Gaza é a janela de nossa futura distopia. A crescente
divisão entre a elite do mundo e sua miserável massa de humanidade é mantida
por meio de uma violência em espiral. Muitas regiões empobrecidas do planeta,
que caíram no abismo econômico, começam a assemelhar-se a Gaza, onde 1,6
milhões de palestinos vivem no maior campo de concentração do planeta [1 - ver notas da tradutora no final do post].
Essas zonas de sacrifício, cheias de pessoas deploravelmente
pobres, presas em favelas miseráveis ou em aldeias cujas casas têm paredes de
barro, cada vez mais vêm sendo sitiadas por cercas eletrônicas, monitoradas por
câmeras de vigilância e drones, e rodeadas por guardas de fronteira ou unidades
militares que atiram para matar.
Essas distopias de pesadelo se estendem da África
subsaariana ao Paquistão e à China. Nesses locais, assassinatos propositais são
executados, ataques militares brutais são feitos a pessoas deixadas sem defesa,
sem exército, sem marinha e sem força aérea. Todas as tentativas de resistência,
embora ineficazes, deparam com a carnificina que caracteriza a moderna
indústria da guerra.
No novo cenário global, como nos territórios ocupados por
Israel e nos projetos imperialistas dos EUA no Iraque, no Paquistão, na
Somália, no Iêmen e no Afeganistão, massacres de milhares de inocentes
indefesos são classificados como “guerra”.
A resistência é denominada provocação, terrorismo ou crime
contra a humanidade. O respeito às leis, assim como as mais básicas liberdades
civis e o direito à autodeterminação, é uma ficção usada como relações-públicas
para aplacar a consciência de quem vive nas zonas de privilégio.
Prisioneiros são rotineiramente torturados ou
“desaparecidos”. A falta de alimentos e de suprimentos médicos são uma tática
de controle aceita. Mentiras permeiam as ondas eletromagnéticas (rádios e TVs).
Grupos religiosos, raciais e étnicos são demonizados. Chovem mísseis sobre
casebres de alvenaria, unidades mecanizadas atiram em aldeões desarmados,
canhoneiras esmagam campos de refugiados com bombardeios pesados, e os mortos,
incluindo crianças, enfileiram-se em corredores de hospitais aos quais faltam
eletricidade e medicamentos.
O colapso iminente da economia internacional, os ataques ao
clima e suas consequências, como secas, alagamentos, declínio rápido de safras
e aumento no preço dos alimentos estão criando um universo onde o poder se
divide entre elites restritas, que têm nas mãos sofisticados instrumentos de
morte, e massas enraivecidas.
As crises vêm incentivando uma guerra de classes que
sobrepujará tudo aquilo que Karl Marx poderia ter imaginado. Elas estão
construindo um mundo onde a maioria terá fome e viverá com medo, enquanto
poucos irão se empanturrar com delícias em fortins protegidos. E mais e mais
pessoas serão sacrificadas para manter esse desequilíbrio.
Por ter poder para isso, Israel – assim como os Estados
Unidos – desrespeitam [2] o direito internacional para manter na miséria uma
população dominada. A presença continuada das forças de ocupação israelenses
[nos Territórios Palestinos Ocupados- TPOs] desafia quase cem resoluções do
Conselho de Segurança da ONU pedindo sua retirada [dos TPOs].
O bloqueio israelense a Gaza, estabelecido em junho de 2007,
é uma forma brutal de punição coletiva que viola o artigo 33 da IV Convenção de
Genebra, que determina as regras para a “proteção de civis em tempo de guerra”.
O bloqueio transformou Gaza num pedaço de inferno, num gueto
administrado por Israel onde milhares morrem, incluindo os 1,4 mil [são quase
1,5 mil] civis assassinados na incursão israelense de 2008. Com 95% das
fábricas fechadas, a indústria palestina virtualmente parou de funcionar. Os
restantes 5% operam com 25% a 50% de sua capacidade. Até o setor pesqueiro está
moribundo. Israel recusa-se a permitir que os pescadores ultrapassem três
milhas náuticas da costa, e dentro desse limite os barcos pesqueiros com
frequência são alvo dos tiros israelenses.
As patrulhas de fronteira israelenses confiscaram 35% das
terras cultiváveis de Gaza para criar nelas zonas-tampões [3].
O colapso da infraestrutura e o confisco israelense dos
aquíferos fazem com que em muitos campos de refugiados, como Khan Yunis, não
haja água corrente.
