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sábado, 30 de abril de 2016

O que está posto: Feitiçaria, golpe e fim de ciclo

 
Coppo di Marcovaldo, Inferno (1260-70)



por Ricardo Cavalcanti-Schiel, no Outras palavras
 

O Brasil tem vivido nas últimas semanas uma intensa guerra discursiva. Na noite do último dia 17 teve lugar seu primeiro desenlace. Por impressionantes 25 votos além dos dois terços necessários do plenário, a Câmara dos Deputados aprovou a continuidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, que vai agora para o Senado, casa que, conforme a Constituição, tem a “competência privativa” para julgar os presumidos “crimes de responsabilidade” imputados à presidente e destituí-la do cargo em consequência disso. No entanto, trata-se de um julgamento político, no qual o reconhecimento desses “crimes” poderia não demandar una estrita definição jurídica, como recentemente chegou a insinuar o STF, cujo presidente dirigirá a sessão de julgamento do Senado. Disso se trata a guerra discursiva, pois o casuísmo de todo o processo o torna muito próximo de um simples golpe de Estado.

Algo similar ocorre em algumas sociedades indígenas, com o fenômeno que os antropólogos chamamos de “acusação de feitiçaria”. Não se trata, nesse caso, de comprovar a feitiçaria em si, como encadeamento causal objetivo, mas, uma vez tomada ela como pacífica, põem-se em movimento outros mecanismos sociais (outros encadeamentos lógicos) que especificarão a figura do feiticeiro, atribuindo-a a alguém em particular, seja por conta de seus defeitos éticos seja simplesmente por conta da fragilidade da sua posição social. A partir daí, vários destinos podem aguardar os eventuais feiticeiros, inclusive (como em uma das sociedades em que trabalhei) sua morte a golpes de facão. A acusação de feitiçaria é quase sempre uma maneira (talvez a mais contundente) de uma sociedade se purgar dos seus fantasmas… e se acomodar com isso. Evidentemente que a ausência de objetividade intrínseca, no caso da acusação de feitiçaria, conspira contra a episteme jurídica moderna, daí a que os ocidentais muitas vezes chamarem procedimentos dessa classe de “medievais”. Mas… e na política? pode-se tudo? inclusive em casos em que se trata de uma irremediável imbricação com a lógica jurídica, da qual um processo qualquer extrai seu próprio fundamento de legalidade?

Mais que fragilidade, o governo Dilma parece ter chegado ao ápice da sua nulidade. Sem iniciativa política, encastelado no mito tecnocrata da suficiência da gestão, perdendo-se em iniciativas equivocadas, abraçando programas que traem tudo o que prometeu nas eleições, caçoando, enfim, dos seus próprios eleitores, o atual governo do Partido dos Trabalhadores (PT) não se parece em nada com o programa histórico que alentou essa sigla em suas duas primeiras décadas de existência. Reflexo pálido do “lulismo”, de seu programa de conciliação de classes e de uma inclusão via consumo ― sem mover uma palha nos termos da regulação da cidadania, conforme a lógica pré-existente do privilégio―, o governo Dilma pretendeu ser a governanta de una casa política em processo de ruína, uma vez ido abaixo o boom das commodities. Estabeleceu-se com ministérios provavelmente os mais inexpressivos de toda a história política brasileira e não soube (tanto quanto não quis) estabelecer canais de entendimento, seja com os movimentos sociais seja com os setores produtivos (exceto o agronegócio latifundiário ―para desespero dos ambientalistas e defensores dos direitos indígenas). Para culminar, abraçou toscamente o austericídio neoliberal e lançou o país na maior recessão econômica dos últimos cem anos.

Por outro lado, o programa político do lulismo, sua opção maximizada pelo consumo e sua escusação da cidadania por meio da pretensa suficiência dos expedientes assistenciais, engendraram uma forma de antipolítica que esvaziou não apenas a antes pujante mediação organizativa da representação social, como também os valores do coletivo e da participação, em nome do individualismo das “oportunidades”. A miragem do lulismo consistiu na ideia de que a gestão da máquina governativa e seus programas cosméticos de distribuição seriam suficientes para proporcionar uma inclusão social que não precisaria se traduzir em ampliação de direitos e em nos valores de uma sociabilidade não excludente. A miragem do lulismo expressou-se, em último termo, como uma recusa da política, uma recusa da dimensão coletiva e da representação. A reificação da “gestão”, na figura de Dilma Rousseff, é apenas a lapidação lógica dessa miragem.

