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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Cuba, uma antiga obsessão 2 (fundamentação histórica -século XX)



por Gustavo Moreira, em seu blog História & Politica



Estabelecendo controle militar sobre Cuba após a vitória sobre a Espanha, os americanos mantiveram, no essencial, o antigo status quo. As autoridades espanholas conservaram seus cargos. Os interlocutores oficiais das tropas de ocupação eram, basicamente, os elementos mais ricos do setor comercial e dos grupos de exilados que retornavam à ilha vindos da Flórida e de Nova York. Os soldados cubanos que haviam lutado pela independência se viram desprezados, bem como a população negra de modo geral. Uma das medidas adotadas pela administração americana foi a recriação de uma força paramilitar, a Guarda Rural, que já existira durante o domínio espanhol, estruturando-a segundo critérios segregacionistas: quase todos os oficiais eram brancos[1].

O presidente McKinley escalou para coordenar o futuro de Cuba seu secretário da Guerra, Elihu Root, a quem cabia facilitar a sonhada anexação. Root compartilhava com o general Leonard Wood, comandante militar em Havana, a ideia de que pela combinação de um sufrágio limitado com fraudes eleitorais haveria boas possibilidades de sucesso. Assim, para as eleições que se realizaram em 1900, com vistas ao preenchimento de cargos municipais e à formação de uma Assembleia Constituinte, os americanos impuseram como condições para o voto a alfabetização e a propriedade de bens com valor acima de 250 dólares. Somente os ex-participantes da luta armada pela descolonização estavam dispensados da cláusula patrimonial[2]

Entretanto, duas das correntes políticas que se apresentaram no processo eleitoral, os republicanos e os nacionalistas (estes apoiados por Máximo Gómez) defendiam a tese da independência imediata, e prevaleceram sobre os unionistas democráticos, que desejavam a anexação. Apesar da derrota, Elihu Root registrou com satisfação que os negros haviam sido excluídos em larga margem do eleitorado. Sua visão era semelhante à da direção do jornal New York Times, que publicou na edição de 7 de agosto de 1899 a seguinte manchete:

Cuba pode ser outro Haiti. O resultado do sufrágio universal seria uma república negra. Os negros podem ganhar a primeira eleição[3].

Antes de concederem uma soberania parcial a Cuba, os Estados Unidos pressionaram a Assembleia Constituinte cubana no sentido de referendar a emenda apresentada por Orville Platt no Congresso norte-americano em fevereiro de 1901. Pela Emenda Platt, que vigorou até 1934, ficava estabelecido que os Estados Unidos teriam as prerrogativas de vetar quaisquer tratados internacionais assinados por Cuba, construir bases militares na ilha, impedir que um terceiro país o fizesse e supervisionar as finanças cubanas, entre outras exigências. O acordo desigual permitiu a criação da base americana de Guantánamo (ainda hoje em operação) e as intervenções militares ocorridas de 1906 a 1909, em 1912 e de 1917 a 1923[4].

Tomás Estrada Palma, postulante único e vencedor das eleições de dezembro de 1901, tornou-se presidente de Cuba em 20 de maio de 1902, dia em que recebeu o governo do general Wood. Bartolomé Masó, um severo crítico da Emenda Platt, chegou a colocar sua candidatura, mas retirou-a depois que Wood nomeou para supervisionar a disputa uma comissão eleitoral composta por adeptos de Estrada Palma. Este último seria, quatro anos mais tarde, o primeiro governante cubano a solicitar a presença dosmarines em seu próprio país. Diante da evidência de que as fraudes eleitorais assegurariam uma vitória dos republicanos (partidários do presidente, que buscava a reeleição), os liberais, então na oposição, abandonaram o pleito de dezembro de 1905. Porém, em agosto do ano seguinte, promoveram uma rebelião armada que envolveu cerca de 24 mil homens. Favoráveis a Estrada Palma, as oligarquias de Havana apelaram à intervenção americana, utilizando mais uma vez o argumento racial, já que os negros eram numerosos nas fileiras inimigas. Atendendo aos pedidos, Theodore Roosevelt enviou a Cuba, além das tropas, Charles Magoon, advogado de Minnesota que atuaria ao longo de três anos, na prática, como um governador colonial[5].

Naquele tempo, já vigorava o princípio que ficou conhecido como “corolário Roosevelt da doutrina Monroe”: em discurso de 6 de dezembro de 1904, o presidente americano declarou que os Estados Unidos poderiam recorrer ao “ataque preventivo” contra Estados incapazes de preservar a ordem interna ou de saldar seus compromissos financeiros. Segundo Roosevelt,


Qualquer país ou povo que se comporte bem, pode contar com nossa amizade cordial. Se a nação demonstra que ela sabe agir com razoável eficiência e decência nos assuntos sociais e políticos, se ela sabe manter a ordem e paga suas dívidas, ela não precisa ter medo da interferência dos Estados Unidos. Um mau comportamento crônico, ou uma impotência que resulte no afrouxamento dos laços de civilidade social podem requerer, na América ou em qualquer outro lugar do mundo, a intervenção de alguma nação civilizada, e no caso do Hemisfério Ocidental, a adesão dos Estados Unidos à Doutrina Monroe pode forçar os Estados Unidos a exercer um poder policial internacional, mesmo que seja relutantemente[6].

Durante a segunda ocupação, foi organizado um exército cubano e criaram-se novas regras eleitorais, tudo sob a batuta do coronel Enoch Crowder (1859-1932), oficial formado na Academia de West Point que tinha em seu currículo combates contra os chefes indígenas Jerônimo (apache) e Touro Sentado (sioux). Nas eleições regionais organizadas por Crowder em agosto de 1908, triunfou o Partido Conservador, formado basicamente pelos ex-republicanos de Estrada Palma. Entretanto, na disputa pela presidência, em novembro do mesmo ano, venceram os liberais, que conduziram ao cargo José Miguel Gómez (1858-1921)[7]. É preciso assinalar que, enquanto quase todos os sobreviventes das guerras pela independência se reuniam no Partido Liberal, os conservadores, vistos com mais simpatia pelos Estados Unidos, agregavam outros interesses, inclusive dos que se mostraram, até o momento derradeiro, ligados à metrópole espanhola[8].

A desunião dos liberais, em 1912, permitiu aos conservadores a retomada do poder com Mario García Menocal (1866-1941), que foi reeleito e governou até 1920. A elevação temporária dos preços do açúcar, no decorrer da Primeira Guerra Mundial, favoreceu uma escalada da corrupção entre os dirigentes cubanos. Assumindo a presidência após Menocal, que apoiou sua candidatura, o liberal dissidente Alfredo Zayas (1861-1934) se viu obrigado a enfrentar uma grave crise inflacionária. Chamado oficialmente para ajudar a debelar os problemas administrativos, Crowder, agora general, retornou a Cuba na qualidade de chefe de uma missão de assessoria. Como resultado, empresas americanas lograram, nos anos que se sucederam, ampliar a porcentagem que detinham das plantações cubanas[9].

Nas eleições presidenciais cubanas de 1924, saiu vitorioso o general Gerardo Machado (1871-1939), ex-diretor em Havana da General Electric Company, um liberal que, sendo inicialmente adversário de Zayas, acabou por obter o apoio de seu antecessor[10]. Ex-açougueiro nascido numa família de ladrões de gado e antigo recruta das guerra de independência, Machado, que fora antes prefeito de sua cidade natal, Santa Clara, vice-comandante das Forças Armadas e ministro do Interior, contava com o apoio de seu poderoso patrão nas campanhas eleitorais[11].



[1] Cf. Richard Gott. Cuba: uma nova história. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, pp. 125 a 127.
[2] Idem, p. 129.
[3] Ibidem, pp. 129/130.
[4] Ibidem, pp. 131 a 133.
[5] Ibidem, pp. 134 a 138.
[6] Ver José Luís Fiori. O poder global dos Estados Unidos: formação, expansão e limites. In: O poder americano/org. José Luís Fiori. Petrópolis: Vozes, 2007, pp. 78/79.
[7] Ver Gott, pp. 138/139.
[8] Ver Tulio Halperin Donghi. História da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 202.
[9] Idem, p. 203.
[10] Ibidem, p. 203.
[11] Cf. Gott, pp. 152/153.

Cuba, uma antiga obsessão (fundamentação histórica -século XIX)

Nunca, a não ser como idéia oculta nas profundezas de almas generosas, Cuba foi, para os Estados Unidos, algo mais do que uma possessão desejável, cuja única inconveniência é a sua população, que eles consideram rebelde, preguiçosa e digna de desprezo.
(José Martí, em carta de maio de 1886 a Ricardo Rodríguez Otero. Citado em Richard Gott. Cuba: uma nova história. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 107) 

 
VÁ LENDO O TEXTO AO SOM DESSA PEÇA MARAVILHOSA



por Gustavo Moreira, em seu blog História & Política

O interesse norte-americano pela incorporação da ilha de Cuba ao seu território remonta aos primeiros tempos dos Estados Unidos enquanto país autônomo. A compra da Flórida à Espanha, em 1821, tornou esta possibilidade mais viável, na medida em que o império colonial espanhol nas Américas desmoronava diante dos movimentos de independência. Em 1823, John Quincy Adams (1767-1848), então secretário de Estado, explicitou tal intenção, ao declarar, em carta a Hugh Nelson, representante dos Estados Unidos em Madri, que...

