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terça-feira, 28 de abril de 2015

A vida e o Direito: breve manual de instruções




Patrono da turma de 2014 da faculdade de Direito da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, proferiu emocionante discurso com reflexões essenciais relacionadas à vida e ao Direito:


Introdução

Eu poderia gastar um longo tempo descrevendo todos os sentimentos bons que vieram ao meu espírito ao ser escolhido patrono de uma turma extraordinária como a de vocês. Mas nós somos – vocês e eu – militantes da revolução da brevidade. Acreditamos na utopia de que em algum lugar do futuro juristas falarão menos, escreverão menos e não serão tão apaixonados pela própria voz.

Por isso, em lugar de muitas palavras, basta que vejam o brilho dos meus olhos e sintam a emoção genuína da minha voz. E ninguém terá dúvida da felicidade imensa que me proporcionaram. Celebramos esta noite, nessa despedida provisória, o pacto que unirá nossas vidas para sempre, selado pelos valores que compartilhamos.

É lugar comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções. Porém, não resisti à tentação – mais que isso, à ilimitada pretensão – de sanar essa omissão. Relevem a insensatez. Ela é fruto do meu afeto. Por certo, ninguém vive a vida dos outros. Cada um descobre, ao longo do caminho, as suas próprias verdades. Vai aqui, ainda assim, no curto espaço de tempo que me impus, um guia breve com ideias essenciais ligadas à vida e ao Direito.

A regra nº 1

No nosso primeiro dia de aula eu lhes narrei o multicitado "caso do arremesso de anão". Como se lembrarão, em uma localidade próxima a Paris, uma casa noturna realizava um evento, um torneio no qual os participantes procuravam atirar um anão, um deficiente físico de baixa altura, à maior distância possível. O vencedor levava o grande prêmio da noite. Compreensivelmente horrorizado com a prática, o Prefeito Municipal interditou a atividade.

Após recursos, idas e vindas, o Conselho de Estado francês confirmou a proibição. Na ocasião, dizia-lhes eu, o Conselho afirmou que se aquele pobre homem abria mão de sua dignidade humana, deixando-se arremessar como se fora um objeto e não um sujeito de direitos, cabia ao Estado intervir para restabelecer a sua dignidade perdida. Em meio ao assentimento geral, eu observava que a história não havia terminado ainda.

E em seguida, contava que o anão recorrera em todas as instâncias possíveis, chegando até mesmo à Comissão de Direitos Humanos da ONU, procurando reverter a proibição. Sustentava ele que não se sentia – o trocadilho é inevitável – diminuído com aquela prática. Pelo contrário.

Pela primeira vez em toda a sua vida ele se sentia realizado. Tinha um emprego, amigos, ganhava salário e gorjetas, e nunca fora tão feliz. A decisão do Conselho o obrigava a voltar para o mundo onde vivia esquecido e invisível.

Após eu narrar a segunda parte da história, todos nos sentíamos divididos em relação a qual seria a solução correta. E ali, naquele primeiro encontro, nós estabelecemos que para quem escolhia viver no mundo do Direito esta era a regra nº 1: nunca forme uma opinião sem antes ouvir os dois lados.

A regra nº 2

Nós vivemos em um mundo complexo e plural. Como bem ilustra o nosso exemplo anterior, cada um é feliz à sua maneira. A vida pode ser vista de múltiplos pontos de observação. Narro-lhes uma história que li recentemente e que considero uma boa alegoria. Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: "Não é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar, percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida". Diante de tal depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi salvo, você está aqui, deveria ter passado a acreditar". E o ateu responde: "Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida". Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto aos fatos, apenas sobre como interpretá-los.

Quem está certo? Onde está a verdade? Na frase feliz da escritora Anais Nin, “nós não vemos as coisas como elas são, nós as vemos como nós somos”. Para viver uma vida boa, uma vida completa, cada um deve procurar o bem, o correto e o justo. Mas sem presunção ou arrogância. Sem desconsiderar o outro.

Aqui a nossa regra nº 2: a verdade não tem dono.

