes da 25 de Março e da Rua Santa Ifigênia ofereceram vagas para os participantes do programa. Só que o fluxo de uso na rua continua alto, apesar de a Prefeitura afirmar que hoje não agrupa mais do que 200 pessoas.

A “desprivatização da rua” é o atual desafio. O prefeito pretende que os consumidores não usem mais crack nas ruas e nas calçadas. “Deve-se garantir o direito de ir e vir. As pessoas não podem ter medo de andar nas ruas da cracolândia porque outros estão usando crack na rua”. Houve uma primeira tentativa desastrada. Foi colocado um cercadinho para isolar os consumidores, o que provocou protestos na Luz. A medida foi tomada, segundo o prefeito, por causa de tentativa de sequestro e de latrocínio ocorrida no fluxo. “Os criminosos aproveitaram o aglomerado de pessoas para tentar fugir”, explica o prefeito. Com a reação ao cercadinho, a Prefeitura preferiu recuar..

Nos dias de hoje, busca-se locais para que os consumidores possam usar o crack fora das ruas e longe do público Nas conversas com a Prefeitura, os consumidores pediram para ”queimar a pedra” em alguns imóveis na Rua Dino Bueno. Como são imóveis privados, a sugestão foi recusada. Atualmente, busca-se alternativas, num processo ainda em curso. A “chamada sala segura” é considerada um avanço importante em países europeus e estados americanos que se pautam pela filosofia da redução de danos. São lugares para se usar a droga privadamente, com a possibilidade de acompanhamento médico. “A decisão do lugar que vai ser usado não pode sair de mim, como uma decisão de cima para baixo. Tudo faz parte dessa negociação. É o que garante a legitimidade do processo”, explica o prefeito.

Quatro meses depois, com os avanços ocorridos, o prefeito afirma que a solução para a cracolândia “está ao alcance das mãos”. Ele admite que não há garantias de sucesso. Mas tem a crença de que apostou nas escolhas certas e que percorre o caminho que vai levar São Paulo a superar esse desafio.

Abaixo, dois vídeos. O primeiro deles uma entrevista com Carl Hart falando sobre o livro que escreveu e hoje está sendo lido pelo prefeito. Depois, segue um vídeo de 2011 em que falo sobre as origens da cracolândia. Era o momento em que a polícia saturava o local e praticava diversos abusos. A fala era para explicar a complexidade social da região. Não reparem no meu visual e eu juro que não morava na rua quando fiz o vídeo.



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