O resultado, por fim, foi a eleição, junto com o segundo mandato de Dilma, do parlamento mais conservador desde o final da ditadura; um parlamento fragmentado em 28 partidos, mas que, na prática, é dominado por um grupo de 120 deputados pessoalmente fieis ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, inimigo encarniçado da presidente, e sobre quem, há 25 anos, pesam consistentes acusações judiciais por corrupção. A renúncia do PT em fazer política por meio da mobilização social produziu esse mesmo Congresso que no último domingo assestou um pesado golpe contra o mandato da presidente.

Ao se absolutizar o processo de impeachment como julgamento político, o que os fatos desse domingo propiciariam seria a caução da absoluta fragilidade do governo no Executivo diante da Câmara ― presumidamente, esta, uma representação mais “capilarizada” da sociedade: os representantes do povo “no varejo”. De maneira que, simbolicamente, o julgamento sobre o mandato da presidente já chegaria ao Senado em condições de desvantagem para ela. Mais uma vez, estamos em plena guerra discursiva: se se trata de uma confrontação de legitimidades ou se se trata de um golpe de força, pura e simplesmente.

Se as acusações de feitiçaria prosperam, em parte, por conta da fragilidade daquele sobre quem é posta a carapuça de feiticeiro, por outra parte, a própria feitiçaria precisa ser pressuposta como dada, que é o que torna eficaz e inexorável a imputação. Aqui entra o discurso reducionista e messiânico sobre a corrupção, sua mágica de servir como explicação suficiente e totalizadora para a muita saúva e pouca saúde do país, como também a midiática mágica seletiva de tornar o PT o padrinho da corrupção no Brasil, silenciando, oportuna e concertadamente, sobre a aritmética óbvia que lembraria que a recente Operação Zelotes apurou, sob a forma de sonegação de impostos por bancos e grandes empresas, um desvio de 3 vezes o valor apurado como desvios da Petrobrás, e que o caso Banestado desviou para o exterior, durante os governos FHC (sobretudo em propinas da privatização das teles), entre 15 e 20 vezes o valor apurado no mesmo caso Petrobrás. Não é difícil suspeitar que até hoje as offshores tucanas financiem suas campanhas, comprem fábrica de sorvete e sabe-se lá o que mais.

No que respeita à guerra discursiva, o esforço da direita por caracterizar, a posteriori, as manobras de compensação orçamentária do Executivo federal, usualmente praticadas pelos governos anteriores, como crime, consumando uma tentativa de retroatividade legal, impossibilita que, objetivamente, se reconheça a existência de crime de responsabilidade. Juridicamente, ninguém comete crime quando não existe reconhecimento legal do crime. A retroatividade da lei foi um recurso largamente utilizado pelo Estado nazista para culpabilizar tanto os seus indesejáveis quanto a resistência dos países ocupados, como nos lembra Costa-Gavras no clássico “Sessão Especial de Justiça” (1975). Nossos ilustres deputados, no dantesco espetáculo de mediocridade proporcionado no domingo, recusaram-se a sustentar seus votos sobre qualquer argumento processualmente objetivo. Tratava-se apenas de manejar os códigos de uma acusação de feitiçaria, na qual, curiosamente, “Deus”, tal como em processos análogos séculos atrás, foi chamado a ser um dos principais partícipes. Torna-se bastante óbvio que o processo de impeachment, sobre as bases em que se desenrola, configura um golpe de força por parte da direita, a saber, tão apenas um golpe de Estado.

Nessa guerra, o argumento da defesa da democracia animou a oposição ao impeachment a ocupar um patamar discursivo mais universal, o da defesa de princípios elementares da convivência política, congregando toda a esquerda e a cidadania íntegra, e recusando o particularismo de uma estrita defesa do “governo Dilma” (ainda que muitos petistas, tão empedernidos quanto obtusos, assim o queiram entender); governo que hoje, claramente e por todos os seus méritos, não é defensável senão por algo como 9% da população.