A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados
Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês) estima que 80% de todos os habitantes de
Gaza dependem, atualmente, de ajuda alimentar. E a alegação israelense de
autodefesa esconde o fato de que Israel mantém uma ocupação ilegal e viola o
direito internacional ao impor a punição coletiva aos palestinos.
Foi Israel que escolheu aumentar a violência quando, durante
uma incursão a Gaza no início do mês, suas forças mataram um garoto de 13 anos.
À medida que o mundo se arrebenta, este se torna o novo paradigma: senhores da
guerra modernos se inundam com tecnologias e armas aterrorizantes, que matam
povos inteiros.
Fizemos [os estadunidenses] o mesmo no Afeganistão, no
Iraque, no Paquistão, no Iêmen e na Somália.
As forças do mercado e os mecanismos militares que protegem
essas forças são a única ideologia que governa os Estados industriais e o
relacionamento dos seres humanos com o mundo natural. É uma ideologia que
resulta em milhões de mortos e outros milhões de desalojados no mundo moderno.
E a espantosa/abominável álgebra dessa ideologia significa que essas forças
irão, eventualmente, também desencadear-se sobre nós.
Aqueles que não são úteis para as forças do mercado são
considerados descartáveis. Não têm direitos nem legitimidade. Sua existência,
seja em Gaza, seja em cidades pós-industriais doentes como Camden, Nova Jersey,
é considerada dejeto da eficiência e do progresso. Essas pessoas são vistas
como refugo. E como refugo não têm voz nem liberdade, e podem ser extintas ou
aprisionadas à vontade. Este é um mundo onde apenas o poder corporativo e o
lucro são sagrados. É um mundo de barbárie.
“Ao dispor do poder de trabalho humano, o sistema disporia,
incidentalmente, da entidade “ser humano” sob os pontos de vista físico,
psicológico e moral”, escreveu Karl Polanyi [4] em The Great Transformation
[A grande transformação]. E continua:
"Privados da cobertura protetora de instituições culturais,
os seres humanos pereceriam diante dos efeitos da exposição social; morreriam
como vítimas de deslocamentos sociais agudos em consequência do vício, do crime
e da fome. A natureza seria reduzida a seus elementos, com vizinhanças
e paisagens violadas, rios poluídos, segurança militar ameaçada, poder de
produzir alimentos e matéria prima destruído".
"Finalmente, a administração do mercado de compra de poder periodicamente
liquidaria empresas comerciais porque a escassez e a fartura de dinheiro
provariam ser tão desastrosas para os negócios como os alagamentos e as secas
para as sociedades primitivas".
"Sem dúvida, os mercados de trabalho, da terra e do dinheiro
são essenciais para uma economia de mercado. Mas nenhuma sociedade pode agüentar
os efeitos desse sistema de ficções brutas, nem mesmo pelo menor período, a
menos que sua substância humana e natural, assim como sua organização de
negócios, estejam protegidas contra os estragos desse moinho satânico".
Existem 47,1 milhões de estadunidenses que dependem de
auxílio-alimentação para comer. As elites estão tramando acabar com esse
auxílio, assim como com outros programas de “direitos” que evitam que os pobres
se tornem miseráveis.
O ímpeto de trilhões de dólares do Medicare, Medicaid e de
outros programas sociais, dado o impasse político em Washington e o aumento do
“abismo fiscal”, agora parece incerto.
Há 50 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza,
mas porque a linha da pobreza é tão baixa – US$ 22.350 para uma família de
quatro pessoas – esse número nada significa. Acrescente-se a isso as dezenas de
milhões de estadunidenses de uma categoria chamada “próxima à pobreza”,
incluindo as famílias que tentam viver com menos de US$ 45 mil por ano e
ter-se-ão ao menos 30% do país na pobreza.
Assim que essas pessoas perceberem que não haverá
recuperação econômica, que seu padrão de vida continuará a cair, que foram
enganadas, que a esperança no futuro é uma ilusão, elas se tornarão tão
furiosas como os manifestantes da Grécia e da Espanha ou os militantes de Gaza
ou do Afeganistão.
Os bancos e outras corporações financeiras entregaram
trilhões em empréstimos sem juros do Federal Reserve, enquanto acumulavam US$ 5
trilhões, em grande parte pilhados do Tesouro dos EUA. Quanto mais essas
disparidade e desigualdade mundiais forem perpetuadas, mais as massas se
revoltarão e mais depressa replicaremos internamente o modelo israelense de
controle doméstico – drones acima de nossas cabeças, todos os dissidentes
criminalizados, equipes SWAT rompendo pelas portas, força mortal como modo
aceitável de subjugação, alimentos usados como armas e vigilância constante.