A regra nº 3

Uma vez, um sultão poderoso sonhou que havia perdido todos os dentes. Intrigado, mandou chamar um sábio que o ajudasse a interpretar o sonho. O sábio fez um ar sombrio e exclamou: "Uma desgraça, Majestade. Os dentes perdidos significam que Vossa Alteza irá assistir a morte de todos os seus parentes". Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar cem chibatadas no sábio agourento. Em seguida, mandou chamar outro sábio. Este, ao ouvir o sonho, falou com voz excitada: "Vejo uma grande felicidade, Majestade. Vossa Alteza irá viver mais do que todos os seus parentes". Exultante com a revelação, o Sultão mandou pagar ao sábio cem moedas de ouro. Um cortesão que assistira a ambas as cenas vira-se para o segundo sábio e lhe diz: "Não consigo entender. Sua resposta foi exatamente igual à do primeiro sábio. O outro foi castigado e você foi premiado". Ao que o segundo sábio respondeu: "a diferença não está no que eu falei, mas em como falei".

Pois assim é. Na vida, não basta ter razão: é preciso saber levar. É possível embrulhar os nossos pontos de vista em papel áspero e com espinhos, revelando indiferença aos sentimentos alheios. Mas, sem qualquer sacrifício do seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em papel suave, que revele consideração pelo outro.

Esta a nossa regra nº 3: o modo como se fala faz toda a diferença.

A regra nº 4

Nós vivemos tempos difíceis. É impossível esconder a sensação de que há espaços na vida brasileira em que o mal venceu. Domínios em que não parecem fazer sentido noções como patriotismo, idealismo ou respeito ao próximo. Mas a história da humanidade demonstra o contrário. O processo civilizatório segue o seu curso como um rio subterrâneo, impulsionado pela energia positiva que vem desde o início dos tempos. Uma história que nos trouxe de um mundo primitivo de aspereza e brutalidade à era dos direitos humanos. É o bem que vence no final. Se não acabou bem, é porque não chegou ao fim. O fato de acontecerem tantas coisas tristes e erradas não nos dispensa de procurarmos agir com integridade e correção. Estes não são valores instrumentais, mas fins em si mesmos. São requisitos para uma vida boa. Portanto, independentemente do que estiver acontecendo à sua volta, faça o melhor papel que puder. A virtude não precisa de plateia, de aplauso ou de reconhecimento. A virtude é a sua própria recompensa.

Eis a nossa regra nº 4: seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando.

A regra nº 5

Em uma de suas fábulas, Esopo conta a história de um galo que após intensa disputa derrotou o oponente, tornando-se o rei do galinheiro. O galo vencido, dignamente, preparou-se para deixar o terreiro. O vencedor, vaidoso, subiu ao ponto mais alto do telhado e pôs-se a cantar aos ventos a sua vitória. Chamou a atenção de uma águia, que arrebatou-o em vôo rasante, pondo fim ao seu triunfo e à sua vida. E, assim, o galo aparentemente vencido reinou discretamente, por muito tempo. A moral dessa história, como próprio das fábulas, é bem simples: devemos ser altivos na derrota e humildes na vitória. Humildade não significa pedir licença para viver a própria vida, mas tão-somente abster-se de se exibir e de ostentar. Ao lado da humildade, há outra virtude que eleva o espírito e traz felicidade: é a gratidão. Mas atenção, a gratidão é presa fácil do tempo: tem memória curta (Benjamin Constant) e envelhece depressa (Aristóteles). Portanto, nessa matéria, sejam rápidos no gatilho. Agradecer, de coração, enriquece quem oferece e quem recebe.

Em quase todos os meus discursos de formatura, desde que a vida começou a me oferecer este presente, eu incluo a passagem que se segue, e que é pertinente aqui. "As coisas não caem do céu. É preciso ir buscá-las. Correr atrás, mergulhar fundo, voar alto. Muitas vezes, será necessário voltar ao ponto de partida e começar tudo de novo. As coisas, eu repito, não caem do céu. Mas quando, após haverem empenhado cérebro, nervos e coração, chegarem à vitória final, saboreiem o sucesso gota a gota. Sem medo, sem culpa e em paz. É uma delícia. Sem esquecer, no entanto, que ninguém é bom demais. Que ninguém é bom sozinho. E que, no fundo no fundo, por paradoxal que pareça, as coisas caem mesmo é do céu, e é preciso agradecer".