A direita, como sempre, não está nem um pouco preocupada com esses escrúpulos. Como é usual, quando se trata da lógica do privilegio, os caprichos oligárquicos não se pautam por outra coisa senão… seus caprichos mesmos. Essa sempre foi sua pragmática implacável. Aplicá-la nunca foi uma questão de necessidade ou de sobrevivência, mas meramente uma questão de oportunidade. Os governos do PT sempre estiveram cegos para isso; foram tão arrogantes em suas ingênuas verdades “republicanas” que desprezaram irresponsavelmente o inimigo. Neste momento, com seus recursos institucionais, econômicos e midiáticos, é a direita que está na dianteira. Mas a eficácia da acusação de feitiçaria que ela arremeteu não seria possível sem um Congresso venal e cínico e, sobre tudo, sem os erros e a recusa da política por parte do lulismo e da tecnocracia autoritária de Dilma Rousseff.

É possível que o eventual (e até provável) impeachment de Dilma, dada a crescentemente flagrante ilegitimidade desse processo (aí incluída sua repercussão na imprensa internacional), acabe, por ironia, por colocar Lula, o patrimônio carismático maior do PT, em excelentes condições para fazer frente às próximas eleições presidenciais, caso não seja antes alcançado pela caçada judicial que já se espera que a direita lançará contra ele. Não obstante, a novidade de tudo isso é que, por conta do seu crônico esgotamento político, o PT se mostre incapaz de capitalizar a indignação gerada no âmbito dessa guerra discursiva, exatamente no patamar mais universal em que agora está posta ― tal como outrora, na década de 80, pôde fazê-lo ―; uma indignação que vem também lastreada como reação ao discurso de ódio propalado pela direita, a mesma que deixou escapar seus mais íntimos fantasmas: aqueles que têm como fantasia erótica dar cabo de todos os feiticeiros esquerdistas a golpes de facão.

A esperança que resta ao PT, portanto, parece ser, cada vez mais exclusivamente, Lula; o que dobraria a aposta e a expectativa em um populismo tout court. Ou então, o que se poderia vislumbrar, a partir da esquerda, seria o começo da gestação de algo para além do progressismo petista, tal como ele se instalou, e que não parece, na atual conformação de referências, de forma alguma representado por um insípido marinismo oportunista que se basta em permanecer à espreita, alheio à guerra discursiva e às contingências que ela instaura.

Por diferentes meios e diferentes modos, o progressismo latino-americano parece estar em refluxo nos espaços de governo (não necessariamente equivalentes a espaços do poder) que vem ocupando no continente, seja através de eleições, golpes parlamentares ou crises intermináveis. O que parece comum a todos os casos não é a existência ou legitimidade de projetos alternativos ― a direita, de sua parte, não tem outra alternativa que não reinstaurar a plenitude institucional e regulatória da lógica do privilegio ―, mas sim os impasses a que conduziram suas próprias insuficiências.

terça-feira, 26 de abril de 2016

O conto da franquia na internet fixa



por Daniel Caetano, em seu blog


Há um bom tempo sabemos que a qualidade do acesso à Internet oferecido no Brasil - como a da maioria dos serviços, públicos ou privados - é sofrível quando comparada à de outros países do mundo [1]. E, também como sempre, o preço é totalmente "fora da casinha". Para agravar a situação, os "provedores de acesso à internet" vieram agora com a ideia da "franquia de dados" [2], um conceito importado da telefonia que, na cabeça dos burocratas, parece fazer todo o sentido. Mas não faz. E eu me proponho a explicar aqui, por A + B, porque não faz. Mas vamos começar do começo.


Um Breve Histórico

O acesso a Internet no Brasil sempre foi sofrível: lento e com pouca penetração. Acesso à Internet um pouco mais rápido, só nos grandes centros urbanos e a preços irreais [3].

Tendo em mente a importância da Internet para o desenvolvimento social, cultural e econômico do país - já que a rede já é uma das principais infraestruturas de oferecimento de serviços e comércio do país - tem havido incentivo pesado na expansão da rede, seja por meio de isenções tributárias na "banda larga popular" e equipamentos de acesso, seja por meio de empréstimos subsidiados para a construção de infraestrutura [4].