... há leis da política como há leis de gravitação física. E se uma maçã, separada pela tempestade da sua árvore nativa, não pode escolher, mas apenas cair ao chão. Cuba, por força desligada do seu vínculo não natural com a Espanha, e incapaz de auto-sustentar-se, só pode gravitar na direção da União Norte-Americana, a qual, pela mesma lei da natureza, não a pode segregar do seu seio[1].


Pouco mais tarde, em 1825, os Estados Unidos arrancaram da Espanha a promessa de que Cuba, em nenhuma hipótese, passaria ao controle de outra potência europeia. O historiador Fraginals identifica, como importante fator de encorajamento desta ambição ao longo da História, os interesses da oligarquia criolla, que em regra admirava o vizinho do Norte[2].

O controle espanhol sobre a ilha, extremamente repressivo nas décadas de 1820 e 1830, moldou a opinião dos intelectuais naturais de Cuba contra a metrópole, levando-os a pensar em duas alternativas: a independência ou a anexação aos Estados Unidos. A segunda encontrou um defensor de peso em Antonio Saco (1797-1879), escritor e político que redigira, em Paris, uma história da escravidão. Saco temia que os negros de Cuba se unissem aos da Jamaica e do Haiti para subjugar a população branca de toda a região caribenha. Receoso de que os brancos cubanos não pudessem escapar simultaneamente da opressão colonial e da eventual revolta das populações de cor, via como solução “jogarmo-nos nos braços dos Estados Unidos[3]”.

A eclosão da rebelião de La Escalera, em 1843, quando escravos e negros livres, associados, atacaram várias propriedades, tentando recrutar cativos dos engenhos e trabalhadores das ferrovias para o movimento, fez crescer o apoio ao anexionismo entre a classe dominante local. Um dos principais difusores da proposta era Cristóbal Madán, plantador exilado em Nova York, não por acaso cunhado do jornalista John O’Sullivan (1813-1895), criador da expressão Destino Manifesto, pretendida justificativa para o expansionismo territorial norte-americano. Naquela conjuntura, os Estados Unidos eram o principal parceiro econômico da ilha, comprando a maior parte da produção açucareira e exportando os manufaturados que abasteciam o mercado consumidor cubano. Em sintonia com estas articulações, o presidente americano James K. Polk (1795-1849) ofereceu à Espanha 100 milhões de dólares pela soberania sobre Cuba em 1848, cifra ampliada para 130 milhões por Franklin Pierce (1804-1869) em 1854. Não obstante a recusa espanhola, aventureiros tentaram realizar o projeto por conta própria. Um deles foi Narciso López, nascido na Espanha, que liderou duas expedições rumo a Cuba, nas quais tomaram parte centenas de americanos. Aprisionado em 1851, López acabou executado em Havana por meio do garrote vil, técnica de estrangulamento comumente adotada pelo Estado espanhol[4].

O anexionismo contava igualmente com a associação entre particulares cubanos e americanos no território dos Estados Unidos. O jornal La Verdad, publicado na América do Norte, estava sob a direção do cubano Gaspar Betancourt Cisneros, representante dos pecuaristas da região de Puerto Príncipe. Entretanto, a dona do periódico era Cora Montgomery, mulher do general William M. Cazneau, que havia se destacado na tomada do Texas ao México[5]

A perspectiva de incorporação da ilha aos Estados Unidos, que seduzia em particular os proprietários dos engenhos na altura da metade do século XIX, perdeu prestígio com a deflagração da Guerra de Secessão[6], mas não foi de todo abandonada. Quando deu início à Guerra dos Dez Anos (1868-1878) contra o domínio metropolitano, Carlos Manuel de Céspedes (1819-1874) conclamou os cubanos à independência. Entretanto, o outro projeto retornou à ordem do dia, e uma convenção realizada por rebeldes na localidade de Guáimaro votou a favor da anexação pelos Estados Unidos. Como não havia um compromisso claro dos insurretos no sentido da abolição da escravatura, e funcionários de seu próprio governo se batiam pela velha proposta de adquirir Cuba por compra, o presidente Ulysses Grant (1822-1885) decidiu aguardar o curso dos acontecimentos[7].

Céspedes chegou a solicitar a Grant, em março de 1869, o reconhecimento do movimento que comandava como parte beligerante. Tinha como argumento a seu favor o fato de que a Espanha reconhecera, alguns anos antes, a beligerância do Sul na Guerra de Secessão. Entretanto, não houve reconhecimento e, além disto, os americanos se aproveitaram do conflito para vender armamentos aos espanhóis. Numerosos cubanos se exilaram, durante a guerra, em cidades como Key West, Tampa, Baltimore, Nova York e Filadélfia. Conseguiram, ao menos, fazer com que boa parte da população americana passasse a simpatizar com a ideia da independência de Cuba[8]. Por outro lado, vários exilados se naturalizaram cidadãos dos Estados Unidos, entre os quais Miguel Aldama, àquela altura o principal líder dos anexionistas. Fortalecia-se a antiga “estratégia da maçã madura[9]”. 
 
Na década de 1880, a vinculação entre as economias americana e cubana continuou a crescer, a tal ponto que os Estados Unidos, que já compravam mais de 80% das safras agrícolas de Cuba, atingiram um percentual superior a 90% em 1891. Sob pressão, os espanhóis assinaram, em 1884, um tratado antiprotecionista, que deixariam de cumprir, porém, devido a uma alternância entre gabinetes na metrópole[10]. Além de dominar o comércio exterior cubano, os capitalistas americanos vieram a ocupar um espaço diferenciado no próprio setor produtivo: em 1888, vinte refinarias se fundiram para dar lugar ao truste comandado por Henry Havemeyer, que assumiria dois anos mais tarde a denominação de American Sugar Refining Company, empresa virtualmente monopolizadora das vendas de açúcar refinado nos Estados Unidos[11]
 
Uma segunda guerra de independência, entre 1895 e 1898, enfraqueceu tanto a Espanha, que enviou duzentos mil soldados à colônia para não perdê-la, dos quais muitos morreram, quanto os partidários da liberdade, que foram submetidos às duras táticas de confinamento e extermínio empreendidas pelo general Valeriano Weyler (1838-1930), marquês de Tenerife, instalado em Havana como capitão-geral em 1896. Tombariam em combate José Martí (1853-1895), mentor intelectual dos patriotas cubanos, e o general mulato Antonio Maceo (1845-1896), veterano da Guerra dos Dez Anos, o mais carismático de seus chefes militares. Entre as grandes lideranças restava apenas Máximo Gómez (1836-1905)[12].

Com o desaparecimento de Martí, a organização por ele comandada, o Partido Revolucionário Cubano, ficou sob a presidência de Tomás Estrada Palma, outro ex-combatente da Guerra dos Dez Anos, que havia adquirido a cidadania americana durante um longo exílio naquele país, onde trabalhou como professor. Fraginals demonstra simpatia por Estrada Palma, tido como um homem imune à corrupção. Todavia, sob aquela gestão, os magnatas do açúcar, aliados aos interesses dos Estados Unidos, alcançaram a hegemonia sobre o PRC, dele expulsando os operários da indústria do tabaco e outros integrantes das classes médias e baixas, antes arregimentados por Martí[13].

Estavam abertas as oportunidades para a intervenção americana, concretizada após a explosão do couraçado Maine no porto de Havana, em 15 de fevereiro de 1898, que provocou a morte de 258 marinheiros. Este acontecimento, na verdade um acidente, foi apresentado à opinião pública dos Estados Unidos como resultado de sabotagem espanhola. Declarada a guerra entre os dois países a 25 de abril, tropas americanas atacaram Cuba e Porto Rico, nas Antilhas, Filipinas e Guam, no Pacífico. Em 1º de julho de 1898, na localidade de Loma San Juan, em Santiago de Cuba, aconteceu a principal batalha pelo controle da ilha, na qual três mil americanos, que sofreram pesadíssimas baixas, terminaram por dobrar a resistência de mil espanhóis. Três semanas incompletas bastaram para a liquidação de um domínio de quase quatro séculos[14].

A invasão nada teve de improvisada. Recusando-se o primeiro-ministro espanhol Antonio Cánovas Del Castillo (1828-1897), em 1896, a admitir a mediação americana entre as partes em luta, o Escritório de Inteligência Naval dos Estados Unidos solicitou a confecção de um plano de guerra contra a Espanha. A questão constituiu um tema importante na eleição presidencial americana que ocorreu naquele ano. O presidente em exercício, Grover Cleveland (1837-1898), democrata, era acusado de inércia no que se referia a Cuba. O pleito, afinal, seria vencido por William McKinley (1843-1901), republicano e favorável ao expansionismo[15].