Esta a nossa regra nº 5: ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.

Conclusão

Eis então as cláusulas do nosso pacto, nosso pequeno manual de instruções:


1. Nunca forme uma opinião sem ouvir os dois lados;

2. A verdade não tem dono;

3. O modo como se fala faz toda a diferença;

4. Seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando;

5. Ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.


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Aqui nos despedimos. Quando meu filho caçula tinha 15 anos e foi passar um semestre em um colégio interno fora, como parte do seu aprendizado de vida, eu dei a ele alguns conselhos. Pai gosta de dar conselho. E como vocês são meus filhos espirituais, peço licença aos pais de vocês para repassá-los textualmente, a cada um, com toda a energia positiva do meu afeto:


(i) Fique vivo;

(ii) Fique inteiro;

(iii) Seja bom-caráter;

(iv) Seja educado; e

(v) Aproveite a vida, com alegria e leveza.


Vão em paz. Sejam abençoados. Façam o mundo melhor. E lembrem-se da advertência inspirada de Disraeli: "A vida é muito curta para ser pequena".



quarta-feira, 22 de abril de 2015

A Grécia deve pagar sua dívida?...



por Renaud Lambert, excerto garimpado no Le Monde Diplomatique


Os juristas se referem a essa obrigação usando uma forma latina – Pacta sunt servanda (As condições devem ser respeitadas) –, mas durante as últimas semanas circularam as mais diversas traduções dela. Versão moralizadora: “A Grécia tem o dever ético de pagar sua dívida” (Front National). Versão nostálgica dos playgrounds: “A Grécia deve pagar, são as regras do jogo” (Benoît Coeuré, membro da direção do Banco Central Europeu). Versão insensível às suscetibilidades populares: “As eleições não mudam nada” em relação aos compromissos dos Estados (Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças alemão).

A dívida helênica beira os 320 bilhões de euros; proporcionalmente à produção de riqueza, ela saltou 50% desde 2009. Segundo o Financial Times, “para pagá-la a Grécia teria de funcionar como uma economia escrava” (27 jan. 2015).

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Um em cada dois jovens gregos está desempregado; 30% da população vive abaixo do limite de pobreza; 40% passaram o inverno sem aquecimento. Uma parte da dívida foi gerada sob a ditadura dos coronéis (1967-1974), durante a qual ela quadruplicou; outra foi contraída em prejuízo da população (posto que visou amplamente ao fornecimento de fundos para estabelecimentos de crédito franceses e alemães); outra decorre diretamente da corrupção dos dirigentes políticos por transnacionais desejosas de vender seus produtos, por vezes defeituosos, em Atenas (como a empresa alemã Siemens); sem falar das ignomínias de bancos como o Goldman Sachs, que ajudou o país a disfarçar sua fragilidade econômica... Os gregos dispõem de mil e uma justificativas para recorrer ao direito internacional e atenuar o fardo de uma dívida que uma auditoria classificaria como odiosa, ilegítima e ilegal. Mas a aplicação do direito repousa quase sempre na natureza da correlação de forças entre as partes.

Em 1898, os Estados Unidos declararam guerra à Espanha dando como justificativa uma explosão a bordo do USS Maine, que estava fundeado no porto de Havana. Eles “libertaram” Cuba, que transformaram em protetorado – reduzindo a “independência e a soberania da República cubana ao estado de mito”, segundo o general cubano Juan Gualberto Gómez, que havia tomado parte na guerra da independência. A Espanha exigiu o pagamento de dívidas que a ilha tinha “contraído com ela” – no caso, os custos de sua agressão. A Coroa se apoiou sobre aquilo que Coeuré teria sem dúvida chamado de “as regras do jogo”. Como lembra a pesquisadora Anaïs Tamen, “a exigência espanhola se apoiava em fatos análogos, sobretudo o comportamento de suas ex-colônias que haviam tomado a seu encargo a parte da dívida pública que servira à colonização delas”. Os próprios Estados Unidos não tinham “entregue mais de 15 milhões de libras esterlinas ao Reino Unido na independência”?