A fim de que tais medidas de renúncia fiscal façam sentido para a sociedade, as mesmas vieram acompanhadas de exigências com relação às empresas que vendem o "acesso à internet". Uma das principais exigências foi a melhoria entre a "velocidade contratada" e "velocidade garantida" [5]. Quem não se lembra de assinar Internet de "10 megabits por segundo" e descobrir que, no contrato, apenas 10% dessa velocidade (1 megabit por segundo) era garantido? É praticamente um gato por lebre, não é?

Pois bem. É isso que a exigência legal atacou, obrigando que esse porcentual garantido fosse sendo elevado gradativamente até que, em algum momento no futuro, você pudesse comprar gato e levar gato (ou comprar lebre e levar lebre). As empresas reclamaram, com o argumento de que é inviável, tecnicamente, vender o serviço com a garantia exigida. Será que elas têm razão?


Os limites do acesso à Internet

Observando que em outros países as empresas conseguem entregar o que vendem, percebe-se, de saída, que tem algo errado com a reclamação das empresas. Na realidade, o que ocorre é que elas querem fazer marketing de enganação e vender mais do que são capazes. Para entender isso, é preciso antes entender o que limita a conexão à Internet, isto é, porque não podemos ter Internet com velocidade infinita.

Sem entrar em detalhes muito técnicos, existe um limite físico para a transferência de dados entre dois pontos. Esse limite está relacionado à velocidade com que os elétrons transitam no fio de cobre (cabo UTP), a luz em uma fibra óptica ou as ondas eletromagnéticas no ar (wi-fi), além da própria técnica de codificação de informações (para entender, uma analogia simples: um ideograma japonês "codifica" uma "ideia" com um único símbolo, ao passo que, em português, o "código" para a mesma "ideia" usa vários símbolos, gastando muito mais papel) [6].

Dado esse limite físico, um determinado conjunto de cabos, seja de cobre ou fibra, tem um limite físico de transferência, ou seja, quantos mega ou gigabytes por segundo ele consegue transmitir. Essa infraestrutura pode ser compartilhada com vários usuários simultaneamente - mais uma vez, não vou entrar em aspectos técnicos aqui - mas, grosso modo, é como uma rodovia: existe um limite de carros que podem passar lá por hora, mas podem passar ao mesmo tempo carros de várias pessoas.

Como a infraestrutura de rede é a única limitação significativa com relação à qualidade de serviço e sua expansão tem um custo relativamente alto, é exatamente o compartilhamento da infraestrutura que permite que o preço do serviço, para os usuários comuns, possa ser menor. Para deixar mais claro como funciona o compartilhamento, nada melhor que um exemplo prático.


Compartilhando uma Conexão

Digamos, simplificadamente e a título de exemplo, que uma empresa tenha uma infraestrutura que consegue transferir 100 megabits por segundo. Dentre as diversas possibilidades de negócio, uma das formas de vender acesso seria dividir essa conexão única em 10 conexões virtuais de 10 megabits por segundo e vender cada uma delas para um cliente, totalizando 10 clientes. Nesse panorama, cada usuário teria uma conexão de 10 megabits por segundo que poderia ser usada por 24 horas por dia. Vamos chamar esses "10 megabits por segundo" de "banda".

Uma empresa resolve adotar esse modelo, mas, depois de alguns meses, ela descobre que muito raramente há mais de 1 cliente conectado simultaneamente. Isso significa que essa empresa, então, está com sua infraestrutura ociosa: na esmagadora maioria do tempo ela tem uma banda de 90 megabits por segundo "sobrando".

Inicialmente ela pensa: "bem, eu poderia vender para 100 pessoas, então, para que tivéssemos até 10 pessoas simultâneas!", mas os engenheiros avisam: "não dá... se a média de acesso for excedida e as 100 pessoas acessarem simultaneamente, não conseguiremos atender a taxa de 10 megabit por segundo para cada cliente!".

O gestor tem, então, uma ideia brilhante: "vamos vender, então, para 100 pessoas". E o engenheiro fala: "E como vamos resolver o problema?" e o gestor diz: "Vamos dizer que vendemos uma Internet de 10 megabits por segundo, mas, no contrato, iremos garantir só 10% desse valor, ou seja, 1 megabit por segundo". Cem pessoas, 1 megabit por segundo por pessoa, totaliza 100 megabits por segundo.