[1] Ver Richard Gott. Cuba: uma nova história. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 75.
[2] Cf. Manuel Moreno Fraginals. Cuba/Espanha, Espanha/Cuba. Bauru: Edusc, 2005, pp. 255/256.
[3] Cf. Gott, pp. 72 a 74.
[4] Idem, pp. 82 a 87.
[5] Cf. Fraginals, p. 251.
[6] Ver Tulio Halperin Donghi. História da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 165.
[7] Ver Gott, p. 98.
[8] Ver Fraginals, pp. 305/306.
[9] Idem, p. 312.
[10] Ibidem, pp. 329/330.
[11] Ver José A. Benítez. El pensamiento revolucionario de hombres de nuestra América. La Habana: Editora Política, 1986, p. 331.
[12] Cf. Gott, pp. 109 a 117.
[13] Cf. Fraginals, pp. 338/339.
[14] Cf. Gott, pp. 117 a 120.
[15] Idem, pp. 120/121.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Erro médico interrompe carreira de cantora lírica por flatulência


garimpado por Morvan Bliasby, comentarista no sitio do Professor Hariovaldo 

Não é só aqui onde o CFM - Conselho Federal de Medicina - protege os doutores coscignas, mas mesmo lá nos Steites, onde a medicina é super-avançada, acontecem ainda casos estranhos... Deve ser infiltração dos comunistas cubanos!... ao falar em Fidel, o nefando, não pude deixar de me lembrar de reportagem sobre cantora lírica impedida de cantar, pois mexeram-lhe com pregas, e não foram as vocais...

Senão vejamos, saiu no Musica - Terra on line


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Um erro médico durante uma cirurgia impediu que a cantora lírica Amy Herbst voltasse a executar seu dom. De acordo com o jornalThe Independent, Herbst, que já cantou com a Nashvile Opera Company, afirmou que não consegue mais ter seu mesmo desempenho como cantora profissional.

A complicação aconteceu durante o nascimento do seu filho. Na ocasião, ela foi submetida a uma episiotomia, que consiste em uma incisão no tecido entre a vagina e o ânus para aumentar o canal por onde passará o bebê.

O corte foi suturado após o procedimento, mas Amy reclamou que sentia gases saindo de sua vagina e que estava com dificuldades de controlar sua bexiga.

Um exame conduzido por uma enfermeria diagnosticou que a mezzo-soprano não havia cicatrizado devidamente e que havia um rompimento de seu esfíncter externo, causando uma ligação entre a vagina e o reto.

A cantora já abriu um processo contra o hospital onde afirma que "o resultado de sua incontinência e excessiva flatulência é que Herbst foi incapacitada de trabalhar profissionalmente como cantora de ópera".

Após o diagnóstico, um cirugião já teria dito para Amy que o procedimento de reconstrução pode não ser simples e talvez não a ajude no processo de controlar sua flatulência e incontinência. Outas cirurgias podem ser necessárias.

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Um espírito de porco, no mesmo post do Prof. Hari já me saiu com essa:

É o que se chama no popular de: “couro frouxo”. Já pensou, cada agudo um peido. Bem, se ela pelo menos peidar no tom, não prejudicará o andamento da ópera.



Sonegação da Globo - vamos ver se agora vai !?!?...



texto de Miguel do Rosário, em seu O Cafezinho


Agora já temos um número e um delegado responsável. É o inquérito 926 / 2013, e será conduzido pelo delegado federal Rubens Lyra.

O chefe da Delegacia Fazendária da Polícia Federal do Rio de Janeiro, Fabio Ricardo Ciavolih Mota, confirmou à comitiva do Barão de Itararé-RJ que o visitou hoje: o inquérito policial contra os crimes fiscais e financeiros da TV Globo, ocorridos em 2002, foi efetivamente instaurado.

Os crimes financeiros da TV Globo nas Ilhas Virges Britânicas foram identificados inicialmente por uma agência de cooperação internacional. A TV Globo usou uma empresa laranja para adquirir, sem pagar impostos, os direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002.

A agência enviou sua descoberta ao Ministério Público do Brasil, que por sua vez encaminhou o caso à Receita Federal. Os auditores fiscais fizeram uma apuração rigorosa e detectaram graves crimes contra o fisco, aplicando cobrança de multas e juros que, somados à dívida fiscal, totalizavam R$ 615 milhões em 2006. Hoje esse valor já ultrapassa R$ 1 bilhão.

Em seguida, houve um agravante. Os documentos do processo foram roubados. Achou-se uma culpada, uma servidora da Receita, que foi presa, mas, defendida por um dos escritórios de advocacia mais caros do país, foi solta, após conseguir um habeas corpus de Gilmar Mendes.

Em países desenvolvidos, um caso desses estaria sendo investigado por toda a grande imprensa. Aqui no Brasil, a imprensa se cala. Há um silêncio bizarro sobre tudo que diz respeito à Globo, como se fosse um tema tabu nos grandes meios de comunicação.

Um ministro comprar uma tapioca com cartão corporativo é manchete de jornal. Um caso cabeludo de sonegação de impostos, envolvendo mais de R$ 1 bilhão, seguido do roubo do processo, é abafado por uma mídia que parece ter perdido o bonde da história.

Nas “jornadas de junho”, um grito ecoou por todo o país. Foi talvez a frase mais cantada pelos jovens que marchavam nas ruas: “A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”.

A frase tem um sentido histórico. É como se a sociedade tivesse dito: a democracia voltou; agora elegemos nossos presidentes, governadores e prefeitos por voto direto; chegou a hora de acertar as contas com quem nos traiu, com quem traiu a nossa democracia, e ajudou a criar os obstáculos que impediram a juventude brasileira de ter vivido as alegrias e liberdades dos anos 60 e 70.

O Brasil ainda deve isso a si mesmo. Este ano, faz cinquenta anos que ocorreu um golpe de Estado, que instaurou um longo pesadelo totalitário no país. A nossa mídia, contudo, que hoje se traveste de paladina dos valores democráticos, esquece que foi justamente ela a principal assassina dos valores democráticos. E através de uma campanha sórdida e mentirosa, que enganou milhões de brasileiros, descreveu o golpe de 64 como um movimento democrático, como uma volta à democracia!

A ditadura enriqueceu a Globo, transformou os Marinho na família mais rica do país. E mesmo assim, eles patrocinam esquemas mafiosos de sonegação de imposto?

O caso da sonegação da Globo é emblemático, e deve ser usado como exemplo didático. Se o Brasil quiser combater a corrupção, terá que combater também a sonegação de impostos. Se estamos numa democracia, a família mais rica no país não pode ser tratada diferentemente de nenhuma outra. Se um brasileiro comum cometer uma fraude fiscal milionária e for pego pela Receita, será preso sem piedade, e seu caso será exposto publicamente.

Por que a Globo é diferente? A sonegação da Globo deve ser exposta publicamente, porque é uma empresa que sempre viveu de recursos públicos, é uma concessão pública, e se tornou um império midiático e financeiro após apoiar um golpe político que derrubou um governo eleito – uma ação pública, portanto.

Esperamos que a Polícia Federal cumpra sua função democrática de zelar pelo interesse público nacional. E esperamos também que as Comissões da Verdade passem a investigar com mais profundidade a participação das empresas de mídia nas atrocidades políticas que o Brasil testemunhou durante e depois do golpe de 64. Até porque sabemos que a Globo continuou a praticar golpes midiáticos mesmo após a redemocratização, recusando-se a dar visilidade (e mentindo e distorcendo) às passeatas em prol de eleições diretas, manipulando debates presidenciais e, mais recentemente, tentando chancelar a farsa de um candidato (o episódio da bolinha de papel).

O Brasil se cansou de ser enganado e, mais ainda, cansou de dar dinheiro àquele que o engana. Se a Globo cometeu um grave crime contra o fisco, como é possível que continue recebendo bilhões em recursos públicos?

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Essa é a nossa Bananolândia

Quid pro quo de qualidade ocorrido no ultimo fim de semana em que um "rolezinho" (sempre isso!...) estava marcado para ocorrer no Leblon (lugar de "bacanas").

O video registra o magnífico encontro entre um cineasta que se diz “rico”, uma fotógrafa macartista, um francês desavisado e o Batman.

A personagem mais caricata é aquela fotógrafa apoplética, que se auto-declara de direita, irritadíssima com o homem morcego: “Manipulado, manipulado!” Ela dá um tapa na lente da câmera: “Existe um plano, sim! Pode botar aí. Existe um plano de ocupação comunista, totalitarista no país! Será que ninguém quer ver isso?

O pobre coitado do francês faz perguntas estranhas ao cineasta, com tradução capenga do cameraman que o acompanha: quer saber se aquilo é algum tipo de discriminação (?!?).




quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Rolezinhos 2 - Mais uma boa analise (texto longo também!...)

Num esforço de pesquisa 
etnográfica Folha de São Paulo 
monta o "estilo rolezinho": grande mídia 
morre de amores por eles

por Wilson Roberto Ferreira Lima, no blog Cinema Secreto: Cinegnose

Certa vez o professor de filosofia Boris Groys fez em 2001 uma profética advertência às ciências sociais como a Economia e a Sociologia: “Sem prejuízo do que todas essas veneráveis ciências são capazes, incorrem elas num erro fundamental. Não consideram a possibilidade de que a própria realidade, inclusive toda a sociologia, a ciência econômica etc., possa ser um filme mal produzido.” - veja GROYS, Boris. "Deuses Escravizados: a guinada metafísica de Hollywood". Groys não se referia apenas ao súbito interesse metafísico de Hollywood através de filmes como Show de Truman ou Matrix. Mais do que isso, lançava uma suspeita de que Hollywood já expressava o fato de que a própria realidade estaria se transformando em um filme. E, o que é pior, mal produzido.