Washington não entendeu as coisas dessa maneira e avançou uma ideia até então pouco divulgada (que contribuiria para fundamentar a noção de dívida odiosa): não se deveria exigir que uma população pagasse uma dívida contraída para escravizá-la. A imprensa norte-americana retransmitiu a firmeza dessa posição: “A Espanha não deve sustentar a menor esperança de que os Estados Unidos sejam suficientemente estúpidos ou inertes para aceitar a responsabilidade de somas que serviram para exaurir os cubanos”, bradou o Chicago Tribune de 22 de outubro de 1898. Cuba não despenderia um centavo.

Alguns anos antes, o México havia tentado desenvolver argumentos semelhantes. Em 1861, o presidente Benito Juárez suspendeu o pagamento da dívida, em grande parte contraída pelos regimes precedentes, entre os quais o do ditador Antonio López de Santa Anna. A França, o Reino Unido e a Espanha ocuparam o país e fundaram um império que entregaram a Maximiliano da Áustria.

Uma redução de 90% para a Alemanha

À imagem da URSS, que anunciou em 1918 que não pagaria as dívidas contraídas por Nicolau II, os Estados Unidos reiteraram seu golpe em benefício do Iraque no início do século XXI. Alguns meses após a invasão do país, o secretário do Tesouro, John Snow, anunciou na Fox News: “Obviamente, o povo iraquiano não deve ser oprimido pelas dívidas contraídas em benefício do regime de um ditador agora em fuga” (11 abr. 2003). A urgência, para Washington: assegurar a solvência do poder que estabeleceu em Bagdá.

Emergiu então uma ideia que deixaria estupefatos os defensores da “continuidade dos compromissos dos Estados”: o pagamento da dívida dependeria menos de uma questão de princípio que de matemática. “O mais importante é que a dívida seja sustentável”, desafiava um editorial do Financial Times em 16 de junho de 2003. A lógica foi conveniente para Washington, que não quis se referir ao conceito de dívida odiosa: as cifras falaram, e os Estados Unidos asseguraram que seu veredicto pudesse se impor aos olhos dos principais credores do Iraque, sendo a França e a Alemanha os mais importantes deles (com respectivamente US$ 3 bilhões e US$ 2,4 bilhões em títulos em seu poder). Apressados em se mostrar “justos e flexíveis”, estes – que se recusavam a anular mais de 50% do valor dos títulos que detinham – concederam finalmente uma redução de 80% de suas dívidas.

Três anos antes, nem a lei das cifras nem a do direito internacional tinham sido suficientes para convencer os credores de Buenos Aires a dar uma prova de “flexibilidade”. No entanto, culminando em cerca de 80 bilhões de euros quando da falta de pagamento, em 2001, a dívida argentina se mostrou insustentável. Ela decorria de endividamentos adicionais em grande parte realizados pela ditadura (1976-1983), o que a qualificava como "dívida odiosa". Sem problema: os credores exigiram ser pagos, sem o que iriam fechar a porta dos mercados financeiros para Buenos Aires.

A Argentina se manteve firme. Prometiam-lhe a catástrofe? Entre 2003 e 2009, sua economia registrou uma taxa de crescimento que oscilava entre 7% e 9%. Entre 2002 e 2005, o país propôs aos credores trocar seus títulos por novos, com um valor 40% mais fraco. Mais de três quartos aceitaram, demonstrando desagrado. Mais tarde, o governo abriu novas negociações, que culminaram, em 2010, em uma nova troca de títulos junto a 67% dos credores restantes. Oito por cento dos títulos com pagamento suspenso desde 2001 não foram, no entanto, objeto de acordo. Fundos abutres se empenham hoje em dia em fazê-los serem pagos e ameaçam conduzir a Argentina a um novo calote.