Como a "banda" só é consumida quando efetivamente há troca de dados - o simples fato de estar conectado não consome praticamente nada. Enquanto a troca de dados era pequena - páginas web compostas por textos e fotos em baixa resolução - a ideia funcionou e a maioria das pessoas tinha a impressão de realmente estar com um acesso de 10 megabits por segundo, mesmo quando há mais de 10 pessoas conectadas simultaneamente.

Ainda assim, considerando que os contratos são do tipo "adesão" e que, culturalmente, a grande maioria das pessoas não lê esses contratos, a prática acaba por induzir o cliente ao erro, a levar gato por lebre, configurando uma espécie de "conto do vigário". No código penal, isso se assemelha ao que é descrito no artigo 171, o famoso "estelionato", onde está claramente expressa a situação em que o agente induz ao erro mediante artifício ou ardil.

Foi exatamente por isso que uma legislação foi criada para regular esse aspecto e, ao ampliar a velocidade garantida com relação à velocidade contratada6, obrigou também as empresas a ampliar sua infraestrutura. Isso custa dinheiro, é verdade... Mas se é possível oferecer o serviço corretamente vendido a um bom preço em outros países, como aqui, mesmo com todos os incentivos, não seria possível? É claro que é, mas essa choradeira tem nome: "lucro Brasil", isto é, as empresas, no Brasil, exigem uma lucratividade muito maior que em outros lugares do mundo para se considerarem "rentáveis". Além disso, a meta, em geral, não é "lucrar o máximo possível", mas "lucrar o máximo possível com o mínimo investimento", já que essa segunda abordagem reduz significativamente os riscos do negócio.

De qualquer maneira, o fato é que, por força da lei e pressão popular, as empresas passaram a ter que se adaptar a isso. Mas elas "revidaram".


A "Modulação" de Tráfego (Traffic Shaping)

Com o passar do tempo e a evolução da sociedade moderna, o uso da rede cresceu. Tudo passou a usar a rede, que se tornou universal e onipresente. As pessoas passaram a trocar arquivos de música, fotos, assistir vídeos... tudo pela Internet. E, para garantir a banda necessária, isso obviamente exigiu - e exige - investimento por parte das empresas. E investimentos significam mais riscos e reduções, ainda que temporárias, nas margens de lucro.

Assim, na visão das empresas, algo precisava ser feito. E elas começaram a preparar novas estratégias: limitar o acesso a certos serviços, grandes consumidores de banda, como P2P, streamingde áudio e vídeo (YouTube e NetFlix, por exemplo). Essa limitação poderia se dar de duas formas: por meio de restrição de velocidade ou pela limitação completa desse acesso, o que chamaram, eufemisticamente, de "modulação de acesso" ou "modulação de tráfego" [7].

Na prática, significaria impedir o usuário de acessar os serviços, de maneira que ficasse menos custoso, para as empresas provedoras, oferecer uma conexão "mais rápida". Pense assim: se você impedir que caminhões e ônibus passem por uma estrada, ela vai ficar menos cheia. No entanto, muitos produtos deixarão de ser entregues nas cidades cujo acesso é feito por essa estrada, limitando o acesso aos produtos por parte da população e limitando o mercado dos fornecedores dos produtos.

Ocorre que, mais uma vez, a legislação - o Marco Civil da Internet [8] - impediu as empresas de adotar esse esquema, com a imposição de um "direito" que ficou conhecido como neutralidade da rede [9], isto é, todos os serviços devem estar igualmente disponíveis a todos os usuários que compartilham uma conexão, ainda que cada um deles tenha diferentes limitações de bandas contratadas. Adicionalmente, quando houver muitos usuários conectados, por esse princípio, não é permitido que "quem paga mais tenha menos restrição", ou seja, se tem gente demais usando a conexão, ela ficará igualmente ruim para todos.

A neutralidade, indiretamente, também impediu outra "estratégia" das empresas provedoras de acesso à internet: elas queriam cobrar do YouTube, NetFlix, Google, Facebook... para que você pudesse usá-los, sob a alegação que o negócio dessas empresas gera muito tráfego de dados e oneram o sistema. Essa justificativa é absolutamente sem sentido e de completa má fé por duas razões:

a) as empresas que prestam esses serviços (YouTube, NetFlix etc.) já pagam uma infraestrutura monstruosa para ter seus servidores online;
b) significaria que as empresas provedoras de acesso estariam "punindo" outras empresas por tornarem o acesso à Internet útil.