Para Groys o “erro fundamental” seria o fato dessas ciências não perceberem que os seus “objetos” (o “econômico”, o “sociológico” etc.) estariam sendo assumidos ou simulados em ambientes altamente midiatizados pelas tecnologias de comunicação e informação. Em palavras diretas: os fenômenos econômicos e sociológicos seriam antes de tudo fenômenos midiáticos nas suas diversas modalidades: efeitos virais, profecias auto-realizáveis, paradoxos quânticos (o olhar tecnológico da mídia altera o próprio objeto que está sendo observado) etc.

Por isso, os fenômenos e eventos atuais cada vez mais se tornam uma “segunda natureza”, isto é, linguagem. Deixam o campo econômico, político ou sociológico para se inserir no linguístico ou semiótico.
Portanto, qualquer fato ou fenômeno deve ser analisado não somente pela sua área de especialização científica (sociologia, economia etc.), mas, segundo o método semiótico, deve ser analisado por três planos ao mesmo tempo distintos e simultâneos: osemântico, o sintático e opragmático.

Com o fenômeno dos chamados “rolezinhos” não seria diferente: seja um fenômeno de antropologia urbana (envolvendo identidade, consumo e discriminação) ou sociológico (o confronto de uma nova classe média em ascensão entrando em choque com redutos de consumo tidos como exclusivos da classe média alta), ele possui uma evidente natureza midiática – ocorre em ambientes altamente midiatizados dos shoppings (câmaras de segurança, câmaras das próprias vitrines onde o consumidor se vê não mais em espelhos, mas em telas; grifes, marcas e décor televisivamente familiares), para repercussão viral por meio das redes sociais e pelas ondas concêntricas das mídias de massa, o que faz os rolezinhos se retroalimentarem em looping.

Por ser um fenômeno realizado através das mídias, para as mídias e alimentado pelas mídias, ironicamente os discursos sociológicos ou antropológicos seriam como que “canibalizados” pela lógica midiática como fator que gera ambiguidade e polêmica (o que são, afinal, os rolezinhos?) que, como sabemos, é o fator propulsor para a disseminação de memes (sobre esse tema clique aqui). Ao tentarem explicar ou dar sentido aos rolezinhos, esses discursos seriam “devorados” pelo próprio fenômeno midiático, ajudando a repercutir eventos cuja recorrência nos meios de comunicação possui certamente um interesse “pragmático”.

Ou seja, essa midiatização dos rolezinhos transforma-os em mais uma bomba semiótica, mas agora uma bomba de nova modalidade: um cavalo de Tróia. Para compreendermos os rolezinhos por esse ponto de vista que vê esse fenômeno como uma nova modalidade de bomba semiótica, vamos compreendê-los como funcionam por meio da articulação de três planos semióticos: o plano semântico, o sintático e o pragmático.


Nível semântico: o que significam os rolezinhos?

Fenômeno que rompe o apartheid social? Flash mob da periferia? Movimento consciente de protesto? Movimento político? Luta de classes? Estranha pós-modernidade? A esmagadora maioria das abordagens mobiliza um arsenal de conceitos clássicos das ciências sociais (Marx, Durkheim, Weber) para entender o que esse fenômeno denota ou conota. Qual o seu sentido, entender o seu significado profundo para que possamos ver nos rolezinhos o início de alguma tendência.

Na massa de análises das últimas semanas, abriram-se dois caminhos que tentam dar um significado ao fenômeno: ou há uma consciência nessa mobilização (e, por isso, adquirem o status de “protestos”) ou então o fenômeno possui uma “conotação política”, isto é, a cabeça daqueles rapazes com bombetas, bermudas e tênis Mizuno que lotam os corredores de shopping não tem a menor consciência do significado dos seus atos, embora em si os eventos tivessem um significado político.

Em síntese, o plano semântico abre para uma espiral ascendente de interpretações cuja principal consequência é transpor o fenômeno do campo policial ou das notícias diversas para as editorias nobres de Política, das colunas de editorialistas até chegar a artigos de natureza acadêmica.


O nível sintático: arbitrariedade e recorrência nos rolezinhos

Nesse nível encontramos um padrão, um modus operandi, um código que parece organizar a transformação do fenômeno em notícia e, depois, em evento midiático.

Primeiro: a arbitrariedade. De repente, rolezinho vira um conceito elástico: já existiria desde os anos 1960 nos EUA quando universitários negros vestindo suas melhores roupas entraram em uma lanchonete reservada a pessoas brancas, sentaram e fizeram seus pedidos para a perplexidade dos clientes bem nascidos. Estratégia retórica para atribuir um significado histórico a um fenômeno atual. Dessa forma, os rolezinhos ganham um status histórico, conquistando a seriedade e o peso de significação que o nível semântico tanto procura.

Com as grandes manifestações de rua a mesma operação semiótica foi acionada ao aproximar as fotos das multidões nas ruas de São Paulo com as antigas fotos em preto e branco dos protestos estudantis de maio de 1968 na França ou os movimentos de resistência de rua ao golpe militar brasileiro de 1964.

Outra questão seria o timing do evento: por que só agora ganhou a atenção midiática e transformou-se em notícia? “Bandos”, “ameaças de arrastão” ou “grupos exaltados” assombram espaços de consumo como em janeiro de 2013 no Itaú Power Shopping em Contagem/MG, em 2012 no mesmo local em um show do funkeiro Mr. Catra ou em agosto do ano passado no Shopping Estação em BH com encontro de mil pessoas que supostamente teriam combinado pelo Facebook. Eventos como esses ocupavam espaços nas mídias em editorias menos nobres, já que as principais se ocupavam com as grandes manifestações de rua.

Outro elemento é a recorrência: de evento localizado em São Paulo, ganhou status nacional e foi promovido a “protesto”. No espaço de uma semana, ganha status de preocupação em reunião ministerial da presidenta Dilma como noticiado em primeira página do jornal Folha de São Paulo. O jornal ofereceu a tentadora imagem de um governo sitiado por movimentos de protestos pipocando por todos os lados...

Outro exemplo de recorrência que evidencia a existência de uma sintaxe é a personalização de um evento coletivo. Manifestações com as de rua no ano passado ou os rolezinhos atuais são eventos coletivos. A mídia sabe que, retoricamente, falar em milhares, centenas ou dezenas de participantes tem pouco impacto. Mas se o evento é personalizado e ganha uma cara, tudo muda: assim como a personagem “Dani Pantera” virou a musa dos black blocs para a revista Veja, da mesma forma o jornal Folha de São Paulo, repercutido pelo programa Fantástico da TV Globo, elege os “famosinhos” dos rolezinhos (jovens da periferia que ganharam notoriedade nas redes sociais por postar vídeos e fotos do interior do “movimento”) e que, de uma hora para outra, foram elevados ao status de trendsetters por analistas à procura da semântica do fenômeno.


Nível Pragmático: o cavalo de troia

Esse nível mostra qual a relação que as pessoas criam em relação aos signos e discursos. Como na prática os usuários dos signos se valem deles. O que se quer alcançar com aquilo que sendo dito? Qual a intenção?

Aqui vale o clássico enigma proposto por Paul Lazarsfeld para os estudos de comunicação: quem fala o que, para quem e com qual efeito? O nível pragmático quase sempre inverte o que se sinaliza no nível semântico como no exemplo do semáforo: se no plano semântico a cor amarela sinaliza “devagar e atenção”, no plano pragmático torna-se para o motorista “acelera que ainda dá tempo”.

Essa mesma fórmula parece ser aplicada ao fenômeno dos rolezinhos: se no plano semântico as análises atribuem ao fenômeno um status de sintoma da injustiça, apartheid racial e cultural e outras formas de expressões que comunicariam contestação e protesto, no plano pragmático a grande mídia (“quem fala”) resignifica como “repique das grandes manifestações de junho” apostando no efeito da profecia auto-realizável (“qual efeito”) nas redes sociais (“para quem”) para elevar os rolezinhos ao nível nacional como parte de um único propósito: demonstrar que esse evento é mais um exemplo do caos e desordem em que supostamente viveria o País.

Em outras palavras, pela forma como a grande mídia está noticiando, os rolezinhos se tornaram um perfeito cavalo de Tróia: insere uma pauta dileta para as esquerdas (luta de classes, racismo, segregação etc.) para, involuntariamente, auxiliarem na repercussão na sua incessante busca de um sentido semântico para esses eventos.

Cabe também ressaltar nesse nível pragmático que a repercussão do fenômeno dos rolezinhos produz dois efeitos colaterais e oportunos para a grande mídia:


(a) criminalizar as redes sociais e a Internet (mídias que corroem lentamente a hegemonia simbólica das mídias de massas). Se ficarmos bem atentos, perceberemos que é comum a pauta sobre essas novas mídias sempre terem um enfoque criminógeno ou patológico – problemas cognitivos e educacionais ou crimes cibernéticos, vício, terrorismo, espionagem ou simplesmente anomia.