Os credores aceitam, portanto, de má vontade a perda do valor dos títulos que detinham. Esse foi o caso da conferência internacional que visava aliviar a dívida da República Federal da Alemanha (RFA), que ocorreu em Londres entre 1951 e 1952. Os debates da época lembram aqueles que envolvem a Grécia contemporânea, a começar pela contradição entre “princípios” e bom senso econômico.

“Milhares de dólares estão em jogo”, lembrou o jornalista Paul Heffernan, que acompanhou os debates para o New York Times. “Mas não se trata unicamente de uma questão de dinheiro. As conferências do palácio de Lancaster House vão antes de tudo tratar de um dos princípios vitais do capitalismo internacional: a natureza sacrossanta dos contratos internacionais” (24 fev. 1952). Com essas preocupações em mente, os negociadores – sobretudo norte-americanos, britânicos, franceses e alemães – entendiam igualmente as da Alemanha. Numa mensagem de 6 de março de 1951, o chanceler Konrad Adenauer recomendou com insistência a seus interlocutores que “levassem em conta a situação econômica da República Federal”, “notadamente o fato de que o encargo de sua dívida cresce e sua economia se contrai”. Como resumiu o economista Timothy W. Guinnane, todos logo concluíram que “reduzir o consumo alemão não constituía uma solução válida para garantir o pagamento de sua dívida”.

Um acordo foi finalmente assinado em 27 de fevereiro de 1953. Ele previa uma redução de no mínimo 50% dos montantes tomados de empréstimo pela Alemanha entre as duas guerras mundiais; uma moratória de cinco anos para o pagamento das dívidas; um adiamento indefinido das dívidas de guerra que poderiam ter sido reclamadas em Bonn, o que levou Éric Toussaint, da Comissão para a Anulação da Dívidado Terceiro Mundo (CADTM), a estimar a redução das dívidas alemãs em 90%; a possibilidade de Bonn pagar em sua própria moeda; um limite para os montantes consagrados ao serviço da dívida (5% do valor das exportações do país) e para a taxa de juro paga pela Alemanha (também 5%). E não era só isso. Preocupados, esclarece Heffernan, “que tal acordo fosse apenas o prelúdio de um esforço visando aguilhoar o crescimento alemão”, os credores forneceram à produção germânica as oportunidades de que ela precisava e desistiram de vender seus próprios produtos à República Federal. Para o historiador da economia alemã Albrecht Ritschl, “essas medidas salvaram o dia em Bonn e criaram as bases financeiras do milagre econômico alemão” dos anos 1950.

Há muitos anos, o Syriza – no poder na Grécia após as eleições de 25 de janeiro de 2015 – pede para se beneficiar de uma conferência desse tipo. No seio das instituições de Bruxelas, parece, no entanto, que se partilha o sentimento de Leonid Bershidsky: “A Alemanha merecia que aliviassem sua dívida; a Grécia, não”. Numa coluna publicada em 27 de janeiro de 2015, o jornalista do grupo Bloomberg desenvolveu sua análise: “Uma das razões pelas quais a Alemanha Ocidental se beneficiou de uma redução de sua dívida foi o desejo de que a República Federal se tornasse uma defesa de linha de frente na luta contra o comunismo. [...] Os governos alemão-ocidentais que se beneficiaram dessas medidas eram definitivamente antimarxistas”.

O programa do Syriza nada tem de “marxista”. A coalizão reivindica uma forma de social-democracia moderada, comum há algumas décadas. De Berlim a Bruxelas, parece, no entanto, que ela se tornou intolerável.

terça-feira, 21 de abril de 2015

O retardado e seu revólver de madeira



por Fabio de Oliveira Ribeiro, no blog do Nassif

A insistência da oposição e da imprensa de diariamente tentar, se elevando a um ilusório pedestal ético, assaltar o poder conferido pelo povo à Dilma Rousseff na forma da CF/88 é irritante. A moralidade da imprensa (que sonega impostos, faz propaganda de políticos mafiosos e remete dinheiro para a Suíça ilegalmente) é nenhuma, a da oposição um exercício cotidiano de hipocrisia (coisa de bandido perseguido pelo MPF que pretende forjar a própria impunidade). Tudo isto está me deixando com muita raiva. Por isto hoje fui ao sebo.