Isso é tão absurdo quanto a Rede Globo querer cobrar da Warner Bros para passar um filme dessa produtora (ao invés de pagar por ele). Ou, por exemplo, como se a Petrobrás, diante das dificuldades financeiras atuais, quisesse cobrar das montadoras de veículos porque "os carros consumem muita gasolina".

Bem, o fato é que o Marco Civil da Internet veio justamente para impedir que as empresas sacaneiem o consumidor; nesse quadro, era esperado que as empresas se resignassem a vender o serviço com a qualidade que, de fato, possam entregar... e fim da história. Mas não se resignaram. E, agora, voltaram com toda a força.


A Origem da Franquia de Internet

Há muito tempo algumas empresas - oriundas de serviços como telefonia - inserem cláusulas em seus contratos [10] indicando uma "franquia", isto é, um limite máximo de dados que pode ser transferido em um mês; se o usuário superar aquele limite, ele terá seu acesso suspenso, limitado ou, no mínimo, terá que pagar um valor adicional.

O argumento das empresas - e defendido pela ANATEL - é que se temos franquia na telefonia, podemos ter na Internet. Mas antes de a aceitarmos para a Internet, vamos ver de onde ela vem?

Embora não envolva um consumo significativo de recursos, a telefonia fixa começou com um sistema analógico, que envolvia um limite físico de conexões simultâneas [11]: ainda que falar ao telefone não "consumisse" conexões, elas ficavam bloqueadas durante a conversa e, por consequência, não era possível que todos pudessem conversar ao mesmo tempo - algo parecido com a Internet, mas não igual. E por que não é igual?

Imaginemos que um sistema de telefonia analógico antigo fosse capaz de 10 conexões. Por característica da tecnologia, essas conexões não são compartilháveis. Isso significa que se 20 pessoas estiverem conversando (10 ligações), quando a 21ª pessoa tentar pegar o telefone, o mesmo indicará, com o som característico, que todas as conexões estão ocupadas.

Diferentemente do que ocorre com a tecnologia digital da Internet, não era possível, na telefonia analógica, que mais de 10 ligações fossem feitas com as 10 conexões, nem baixando a qualidade. Simplesmente não era possível. Sendo assim, para evitar que as pessoas ficassem "penduradas" no telefone, o governo estabelecia um "limite razoável" de tempo que as pessoas deveriam usar por mês e esse total era vendido como um "pacote mensal", a um preço bastante baixo por minuto, na forma de "assinatura" (ou franquia). O que a pessoa usasse além dessa franquia, custaria muito caro.

Essa franquia garantia que as pessoas não ficassem "penduradas" no telefone pois, caso precisassem ligar, gostariam de poder fazê-lo sem ter que gastar uma grana preta. Em outras palavras, manteria o sistema ocioso a maior parte do tempo possível, para evitar que quando alguém fosse usar, ele estivesse ocupado. Além disso, essa estratégia permitia que as empresas de telefonia tivessem um fluxo contínuo de recursos (as assinaturas), mesmo que as pessoas não usassem efetivamente a linha.


A Farsa da Franquia de Internet

Se na telefonia a franquia consistia em limitar o número de minutos que o cliente poderia usar o telefone pagando um valor baixo, no caso da Internet a franquia consiste em limitar a quantidade de dados que o cliente pode transmitir ou receber pela rede; isso significa que, após assistir a uma quantidade de vídeos no YouTube ou NetFlix, ela não poderia mais assistir a vídeos ou transferir arquivos, seja porque sua conexão foi cortada ou porque a velocidade foi reduzida de maneira a dificultar a transferência de dados.

No entanto, essa medida é discutível no que tange ao acesso à Internet. Observe: diferentemente do que ocorria com o telefone, na Internet a qualidade da conexão é variável e a velocidade de conexão cai automaticamente se há muitos usuários simultâneos [12]. O caminho para manter a qualidade/velocidade boa para todos é muito simples: se a empresa não consegue atender 100 clientes, cada um deles usando 10 megabits por segundo, ela deveria vender menos megabits por segundo para cada cliente e o problema estaria resolvido, sem franquia. Como em qualquer negócio, não faz sentido vender o que não se pode entregar.