(b) Mostrar que a ascensão social da chamada classe C (efeito sócio-econômico de inclusão das políticas econômicas de Lula e Dilma) só produz caos e desordem. Por que será que os rolezinhos ganham mais destaque do que os milhares de jovens que se formam graças a programas de inclusão no ensino superior como o ProUni?



Portanto, nesse nível pragmático de análise revela-se uma nova espécie de bomba semiótica: o cavalo de Tróia – graças à arbitrariedade e recorrência do nível sintático, a grande mídia cria a pauta perfeita para as esquerdas morderem a isca. Embora as análises semânticas apontem para um sentido contrário onde a própria grande mídia é acusada de criminalizar os rolezinhos e manter o apartheid social, isso apenas converge para o principal objeto pragmático: através da repercussão e polêmica criar o efeito viral da profecia auto-realizável e tornar ainda mais pesada a atmosfera política desse ano que, ao que tudo indica, promete não terminar.

Retomando a rotina aqui no blog depois de umas férias: Rolezinhos


NOTA PRELIMINAR 
Depois de uma pausa, voltamos a carga, pois esse ano promete... A espada de São Jorge está pronta para muitos dragões (figura metafórica que é um erro eurocêntrico afinal, pois o dragão representa sorte em outras plagas, mas voilá...). O texto reproduzido ai em baixo, embora longo, é um dos mais legais que achei por ai... os 10 a 15 minutos que se gasta com ele vale cada segundo. Reproduz o sentimento de uma pessoa que viveu naquele lado, o que nos dá uma idéia bem mais clara do que rola (!?):