O primeiro livro que me chamou a atenção foi “Ideologia e Utopia”, de Karl Mannheim, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1956. O segundo foi “Conferências Artigos e Crônicas”, de Monteiro Lobato, editora Brasiliense, São Paulo, 1964. Os dois volumes estavam em bom estado então resolvi adquirir ambos.

Folheando a obra de Monteiro Lobato me deparei com o texto “Como os países se suicidam”, em que o autor se refere às riquezas minerais do Brasil. Diz ele:

“Temos antes de mais nada que os considerar como um depósito confiado à nossa guarda. Não somos os donos. O dono é o país. Reserva única, insubstituível, irreproduzível, que o passado nos legou e de que o futuro nos pedirá contas, fôrça é ter a seu respeito a mais sábia das políticas.”

As palavras de Monteiro Lobato encontram eco nas sábias políticas adotadas por Lula e Dilma Rousseff em relação ao Pré-sal. Urge, portanto, conservar o que nos foi confiado. Aqueles que querem entregar o que é nosso à sanha exploratória dos norte-americanos agem como se fossem donos de algo que pertence ao Brasil, algo que não é propriedade do PSDB, deste ou daquele senador tucano. O livro de Karl Mannheim folhearei um outro dia.

Lobato se notabilizou pela sua literatura infantil. Dai me veio a lembrança três coisas: minha infância, um programa de TV e uma história infantil. Começarei pela última.

Pedro e o Lobo. História conhecida, que hoje pode ser contada mais ou menos assim. Era uma vez num país distante uma oposição que ficava gritando “Impedimento, Impedimento, Impedimento”, tentando fazer a população acreditar que o Presidente era um lobo. A população corria para verificar o que estava ocorrendo e percebia que a oposição estava enganada, que ela mesma é que deveria ser impedida de continuar a dar alarmes falsos ou falsear a realidade. Esta história ainda não chegou ao fim. Se continuar gritando “Impedimento, Impedimento, Impedimento” a oposição corre o risco de ficar mais fraca do que já é ou de transformar a população num lobo que vai devorar o regime constitucional para poder devorar a própria oposição.

Os lobos evocaram em mim a imagem do cordeiro. Então, das cavernas de minha memória infantil emergiu uma história parecida com a de Pedro e o Lobo. Mas nesta o personagem principal é ingenuo e inofensivo. Não lembro o nome do teledrama. Do enredo lembro vagamente e desde logo peço perdão em caso de engano. O protagonista meio retardado, representado pelo então jovem Rolando Boldrin, gostava de filmes de faroeste. Ele era muito querido, mas havia alguém que o odiava. O vilão fez para ele um revólver de madeira identico a um verdadeiro. Vestido de cowboy, com o revolver no coldre, o herói vai passear todo feliz. Abordado pela polícia ele pensa que tudo aquilo não passa de uma brincadeira. Ele saca o brinquedo e é morto. A oposição saca o Impedimento como se o mesmo fosse um brinquedo. O perigo de morte numa guerra civil é sempre real.

O Brasil já teve um presidente que dizia que a questão social era caso de polícia. Os dois últimos presidentes tratam a questão social como ela deve ser tratada, com carinho. A oposição, contudo, segue acreditando que a repressão policial é a única solução para a questão social. Quer reduzir a maioridade penal, aprovar a pena de morte, rebaixar o MST e os outros movimentos sociais à condição de grupos terroristas para que tudo seja solucionado como no princípio do século XX. A oposição não tem política, pois a repressão organizada, a violência estatal e a guerra - seja ela externa ou interna - são a própria negação da política (como, aliás, notou com grande tirocínio Hannah Arendt).