Em Gaza e em outras partes doentes do globo vemos essa nova
configuração de poder.
O que está acontecendo em Gaza, assim como o que ocorre com
pessoas negras em comunidades marginais nos EUA, são o modelo. As técnicas de
controle, sejam elas aplicadas por israelenses, sejam usadas por unidades de
polícia militarizada nas guerras contra drogas de nossas cidades, sejam
empregadas por forças militares especiais ou por mercenários no Paquistão, no
Afeganistão ou no Iraque, são testadas primeiro e aperfeiçoadas nos
fragilizados e nos despossuídos.
Nossa insensível indiferença ao apelo dos palestinos e das
centenas de milhões de pobres empacotados em favelas urbanas na Ásia ou na
África, assim como de nossa própria subclasse, significa que as injustiças
cometidas contra eles serão cometidas contra nós. Ao falhar com eles, falhamos
conosco.
À medida que o império dos EUA implode, as mais brutais
formas de violência empregadas fora do império começam a migrar de volta para o
país. Ao mesmo tempo, os sistemas internos de governança democrática
calcificaram-se.
A autoridade centralizada está nas mãos de um setor
executivo que serve, como escravo, aos interesses corporativos globais.
A imprensa e os poderes judiciário e legislativo tornaram-se
desdentados e decorativos.
O espectro do terrorismo, como em Israel, é usado pelo
Estado para desviar gigantescos gastos para a segurança do país, para a
vigilância militar e interna.
A privacidade é abolida. A dissidência é traição. Os
militares, com seu mantra de obediência cega e de força, caracterizam a ética
sombria da cultura vasta. A beleza e a verdade são abolidas. A cultura é
degradada em besteiras. A vida emocional e intelectual de cidadãs e cidadãos é
devastada pelo espetáculo, pelo mau gosto e pela malícia, assim como por
montões de analgésicos e narcóticos. A ambição cega, o desejo de poder e uma
grotesca vaidade pessoal – exemplificadas por David Petraeus e sua ex-amante –
são os motores do progresso.
O conceito de bem comum não faz mais parte do léxico do
poder. Este, como a novelista J.M. Coetzee escreve, é a “flor suja da
civilização”. É Roma sob Diocleciano. Somos nós. Os impérios, no final, decaem
em regimes despóticos, assassinos e corruptos que enfim consomem a si mesmos. E
nós, como Israel, agora tossimos sangue.
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Chris Hedges*, cuja coluna é publicada às
segundas-feiras em Truthdig, passou quase duas décadas como correspondente
internacional na América Central, no Oriente Médio, na África e nos Bálcãs.
Escreveu reportagens em mais de 50 países e trabalhou para The Christian
Science Monitor, National Public Radio, The Dallas Morning News e The New York
Times, para o qual foi correspondente internacional por 15 anos.
Comentário da tradutora:
Quem me conhece sabe que penso exatamente como Hedges.
Infelizmente, não tenho seu talento e meu artigo sobre esse assunto está só na
forma de esboço. É preciso ler este texto para entender por que os sionistas
estão pressionando tanto o FSMPL (Fórum Social Mundial pela Palestina Livre)--
trata-se de uma pedra no sapato de quem, como eles, vêm mostrando as garras na
América Latina e dominando nossos governos. É preciso ler este texto para
saber por que insisto tanto num foco de luta mais amplo, contra o sionismo.
Vamos deixar como está ou vamos reagir?
[1] Dada a vida que levam, em consequência do bloqueio e dos
ataques genocidas de Israel, os habitantes de Gaza preferem usar a expressão
“campo de extermínio”.
[2] No original, flout, que também significa caçoar, zombar
– termos mais apropriados ao que Israel e EUA fazem com o direito internacional.
[3] Zonas-tampões são terras palestinas que Israel confisca
para manter, entre a linha de fronteira e Gaza (ou as vilas e cidades da
Cisjordânia), uma área vazia, de acesso proibido aos palestinos, cercada e
vigiada por soldados armados.
[4] Ver Karl Polanyi (em inglês). Embora o
trecho citado neste texto seja interessante, é preciso manter um olhar crítico
em Polanyi. Ele falhou exatamente onde o outro Karl, o Marx, acertou. Como
filósofo, Marx foi fundo na ontologia para entender a formação da riqueza e do
capital, ao passo que Polanyi não fez senão um sobrevoo nessas mesmas questões.