por Leandro Beguoci, no blog Oene  

O rolezinho, a reunião de jovens e adolescentes em shoppings que nasceu na periferia de São Paulo e já se espalhou por outras partes do país, virou o assunto do verão deste 2014 de eleições e Copa. Um arrastão de palavras de ordem, à direita e à esquerda, tomou o debate e colonizou as discussões com conceitos confusos, fora de lugar. De repente, festas de funk ostentação viraram manifestações de marxistas culturais contra a civilização ocidental e as reações a elas, vindas de gente tão pobre quanto os jovens, uma prova irrefutável do apartheid brasileiro.
De fato, as reuniões de lazer e a reação a elas foram contaminadas pelo debate político que acontece nas áreas de classe média e classe média alta. Elas foram simplificadas, estereotipadas. O debate se reduz aos exageros, criando adversários irreais e estereotipados: ou as pessoas são elitistas ou comunistas. Mas o mundo real, bem, esse é bem mais complicado. E, no meio desse debate maluco, os sujeitos do rolezinho foram desumanizados e se tornaram categorias para defender posições no debate histérico que vem se desenhando para este ano.
Ninguém ouve ou sabe o que esses jovens pensam, mas praticamente todo mundo no Facebook, no Twitter, em algumas colunas nos jornais e nas revistas sabe o que eles deveriam pensar. Ninguém sabe qual a intenção que eles têm com esses eventos, mas, do lado de cá do rio, todo mundo já tomou as decisões por eles. Pouca gente do centro expandido já visitou o shopping Itaquera ou Campo Limpo, mas não faltam pessoas que já decidiram que ou eles são nobres centros contra a barbárie periférica ou símbolos poderosos da segregação à brasileira.
Esse texto é dividido em três partes. Ele abre com uma história pessoal, avança para algumas hipóteses sobre o rolezinho e termina com pinceladas sobre as reações aos encontros. Mas o principal objetivo é tentar oferecer um caminho para a discussão que devolva às pessoas, façam ou não rolezinho, a humanidade que foi perdida na fúria das discussões. Na área delimitada pelos rios Tietê e Pinheiros, a periferia ainda é um sujeito desconhecido. É uma espécie de Cazaquistão que fala português.
O tédio
Entre 1995 e 1999, eu e os meus amigos passávamos as semanas esperando o dia em que finalmente um shopping seria construído no terreno em que, por muito tempo, funcionara uma fábrica de produtos químicos. O terreno estava abandonado fazia bastante tempo, e sempre surgiam boatos de que um grupo teria comprado o terreno para erguer, nas palavras de um dos jornais da cidade, “um moderno centro de lazer e compras, com direito a McDonald’s”. Quando ele fosse erguido, ficaria a 20 minutos a pé de casa. Naquele pedaço da Grande São Paulo, na periferia de Caieiras, na divisa com Franco da Rocha, um shopping era tudo o que a gente poderia aspirar na vida. Com McDonald’s, então… Seria o nosso shopping. Na nossa área.
Mas esse shopping nunca foi construído, e os nossos dias seguiram iguais. Quando estávamos no começo da adolescência, nossa diversão era jogar bola na rua de paralelepípedo. Eu sempre invejava as crianças que moravam em Pirituba, um bairro na periferia de São Paulo onde minha avó morava, porque as ruas de lá eram asfaltadas, as crianças não perdiam as unhas do pé por causa de uma pedra mal colocada e o esgoto não passava no canto da rua e levantava aquele desagradável odor de urina fortalecida pelo sol quente do verão. Mais velhos, eu e os meus amigos organizávamos algumas festas na casa de um, na casa do outro, e todos torcíamos por uma quermesse de igreja. Mas nunca saíamos do bairro.
A Avenida dos Estudantes, no centro de Caieiras, não era muito receptiva. Havia áreas bem marcadas para cada “tribo”: quem gostava de música eletrônica ficava no começo da avenida, quem adorava rock, no final, quem curtia sertanejo, no meio, quem gostava de axé ficava numa rua ao lado da avenida. Mas os meus amigos gostavam de rap, de pagode, e não havia muito espaço no centro de Caieiras para quem curtia essas músicas e se vestia como Mano Brown. O jeito era ir para Osasco, Perus, Pirituba, para algum lugar onde fosse possível se divertir com os amigos, conhecer umas meninas, beber alguma coisa. Só valia a pena ir para o centro da cidade se fosse com carro. E com muita gente. Caso contrário, era constrangedor.
Uma vez, a gente foi até o centro, a pé, com muita gente – mas, ainda assim, em número menor do que as outras tribos. Fomos parados pela guarda municipal porque estávamos em bando, segundo um deles. Tomamos uns tapas na costela, e fomos liberados. Ao chegar em casa, minha mãe me esperava, rindo, dizendo que uma das alunas dela, no colégio em que ela dava aula, no centro da cidade, tinha ligado dizendo que “o Leandro está andando com bandidos”. Naquela época, eu tinha uma bolsa de estudos na escola em que minha mãe dava aula (só havia duas escolas particulares na cidade). E a menina estava na minha sala. Minha mãe perguntou a ela como eram os bandidos com quem eu andava, e ela descreveu o Zé Luís, vizinho e um grande amigo de infância. Nós dois rimos – agora, de tristeza. Os pais dele eram do Piauí, e ele era mulato. Aliás, naquela turma do bairro, eu era o único cara branco. Os meus amigos todos, assim como boa parte do bairro, era formada por negros e mulatos. Ao se vestir como Mano Brown, Zé Luís, um sujeito com horror a crime, virou ladrão.
Quando sai da cidade para cursar jornalismo, em São Paulo, já tinha perdido o contato com os meus amigos de bairro. Eu passava a maior parte do tempo estudando. Em parte por causa da saudável obsessão familiar com estudos, em parte por causa de uma leve melhora econômica na situação de casa, que deu mais espaço no orçamento para livros e me tirou do trabalho adolescente, e em parte porque eu percebi, ao estudar no centro da cidade, que a faculdade talvez fosse uma alternativa viável para buscar outras coisas na vida que não passassem por esgoto ou batida policial. Muitos dos meus amigos ficaram nas sucateadas escolas estaduais do bairro e só pensavam em conseguir um emprego logo para que finalmente pudessem comprar roupas, tênis, o primeiro carro, telhas para a casa, blocos para o muro alto, geladeira. Eles tinham outras urgências, outras necessidades, outras questões na vida.
Uma vez, no meio da faculdade, cheguei de sandália, cabelo Blond Power e camisa rasgada na casa dos meus pais. Eu morava numa república no centro de São Paulo, com amigos, e contava moedas (por causa do orgulho renitente e de uma busca teimosa por independência). Meus amigos de bairro estavam com carros tunados, tênis bonitões, na esquina de casa. Parei para conversar com eles. Pareciam rappers de filmes americanos. Eles me sacaneavam, dizendo “pô, foi fazer faculdade e virou mendigo, Yellow?” Como eu era o único branco na rua, eles me chamavam de Yellow porque uma professora de inglês não era boa em ensinar cores. A gente conversou sobre a vida, as famílias, os problemas. Vários deles tinham votado pela primeira vez em 1998 – e no Maluf. Segurança era sempre um assunto sério. Alguns deles eram guardas de mercado, operários na fábrica de papel, motoristas de caminhão, operadores de telemarketing. Naquela época, eles só tinham uma preocupação: mostrar que tinham melhorado de vida e proteger as casas de violência. Mas, aos finais de semana, eles e seus carros com som bem alto, ocupavam o centro da cidade tocando rap no último volume. Mas, agora, a guarda municipal já não tinha como pegar ninguém…
O rolezinho
Quando surgiram as primeiras notícias sobre os rolezinhos nos shoppings da periferia de São Paulo, fiz uma viagem particular no tempo – e acabei lembrando de Chopis Centis, música dos Mamonas Assassinas, do meio da década de 1990, que já falava de rolezinho. O grupo, aliás, é de Guarulhos – uma das cidades em que os rolezinhos 2013/2014 já aconteceram. É impressionante a semelhança daquela década com essa.
“Eu ‘di’ um beijo nela
E chamei pra passear
A gente ‘fomos’ no shopping,
Pra ‘mó de’ a gente lanchar
Comi uns bichos estranhos,
Com um tal de gergelim
Até que tava gostoso,
Mas eu prefiro aipim
Quanta gente,
Quanta alegria,
A minha felicidade
É um crediário
Nas Casas Bahia
(…)
Esse tal “Chópis Cêntis”
É muicho legalzinho,
Pra levar as namoradas
E dar uns rolêzinhos”
Aqueles adolescentes que agora estampam jornais e sites, em bando, são uma versão mais rica e numerosa dos meus amigos de Caieiras na metade dos anos 1990 – e de tantos outros jovens e adolescentes da Grande São Paulo e da periferia da capital. Sim, mais rica. É sempre bom lembrar que o desemprego naquela década superava os dois dígitos e mal havia crédito para erguer ou terminar as próprias casas. Apenas na metade dos anos 2000 é que os bairros da periferia de São Paulo começaram a perder aquela tonalidade laranja dos tijolos, típica das casas sem acabamento. Ninguém na minha época podia sonhar com um Mizuno de mil reais, claro.
Essa reportagem do iG resume bem o que era um rolezinho para a gente: se divertir um pouco e tentar ficar com algumas meninas. A diferença é que eles, hoje, podem ir aos shoppings e podem convocar os outros amigos pela internet. Nós, não.
Primeiro porque os shoppings menos constrangedores naquela época eram o West Plaza, numa Barra Funda cheia de galpões industriais abandonados, e o Shopping da Lapa, ao lado da estação de trem. Mas os dois eram distantes e nem todo mundo tinha dinheiro para pegar o trem até São Paulo. Além do constrangimento: por que ir a um shopping se você mal tinha dinheiro para chegar até ele? Segundo porque não tinha internet, e ai entra um aspecto novo: é possível convocar mais gente para os encontros. E, ao convocar mais gente, o que acontecia na rede passa a ocupar as ruas. Parece óbvio, mas nem sempre o óbvio é óbvio. Os rolezinhos são uma versão, amplificada pelas redes sociais, do que sempre aconteceu nas periferias da cidade.
E, ao amplificar o volume, eles também chamaram a atenção.
Os novos rolezinhos, portanto, acontecem num novo contexto, mas com um mesmo objetivo. A internet deu visibilidade e tamanho a algo que sempre aconteceu em escala menor, sem ser visto ou noticiado dos rios para cá. O boom do crédito, a diminuição do desemprego e o crescimento da classe C levaram os shoppings até as periferias da cidade. Os rolezinhos aconteceram, todos, da ponte pra lá: shopping Itaquera, shopping de Guarulhos, shopping Interlagos, shopping Campo Limpo. Eles não chegaram nem ao shopping Eldorado, talvez um dos centros comerciais mais híbridos de São Paulo – ele fica ao lado da ponte e recebe gente tanto da periferia quanto das áreas mais centrais da cidade. Além disso, esses jovens têm mais emprego, mais renda e podem comprar bonés de 200 reais em várias parcelas mensais (ou tem pais que querem dar aos filhos o que não tiveram, inclusive bonés de 200 reais. Isso não acontece só da ponte pra cá). Os rolezeiros são os filhos da classe C, do pequeno milagre econômico da segunda metade da década passada. Deng Xiaoping, o homem que introduziu o comunismo com toque capitalista na China, dizia que enriquecer é glorioso. Na periferia de São Paulo, consumir é glorioso.
Só que a classe C e as periferias das grandes cidades não são blocos homogêneos. Eu escrevi sobre isso em 2012, no The Pompeia Times, quando as pessoas insistiam em dividir a cidade em blocos azuis e vermelhos para celebrar (ou maldizer) o resultado eleitoral. Reproduzo alguns, porque eles também servem para o rolezinho:
“O que se pode tirar dessa situação? Mais perguntas do que certezas. Eu tenho algumas hipóteses. Uma delas é que a desigualdade em São Paulo não se dá apenas na base centro-periferia, no macro. Essa divisão também se dá dentro de cada área da cidade, no micro. Em cada periferia há um centro urbanizado, com uma classe média ou média alta que prefere ficar nestes bairros por razões que só as pessoas que moram lá sabem. Além disso, em algumas áreas do centro expandido, delimitadas pelos rios, há regiões e famílias muito pobres que moram em cortiços, prédios antigos, mas trabalham perto das casas delas.
Outra hipótese é a dependência das pessoas do Estado. Toda generalização é perigosa e enganosa, mas existem algumas tendências que podem merecer mais atenção. Talvez quanto mais dependente do Estado, mais as pessoas tendam a votar no PT. Quanto menos dependentes do Estado, mais tendam a votar no PSDB – e isso não necessariamente está ligado à renda, mas a uma percepção sobre a vida , sobre valores.
Observo muito isso quando vou ao Jardim Nardini, na periferia de Pirituba, onde passei muitas férias na vida, na casa dos meus avós. Quem podia trabalhar de carro tendia a votar nos candidatos tucanos. Quem tinha de trabalhar de ônibus, nos petistas. Muitas das pessoas com carro que conheci não valorizavam os estudos, mas ganhos imediatos com a renda do trabalho. Muitas das pessoas sem carro tinham obsessão com a escola e preferiam economizar dinheiro para investir na faculdade ou na escola particular dos filhos. Isso fez com que, em muitos casos, os destinos fossem diferentes: as pessoas sem carro se mudam para áreas centrais e levam com elas o voto petista. E as pessoas com carro continuam na periferia, com seus votos tucanos.
Eu poderia listar uma série de outras hipóteses. Já vi bairros inteiros votarem em um candidato por causa de uma obra. O Nardini, por exemplo, foi malufista durante muito tempo, por causa da canalização do córrego fétido que cortava o bairro. E se tornou petista com o bilhete único. O vermelho da Baixa Augusta também pode ter explicação nas leis dos prefeitos Serra e Kassab, que colocaram a diversão de adultos no limite da sobrevivência. E há, claro, os valores. Em algumas regiões operárias antigas da cidade, como Mooca, Lapa, Santo Amaro, Ipiranga, há uma certa obsessão, saudável, em vencer pelo trabalho, não pela malandragem. Isso talvez explique por que o PT terá dificuldades por longos anos para voltar a vencer nestas áreas. O mensalão é visto como um atalho, uma maneira de ter uma vida fácil, sem trabalho”.
A reação das pessoas que frequentam os shoppings das periferias aos rolezinhos não passa nem pela tese de luta de classe, como algumas pessoas à esquerda vem dizendo, nem pela resistência à concretização dos projetos malévolos dos marxistas culturais para dominar o mundo, como algumas pessoas mais à direita vem enfatizando – e vou lhes poupar dos links porque, afinal, o papel do Oene também é dizer o que você não precisa ler. Os argumentos principais das pessoas mais à esquerda é que os rolezinhos são uma manifestação política com o objetivo de ocupar os espaços que são negados aos pobres pela sociedade de consumo. O problema é que não há nenhuma bandeira ou sinal nesse sentido, como nota Vinicius Torres Freire em um bom texto na Folha de S.Paulo. Os rolezinhos não vêm com faixas ou bandeiras. Não há crítica ao consumo, mas elogio às marcas. Essas pessoas já frequentam os shoppings da periferia, onde os rolezinhos acontecem, em grupos pequenos. É difícil ver reivindicação de espaço em um espaço que elas já frequentam. E isso também complica os argumentos da baderna, à direita. Não há crítica ao sistema. Apenas a vontade expressa em roupas de marcas em participar ativamente dele. Os motivos, como mostram uma convocação do rolezinho, são bem mais singelos:
“GERAL SE TROMBAR NO PLAYLAND AS 15:00