A não política da oposição é a política do “caso especial”. A minoria que representa uma minoria está apontando uma arma de madeira para a população brasileira. Mesmo não sendo ingenua - Aécio Neves, FHC, Caiado, Bolsonaro e seus "canetas" na imprensa estão agindo como vilões que conduzem nosso país a uma guerra civil - a oposição pode acabar como aquele personagem representado por Rolando Boldrin. É fato: nem a imprensa nem os oposicionistas tem controle do Estado e da população. A oposição deve, portanto, se conformar com a derrota eleitoral e fazer política, caso contrário a situação pode ser empurrada pelo povo a encerrar o jogo de maneira autoritária.

Memória é esquecimento. Só consegui lembrar as coisas da minha infância quando esqueci da realidade à minha volta procurando tesouros num sebo. Ao fazer o caminho de volta, da memória para o presente, fui capaz de reelaborar ambas. A oposição esqueceu que é oposição. Insiste em lembrar os bons tempos em que podia mandar e forçar todos à sujeição. Vem daí a sua tragédia e, sobretudo, sua ineficácia política e eleitoral.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

A RBS só nega


por Elaine Tavares, no Observatório da Imprensa

Causa profundo constrangimento abrir a página do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina e não ver uma única linha sobre a Operação Zelotes, que investiga o sumiço de débitos tributários, um desfalque homérico aos cofres públicos no qual está envolvida a mais importante rede de comunicação do estado: a RBS, afiliada da Globo. Há suspeitas de que a empresa dos Sirotsky tenha pago cerca de 15 milhões de reais para que desaparecesse um débito seu com o Estado que pode passar dos 150 milhões de reais. É dinheiro demais da conta. Quem explica isso? E por que o sindicato dos jornalistas não abre a sua boca?

Lembro que durante a gestão do Rubens Lunge foi feito um importante trabalho de denúncia do oligopólio que é a RBS em Santa Catarina. Um trabalho difícil, na medida em que contou com um sistemático boicote. Naqueles dias, um procurador do Ministério Público Federal chegou a entrar com uma ação pedindo a investigação do oligopólio (que tratava da compra de vários jornais no estado), mas ele foi afastado da capital e as coisas esfriaram. Ainda assim, o Sindicato dos Jornalistas, à época dirigido por Rubens Lunge, fez vários atos públicos no centro da cidade, recolheu assinaturas para um abaixo-assinado, buscou apoio junto aos demais sindicatos. Mas pouca ajuda veio e, finalizada a gestão, os novos dirigentes não levaram adiante o trabalho de denúncia. O resultado foi que a ação acabou julgada improcedente pelo juiz Diógenes Marcelino Teixeira, da Terceira Vara Federal de Florianópolis. A justiça se rendendo ao oligopólio.

Agora, quando as notícias fervilham por todo o estado e até nacionalmente, com a RBS envolvida em corrupção – enquanto ela mesmo posa de vestal da moralidade denunciando a corrupção alheia –, o que faz o nosso sindicato de jornalistas? O mesmo que vê, todos os dias, trabalhadores sendo explorados e demitidos sem justa causa por essa empresa? Nada! Nem mesmo um texto de informe. É mesmo a morte do sindicalismo e da própria política nesse campo de luta. Será que os dirigentes do SJSC não percebem o tamanho da bomba que vem por aí? Porque certamente tudo isso vai explodir no lado fraco da corda, os trabalhadores. Certamente haverá cortes, demissões, mais exploração. Esse é um tema que deveria estar na pauta do dia. Lamentável.

Uma moral de cueca

E já que o SJSC não faz seu trabalho, a gente ajuda. A Operação Zelotes tem uma característica que escapa aos “moralistas” de plantão. Ela não envolve políticos – os que são alvos fáceis e preferidos. Ela envolve o sacrossanto setor empresarial. São os bonitinhos e engravatados executivos das empresas que estão dando o calote no Estado brasileiro, deixando de pagar impostos. Não é só a RBS envolvida, não. Estão sendo investigadas a Ford, a Mitsubishi, a BR Foods, a Camargo Corrêa, a Light, a Petrobras e pasmem, também os bancos. Estão na lista o Bradesco, o Santander, o Safra, o BankBoston e o Pactual. Segundo os informes iniciais, essas empresas teriam deixado de pagar aos cofres públicos a bagatela de 5,7 bilhões de reais. Eu disse bilhões.