Ocorre que as empresas no Brasil já se acostumaram a vender "velocidade eventual" ao invés de "velocidade real". Isto é: eles "vendem" uma velocidade que você só consegue atingir se não tiver mais ninguém usando a Internet com você... o que, convenhamos, com as novas tecnologias, é praticamente impossível de se manter.

Como as empresas não podem modular o acesso e nem entregar muito menos velocidade do que o contratado... a estratégia foi inventar um meio artificial para que as pessoas queiram evitar usar a Internet - e observe a bizarrice: você quer vender um produto já amarrado a uma estratégia para o usuário não usar esse produto.

Curiosamente, o modelo da franquia serve como uma luva para essa necessidade. Vejamos como se dá o estelionato, nesse caso.

Uma empresa quer oferecer apenas 1 megabit por segundo, mas quer fazer propaganda que entrega 10 megabit por segundo. O que ela faz, então, já que para isso funcionar tem que manter seus usuários afastados da Internet? Simples: se o usuário ficasse conectado o tempo todo a 10 megabits por segundo, ele poderia transferir 3.160 gigabytes em um mês; se, por outro lado, ele fizesse o que a empresa quer, ou seja, usasse 1 megabit por segundo, ele iria transferir, no mês todo, cerca de 316 gigabytes. Então... o que a empresa faz? No contrato e na propaganda ela coloca, em letras garrafais: 10 megabits por segundo, mas, ao mesmo tempo, coloca uma franquia de 300 gigabytes para um mês - um valor que o usuário, em geral, não sabe avaliar se é pouco ou muito. Na prática, no entanto, isso significa que, se esse usuário de fato usar os 10 megabits por segundo, ele só vai poder usar a conexão por 3 dias!

Aí o usuário continua lendo o contrato e descobre que a empresa é muito boazinha: ela não vai cortar a internet dele quando a franquia acabar. Depois de acabar a franquia, a conexão só vai cair para 1 megabit por segundo!

Dessa maneira, eu driblo a lei que impede a empresa de vender gato por lebre e ela vende... gato por lebre!

Mas não fique feliz: é ainda pior. A maioria das empresas, para uma conexão dessas, coloca franquias ainda mais ridículas, como 8 ou 20 gigabytes... e a velocidade, após o fim da franquia, acaba sendo de uma pequena fração de megabit por segundo.


Os Falsos Dilemas

A ANATEL vem alegando que "a Internet poderia ser cobrada como água e luz, sem franquia, mas que isso ia causar uma conta enorme no fim do mês, prejudicando os clientes" [13]. Além de ignorar que água e luz possuem franquia - o pagamento mínimo - essa afirmação é uma falácia tão grande que só pode ter duas explicações: completa inépcia ou profunda má fé.

De maneira totalmente diferente da água e luz, quando se usa a rede não há consumo significativo de recursos, salvo o irrisório consumo de energia elétrica para alimentar os sistemas. Sendo assim,não há pelo quê cobrar uma fortuna, se não pelo "aluguel" da própria infraestrutura.

Assim como quando se aluga um apartamento, a pessoa procura um que esteja dentro de suas posses e o aluga. Há apartamentos melhores, maiores... e há os piores e mais apertados. Existe ainda, sempre, a possibilidade de ter um apartamento melhor compartilhado na forma de uma república. Em um mercado capitalista, feliz ou infelizmente, esses mesmos conceitos se aplicam - ou deveriam se aplicar - à Internet.

Desta forma, deve estar disponível no mercado uma ampla gama de alternativas, com preços justos com relação ao que é oferecido. A formação de um cartel que obriga o usuário a conviver com uma limitação grosseira - ou ter de pagar um preço irreal para eliminar essa limitação - é um abuso intolerável. Estamos falando de um serviço essencial ao desenvolvimento do país e de seus cidadãos, e que já não pode mais ser tratado como algo supérfluo.

