Nelson Mandela morreu na condição rara e merecida de herói da humanidade. A derrota do apartheid sul-africano marcou uma derrota fundamental do sistema colonial, construído ao longo de cinco séculos de história.
A estatura atual de Mandela não deve obscurecer o cidadão concreto nem a situação real de onde ele emergiu. Sua luta envolveu adversários poderosos e bem colocados na economia mundial, que tiveram um papel decisivo na preservação de um regime que sempre causou horror na maioria (algumas?) das pessoas do século XX – mas era mantido e alimentado em função dos ganhos que gerava a seus beneficiários, dentro e fora do país.
Não se pode compreender a longa temporada de Mandela na prisão – de onde saiu, certa vez, com princípio de tuberculose – nem a absurda sobrevivência de um sistema de opressão dos mais infames que a humanidade já conheceu sem entender o papel das chamadas potencias ocidentais em sua preservação.
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Na década de 1980, quando a luta contra o apartheid já provocava gestos de repúdio internacional e até boicote econômico, o presidente Jacques Chirac, principal estrela do conservadorismo francês do período, fez diversos exercícios para reforçar a musculatura da elite branca que submetia o país inteiro. Sob François Mitterrand o governo francês havia conseguido impor sanções através da ONU e retirou o embaixador de Pretória. O país também dava abrigo a exilados importantes. De volta ao poder, Chirac reabriu a embaixada, cortejou lideranças negras que negociavam pactos de preservação com o regime sul-africano e ainda enviou uma comitiva de parlamentares em missão de boa vontade: “o apartheid não existe,” disseram eles, de volta a Paris.
Chirac era capaz de dizer frases de um tipo de pedantismo bem conhecido: “Condeno o apartheid de forma veemente mas a questão é extremamente complexa.”
O fato é que não estava só em meio a tantas “complexidades”. Líderes da grande reação conservadora dos anos 1980, que implicou em ataques a direitos e conquistas dos trabalhadores e da população mais pobre no mundo inteiro, Ronald Reagan e Margareth Thatcher mostraram, também no África do Sul, que tinham uma visão bastante peculiar, “complexa”, é claro, daquilo que chamavam de estado mínimo e direitos individuais. Davam-se as mãos para reforçar o estado máximo que combatia Mandela enquanto sustentavam, por exemplo, a ditadura também máxima de Augusto Pinochet no Chile. Com o velho pretexto de que era preciso combater o comunismo, faziam o possível para evitar toda mudança, toda alteração no estado de coisas que pudesse democratizar o país e entregar o governo a sua maioria de cidadãos. Thatcher chegou a opor-se a simples missões de caráter humanitário a África do Sul, lembra Jack Lang, ex-ministro de Cultura da França, no livro “Nelson Mandela, lição de uma vida.”
Quando Mandela conquistou o direito de fazer pronunciamentos públicos, um dos assessores de Thatcher desqualificou suas declarações como uma prova de que “o sofrimento não havia lhe ensinado nada”.
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Principal liderança política de um continente que forneceu a mão de obra que colocou de pé boa parte da riqueza que se conhece no planeta, e jamais foi devidamente recompensada por isso, é natural que Mandela seja alvo de estudo e admiração. O empenho dos aliados do apartheid para preservar um regime criminoso ajuda a entender mesmo vitórias tão admiráveis estão longe de constituir um conto de fadas.
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