Esse é um escândalo que está sendo investigado pela Polícia Federal, a Receita Federal, o Ministério Público Federal e a Corregedoria do Ministério da Fazenda. Por certo haverá funcionários da Receita envolvidos, pois o esquema de sumiço dos débitos se dava desde dentro, no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), mas é importante lembrar que não há corrompidos sem um corruptor. Há notícias de que existam pessoas – lobistas – especializadas nesses esquemas de contestação administrativa de débito e as empresas se utilizavam deles para fazerem os débitos desaparecer do sistema.

Conforme as investigações que estão sendo feitas desde 2013, dos 70 processos investigados junto ao Carf, o total de tributos devidos chega a 19 bilhões de reais, sendo que 5,7 comprovadamente foram “desaparecidos” de forma ilegal. Em alguns casos já está acontecendo até a apreensão de bens, como carros de luxo importados. Todas as empresas envolvidas responderão a inquérito administrativo aberto pelo Ministério da Fazenda. A rede da Zelotes pegou gente demais. E o que é mais incrível, gente que até ontem estava nas passeatas gritando contra a corrupção. São os que têm, como popularmente chamamos, uma moral de cueca. Gritam contra seus inimigos e não se preocupam com as travas que têm no próprio olho. Na verdade, é uma gente que nada de braçada no mundo das finanças, certa da impunidade.

Haverá choro e ranger de dentes

Assim, agora, junto com a operação Lava Jato, que investiga o rombo na Petrobras e envolve PSDB e PT, as “renomadas” empresas e bancos privados terão de prestar contas de seus malfeitos. Em Santa Catarina, a RBS tem uma história de expansão vertiginosa. Em pouco tempo de ação no estado foi aos poucos acabando com praticamente toda a imprensa regional. Comprou o Santa, de Blumenau, e A Notícia, de Joinville, que eram jornais de circulação estadual, e os transformou em tabloides locais sem que houvesse qualquer chance do aparecimento de uma voz dissonante no estado. A RBS passou a ser a única voz de circulação estadual a partir doDiário Catarinense. Não bastasse isso, foi estendendo os tentáculos também na televisão e hoje abrange todo o estado com emissoras em cidades-chave. É um oligopólio e oferece ao estado um pensamento único, sempre ancorado nos interesses da classe dominante, reservando aos sindicatos, movimentos sociais e lutas populares a alcunha de baderneiros, bagunceiros e criminosos.

A comunicação em Santa Catarina está sob o controle majoritário dessa empresa que, além de não pagar os tributos corretamente, como agora se anuncia, ainda lucra sobre os trabalhadores, no geral superexplorados. A multifunção é uma realidade denunciada todos os dias, com trabalhadores tendo de cumprir jornadas exaustivas, cumprindo funções de quatro ou cinco pessoas.

É fato que a categoria dos jornalistas é de difícil abordagem e de pouca participação nas lutas corporativas. No geral existe muito medo – e não é para menos quando se vive num estado no qual praticamente todo o mercado de trabalho é dominado por uma única empresa. Aquele que reclama ou que luta fica marcado e as pessoas precisam ganhar a vida. Por isso o trabalho de um sindicato é importante. Porque o sindicato pode falar, denunciar, mostrar. Um sindicato tem as condições de atuar sem medo. Infelizmente não o faz. Nem mesmo agora, quando a denúncia já circula em nível nacional.

É hora dos jornalistas cobrarem ação, se juntarem, participarem da vida sindical. Nos tempos difíceis que virão, não será fácil enfrentar sozinho. Haverá choro e ranger de dentes, mas isso não acontecerá nas salas acarpetadas da empresa de comunicação. Se a RBS tiver de devolver aos cofres o que tem sonegado, é na carne dos trabalhadores que haverá o corte.

É hora de pensar sobre o caso e começar a se mexer.