Bora lotar o aricanduva!!! para o povo não achar q eu estou querendo promover arrastão… vo logo colocar aqui!!!
eu quero organizar esse evento para apenas ajuntar a galera ,se conhecer e fazer novas amizades :P , não quero promover arrastão ou briga… não to fazendo esse evento para atrasar lado de ninguem…
VAMOS QUE VAMOS NA PAZ E ALEGRIA!!!”
O rolezinho não é uma questão simples, mas acho que podemos descartar facilmente as teses extremadas da esquerda e da direita porque elas não encontram nenhum respaldo da realidade. É difícil ver protesto político na vontade de usar um Mizunão de mil num espaço da periferia da cidade que já é frequentado, individualmente, por essas pessoas. E é ainda mais difícil ver marxismo cultural no funk ostentação. É muito difícil taxar de elitismo uma ação de pessoas da periferia contra pessoas da periferia. Como, afinal, acusar um morador de Itaquera de elitismo contra o filho do seu vizinho, também morador de Itaquera?
Talvez os problemas com o rolezinho passem por outras chaves. A primeira chave é etária. Jovens, sejam eles de onde forem, vão sempre desafiar os pais, os adultos, quem quer que seja. Faz parte do jogo, e desde Chico Buarque ladrão de carros, passando pelas estripulias alcoólicas do jovem George W.Bush, não importa a classe social ou o país, jovens e adolescentes estão dopados por hormônios. Faça um exame de consciência e pense no que você, do alto dos seus 16 anos, aprontava por ai. Ou, como diz a página de outro evento do rolezinho, desta vez agendado para o shopping Penha:
“Vamos ai pessoal zoa muito conhece novas pessoas e catar muitas minas e curti muito e sem roubo ai so curti mesmo”.
O objetivo é diversão. Aqui ou em qualquer lugar do mundo, aliás, como os New Radicals, que não são radicais, já anunciavam num clipe clássico dos anos 90.
Outra chave é a que abre as portas da diversidade da periferia. Algumas pesquisas mostram que pessoas que moram no limite de uma favela, mas não no seu coração, querem manter toda a distância possível das pessoas que moram nas áreas mais pobres daquela comunidade. Um emprego, uma roupa, tudo é uma marca de progresso, de ascensão, em áreas todas niveladas pela miséria, pelo esgoto a céu aberto, pela falta de educação. Até a música pode virar uma ferramenta. Em Caieiras, as tribos se organizavam por músicas porque, claro, a música que você ouve determina a que parte da periferia a qual você pertence. O simples fato de escutar rock e não rap, lá nos anos 1990, te colocava em outra parte da periferia – igualmente pobre, mas talvez mais respeitável. Eu tinha um vizinho, mulato, que nunca se misturou com a gente porque ele gostava de rock. E quem gosta de rock, ele parecia dizer, era melhor e mais culto do que o restante das pessoas do bairro.
A última chave de compreensão é a cadeia de preconceito e diferenciação – uma variante da segunda chave. Os vendedores desses shoppings da periferia, tão pobres (ou não suficientemente ricos) quantos os seus clientes que vão comprar os tênis caros com dinheiro vivo, torcem o nariz para aquelas pessoas que são tão próximas – mas de quem elas gostariam de manter distância. Os adolescentes do funk ostentação, por sua vez, compram tênis caríssimos para se distinguir dos colegas de bairro que ainda não conseguiram empregos ou renda para comprar um Mizunão de mil reais. Quando pego o trem para Caieiras, essas redes de diferenciação ficam claras. Não é só em Higienópolis que as pessoas evitam o contato com a “gente diferenciada”. Se há algo constante no mundo é a necessidade de uma boa parte das pessoas em se colocar em rankings para mostrar que, por alguma razão, é melhor do que a multidão. O cara do funk ostentação não quer ser confundido com o vizinho camelô.
Aliás, a tentativa de fazer um rolezinho-protesto no shopping JK Iguatemi só mostrou o tamanho da nossa ignorância sobre os rolezinhos. Quem mora longe se sente humilhado num shopping como aquele. Não faz sentido fazer um role de ostentação em um lugar em que você nunca conseguirá se exibir para além da enganadora loja da C&A na fachada. A reação do shopping, colocando seguranças privados e pedindo liminar na Justiça, só mostra como também uma parte da indústria do consumo não compreendeu seus clientes e toma reações desmesuradas. As lojas que você coloca, a maneira como organiza o espaço, os acessos aos centros de compras. Tudo isso já serve como uma barreira invisível e delimita claramente quem pode ou não frequentar esses espaços. Até hoje, confesso, ainda me sinto incomodado ao entrar no shopping Iguatemi, na Faria Lima, para ir ao cinema. O passado sempre volta dizendo “tem certeza que você pode entrar nesse lugar?”
Afinal, não há nada de novo debaixo do sol, como já dizia um trecho do Eclesiastes, da Bíblia, e como mostram os livros dos escritores ingleses e americanos que viram fenômenos semelhantes no século passado. “Jó”, de Joseph Roth, é um bom retrato dos imigrantes e suas agruras para se distinguir em Nova York. Os primeiros capítulos de “O Chalé da Memória”, do historiador Tony Judt, compõem uma excelente análise sobre a dor e a delícia de viver em uma Itaquera londrina no começo do século 20. E,claro, compre “Avenida Dropsie”, de Will Eisner. Os quadrinhos mostram de uma maneira bonita, e triste, a lógica da diferenciação no Bronx. Cada leva de imigrante era discriminada pela geração anterior de imigrantes.
Sociedades com mobilidade social, em profunda transformação, são interessantíssimas e recusam simplismos – não importa a cor da bandeira ou o volume da gritaria nas redes sociais.
A reação
A reação aos rolezinhos, por outro lado, mostra uma história bem mais simples do que o fenômeno, em si. E essa história diz mais sobre o momento em que vivemos do que sobre centenas de adolescentes que organizam uma festa pública no único espaço seguro perto da casa onde eles moram e sobre as pessoas, tão pobres quanto eles, que comem pizza de picanha e tem horror a som com volume alto dentro de um shopping.
Os rolezinhos são grandes festas em espaços privados. Quem conhece a periferia de São Paulo sabe que existem pouquíssimos espaços em que seja possível fazer uma festa, reunir os amigos ou almoçar fora de casa num domingo. O nó é que os shoppings dos rolezinhos são espaços privados e bem organizados no meio de áreas violentas e pobres. E eles são frequentados tanto por jovens querendo fazer um rolezinho quanto por famílias que querem levar a avó para comer no McDonalds pela primeira vez na vida. Como mostra essa matéria do UOL, o Brasil é recordista mundial de venda de McDonalds. É uma tensão séria, difícil de resolver porque há poucos lugares – e todos eles são privados e estão sob disputa. Há vários grupos de pessoas querendo fazer vários usos distintos dos mesmos centros comerciais.
Para complicar, esses shoppings dos rolezinhos são bunkers ainda mais fechados do que um shopping como o Cidade Jardim, onde só se entra de carro. São bunkers porque a desconfiança é maior. Porque a violência é maior. Basta ver que, em Campinas, no segundo final de semana do ano, 12 pessoas foram assassinadas na periferia da cidade. Para garantir o básico, como segurança e algum conforto, esses shoppings são áreas cercadas e fortificadas. E, nesse cenário de desconfiança, as pessoas que esses locais preferem receber são aqueles mais previsíveis – famílias, basicamente. Isso justifica policiais, liminares e barrar a entrada de pessoas? Não. Mas ajuda a entender.
Ainda me recordo do tamanho da minha surpresa quando, faz alguns anos, andei pela primeira vez no Itaim Bibi. Notei, sem entender nada, que várias daquelas casas tinham muros baixos ou não tinham muros. Isso vem mudando, por causa da preocupação das pessoas com a segurança. Mas, em vários bairros da periferia, o muro alto é item de primeira necessidade. É a obra das obras, e isso já vem de bastante tempo, bem antes da construção dos prédios de classe média que se assemelham a uma caixa forte, dado o tamanho da preocupação com segurança. Há um bom livro sobre isso, da antropóloga Teresa Caldeira, chamado Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. No livro, ela analisa como a desconfiança e a segregação são peças comuns a várias áreas da cidade e acabaram ganhando forma visível em muros e grades. Na periferia, em que a violência é altíssima, isso ganha os famosos “contornos dramáticos”. Em um artigo sobre o livro, a professora de Antropologia da UFRJ, Andréa Moraes Alves, resume bem a obra:
>> Caldeira apresenta narrativas sobre o crime e os criminosos, mostrando como elas ressignificam a experiência do crime e reproduzem estereótipos sobre a diferença. O discurso sobre o crime é um discurso classificatório que estabelece fronteiras nítidas entre o bem e o mal. Ponto alto da pesquisa de Caldeira, essa parte do livro consegue, através das entrevistas, mostrar esse princípio classificatório em funcionamento. A fala da senhora de classe média, imigrante da Itália, que se refere a outros migrantes mais recentes, os nordestinos, como responsáveis pelo aumento da criminalidade no seu bairro, é um bom exemplo dessa dinâmica de criação de distanciamentos. O princípio classificatório é capaz de transformar a categoria que estaria mais próxima do narrador – pela condição de migrante –, mas que é diferente – de outra classe social –, em um outro distante e condenado. Ainda mais interessante no trabalho, é que essa criação de fronteiras não se limita a um universo social, Caldeira mostra como o mesmo mecanismo atua entre moradores da periferia e de bairros de elite da cidade de São Paulo.
Em áreas muito violentas, todo mundo é uma ameaça – inclusive o vizinho ou o cliente que escuta som alto. Basta que ele seja um pouquinho diferente. Isso acontece em outras áreas de São Paulo, mas ganha força na periferia. Quando algo parece sair do escopo, a primeira reação das pessoas é apelar para a força. No caso dos shoppings, para a Justiça e para a polícia. Sem mediação, sem diálogo, sem acordo, sem entender minimamente o que ou quem está acontecendo. Na dúvida, é suspeito. Os conflitos, as diferenças, são resolvidos com base nas reações exageradas.
Qual o próximo passo? Os policiais passam a agir da forma como estão acostumados a se comportar: na base da força bruta. Eles se comportam como uma força de segurança preventiva, a mando de uma organização privada, para reprimir pessoas que não cometeram nenhum crime. E cometem descalabros. Há o caso, bizarro, do menino que foi comprar aliança e acabou multado e agredido. Isso não é novo. Abundam notícias sobre excesso de força policial tanto na periferia quanto no centro – como bem mostraram as reações às manifestações de junho. Não é possível esperar outra reação de uma organização treinada para agir sempre com muita força, ao mínimo sinal de que algo saiu fora do manual. Também não é nenhuma novidade que a relação da polícia pública com organizações privadas é íntima – e complicadíssima. Há centenas de policiais que trabalham como seguranças de shoppings, bares e restaurantes nas horas vagas. Provavelmente, alguns deles ganham mais desses shoppings do que da sociedade – e tem um compromisso maior com o shopping do que com a sociedade.
A Justiça, que precisa responder às liminares pedidas por shoppings que querem controlar o fluxo das pessoas, também está confusa e longe de um consenso. Ao rejeitar um dos pedidos de “proibição do rolezinho” em um shopping de Campinas, o juiz entendeu que ”não houve demonstração inequívoca de que os réus poderiam praticar atos que, por si só, fossem aptos a despertar o justo receio de turbação ou esbulho iminentes”. Mas decisões favoráveis aos shoppings foram conseguidas em São Paulo, o que levantou outros questionamentos: Contra exatamente o quê a Justiça está protegendo o shopping? É possível vetar a entrada das pessoas por roupa, faixa etária, aparência? É possível determinar exatamente o número de pessoas que caracterizam um rolezinho? Eu sei que há uma grande discussão sobre a propriedade privada dos shoppings versus o direito à circulação, mas não é esse o ponto. Os juízes que embarcaram no medo dos shoppings parecem ver o problema de longe, distante, como se legislasse do Brasil para um fictício país distante que fala português com sotaque paulistano.
Quando tudo isso chega ao lado de cá da ponte, é filtrado pelas lentes do debate político histérico que tomou conta do país. Tudo parece virar apartheid ou comunismo, direito à livre circulação ou defesa da propriedade privada. Todo mundo tem certezas com base em quase nada. Os blogueiros de direita denunciam a conspiração dos funkeiros contra a civilização ocidental. Os blogueiros de esquerda veem apartheid das elites nos shoppings da periferia. Vira um festival livre de loucura, um campeonato nacional de associação livre, em que cada lado atribui um valor a esse encontro de lazer de acordo com a conjuntura política. O fenômeno deixa de ser analisado em si, e passa a ser analisado para servir de arma numa briga muito maior. Esses jovens de Itaquera, do Campo Limpo, de Interlagos, são desumanizados e se tornam aríetes de uma luta da qual eles não têm a menor ideia que estão participando. E as decisões da Justiça, difíceis de entender, só mostram o tamanho do desconhecimento.
Não há razão para idolatrar ou demonizar os rolezinhos. Talvez haja furtos, talvez haja arrastões, e não há nada que a polícia possa fazer senão impedir que as pessoas pobres que frequentem esses shoppings sejam roubadas ou furtadas. Mas também não faz nenhum sentido impedir que essas pessoas entrem em shoppings pelo simples fato de usarem um boné de aba reta ou um tênis cheio de cores. Os rolezinhos são o que são. E merecem estudos, debates e reflexões melhores do que vem recebendo até agora.
Porque se tem algo que os rolezinhos legam, com certeza, nesse mar de dúvidas, hipóteses e exageros, é que o nível do debate da ponte pra cá anda bem baixo. E, quando se mete a falar de periferia, esse gigante desconhecido, ganha contornos constrangedores. A periferia é muito mais complicada do que nossos veredictos em 140 caracteres. Como já diria Bob Dylan, há quase 50 anos, em Ballad of a Thin Man (uma música que provavelmente incomodou tanto quanto funk ostentação em seu tempo):
“Você esteve com os professores
E todos eles gostaram de sua fachada
Com grandes advogados você tem
Discutido leprosos e ladrões
Você passou por todos
Todos os livros de F. Scott Fitzgerald
Você tem um conhecimento literário amplo
Já se sabe
Mas algo está acontecendo aqui
E você não sabe do que se trata
Sabe, Mr. Jones?”
Poucas pessoas, hoje, podem dizer que compreenderam as margens da cidade. Quem a entendeu com tino comercial fez dinheiro com ela muito anos antes de qualquer pessoa falar da classe C. Uma delas é Samuel Klein: criou as Casas Bahia e descobriu, quando todo mundo dizia que pobre era caloteiro, que assalariados e remediados pagam prestação em dia. Um Samuel Klein jornalista, acadêmico ou especialista faz muita falta nesse debate sobre os rolezinhos. Eles existem, mas ainda estão quietos. É hora de falar. É preciso mudar os termos do debate antes que os pobres sejam humilhados mais uma vez: perdendo a própria humanidade.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Este blog defende este homem e deplora a juristocracia que está tomando conta deste Bananal


por Maria Luiza Quaresma Tonelli (*), no Viomundo

Estamos vivendo, há tempos, um processo galopante de judicialização da política. Nesse contexto, o discurso e os debates políticos começam a tomar a forma de uma linguagem jurídica, substituindo a linguagem política. Tanto os que pretendem vencer nos tribunais o que não conseguem nas urnas como os que representam a a maioria apelam para o discurso jurídico nesse processo de verdadeira tribunalização da democracia.

O paradoxo está no fato de que a linguagem do Direito, que não é a da política, necessita de conhecimento técnico. Questões jurídicas, ou seja, do Direito, são questões técnicas. Portanto, não se trata de uma questão de opinião, mas de interpretação. Mas a judicialização galopante nesses tempos de criminalização da política parece estar formando um país de “operadores do Direito”. Sem conhecimento de causa, deita-se falação a respeito questões das quais se desconhece.

O introito acima presta-se à critica a respeito do debate sobre o pagamento da multa imposta a Genoino em decorrência da sua condenação pelo crime de corrupção ativa, já transitado em julgado.

É compreensível que as pessoas que não têm conhecimento jurídico fiquem indignadas com a obrigação de Genoino, um político que em toda a sua vida não acumulou patrimônio e que jamais teve seu nome ligado a qualquer indício de corrupção, ao pagamento da multa que hoje já passa de 600 mil reais no prazo de 10 dias.

O que não é compreensível é o fato de a imprensa e os blogs não informarem aos leitores sobre o significado da multa imposta a um condenado pela justiça, dando margem a julgamentos ora sob critérios morais, ora sob critérios políticos, quando a questão deve ser analisada sob critérios jurídicos. Ou temos uma imprensa cujo jornalismo é rasteiro, de péssima qualidade, ou a questão é de má-fé mesmo, apenas para servir como mais um pretexto de disputa política.

Portanto, ao leitor deveria ser esclarecido que não cabe a um condenado a opção de não pagar a multa. No caso de Genoino, embora não tenha como arcar com o montante que lhe foi imposto, cumpre pagar. Caso não pague no prazo, a pena não se extingue. Genoino foi condenado a cumprir a pena privativa de liberdade e a pena de multa. Pagar não significa “assumir” a culpa, pelo simples fato de que foi considerado culpado. Por isso foi condenado. Se é justo ou não é outra questão. Achar que pagar a multa é assumir a culpa seria o mesmo que achar que ao entregar-se à justiça Genoino assumiu que é culpado.

Portanto, o ato de solidariedade a Genoino no sentido de arrecadar doações significa ajudá-lo a cumprir uma obrigação que ele tem com a Justiça e que não terminaria após o cumprimento do tempo da sua pena privativa de liberdade, caso o pagamento da multa não seja quitado. Repetindo: a multa é uma pena pecuniária. Uma pena que tem que ser cumprida. É disso que se trata.

Decisões judiciais devem ser cumpridas, porque são questões legais. Se achamos que são injustas que mudemos as leis através da política. Aí sim, estaremos no campo da democracia e da opinião. É pelo exercício da política que aprofundaremos a democracia, o regime da instituição de direitos.

O poder emana do povo e é exercido através de representantes eleitos. Por isso a democracia é o regime, ou sistema político, da soberania popular.

Juízes não representam o povo, pois não são agentes públicos eleitos. Aos juízes compete julgar de acordo com as regras constitucionais e leis que são criadas pelo parlamento, em nome do povo soberano.

Diante de tudo o que foi exposto, é bom que comecemos a pensar sobre o que está acontecendo neste país. É preciso que se crie uma cultura dos direitos, sem a qual não existe verdadeira democracia. O discurso do Direito é não pode substituir o discurso da política. É isso o que interessa à direita. Não é por acaso que a parceria entre a mídia hegemônica e o STF estão nos conduzindo a uma juristocracia. Compete aos poderes políticos, principalmente ao poder Legislativo, retomar as rédeas da política. É a democracia que está em jogo.

(*) Maria Luiza Tonelli é advogada, professora, mestre e doutora em Filosofia pela USP