Sugestões da ANATEL como "procurar usar jogos que não usem a Internet" [14], assim como sugestões similares que possam ser feitas - "compre DVDs e Blu Rays" ou "Vejam a Rede Goebbels de Televisão" - são tacanhas, obscurantistas até, e tentam não apenas atrasar o progresso, mas causar retrocesso. São sugestões absurdas, como se uma cidade como São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília não tivesse densidade de usuários de Internet suficiente para custear a infraestrutura. Mesmo com todos os subsídios governamentais. E a despeito de todos os exemplos em dezenas e dezenas de países do mundo que demonstram claramente o contrário.


As Soluções

Não dá para negar que o "uso da Internet para tudo" impõe desafios às empresas. A demanda de transferência de dados tem crescido muito e, além do tráfego legítimo, também existe o tráfego dispensável - olá você, que já baixou uns 300 anos de músicas e filmes - e certa racionalização é necessária. Essa racionalização tem, de fato, feito com que exista certa tendência, na maior parte dos países, de haver algum limite de transferência de dados - ou seja, a malfadada franquia [15]. No entanto, um advento para promover racionalização não pode restringir o uso normal. Da mesma forma que não é razoável que todo mundo resolva fazer download na velocidade máxima 24 horas por dia, também não é admissível que se estabeleça uma franquia que impeça uma pessoa de usar a Internet normalmente - ao ponto de ouvirmos sugestões escabrosas como as propostas pela ANATEL.

Nos outros países em que é possível observar a existência de franquia, via de regra ela é muito mais generosa, mesmo considerando a telefonia celular - cuja infraestrutura costuma ser bem mais cara que a Internet "fixa". E, ainda assim, não se ouve falar de "cortar a conexão", mas sim da velocidade ser limitada a um valor mais baixo, mas ainda satisfatório para a maioria das funcionalidades. De qualquer forma, o que se observa nesses países é o uso da franquia como uma forma de coibir abusos - pessoas ou empresas que deveriam contratar uma conexão dedicada, mas contrataram uma conexão compartilhada. No entanto, para atingir esse nível de qualidade, é necessário que as empresas invistam em infraestrutura.

O fato é que, infelizmente, as empresas não estão interessadas em investir. Elas agem como uma concessionária de rodovia que, tendo construído uma estrada de faixa simples, passe a cobrar um pedágio absurdo "porque tem muita gente querendo usar a rodovia", mas jamais pense em ampliar o número de faixas. É uma situação insustentável e, pelo andar da carruagem, vai exigir ainda mais intervenção estatal - o que, em geral, não é bom... a não ser quando as empresas agem com a má fé que estamos testemunhando.

A única solução significa investimento. Investimento significa custo e, principalmente, tempo. E até lá?

Até lá as empresas precisam parar de vender sonhos. Se uma empresa não pode vender 10 megabits por segundo, venda apenas o que pode entregar. Na prática, seria uma questão de adaptar o discurso ao serviço que realmente é prestado.

Hoje se vende "conexão de 15 megabits por segundo com franquia de 80 gigabytes"... mas o que se entrega é "conexão de 0,25 megabit por segundo que, quando houver poucos usuários, pode chegar a 15 megabits por segundo" ou 16. Afinal, se você fizer as contas, verá que, em um mês, consumindo continuamente 0,25 megabit por segundo, você fará um download de 80 gigabytes!

Obviamente as empresas não querem essa mudança de discurso, pois isso mostraria o quão precário é o serviço que prestam, a um preço exorbitante - para se ter uma ideia, o plano citado no parágrafo anterior não sai por menos de R$ 90,00 [16]!

Considerando os preços e condições praticados internacionalmente, a franquia só faz sentido para coibir abusos ou para oferecer planos muito mais baratos que os atuais, visando pessoas que fazem uso eventual da Internet - muitos idosos, por exemplo. Os preços cobrados hoje, no Brasil, ao serem comparados com o de outros países, são altos até mesmo para a velocidade cheia e sem nenhum tipo de franquia. Querer impor franquia, com os valores e garantias hoje existentes, só mostra uma profunda falta de visão e desconexão do empresariado com a realidade.

É exatamente por essa razão que os "provedores de acesso à Internet" se associaram às empresas de telecomunicações, como emissoras de TV e TV a Cabo - que tem um gigantesco poder sobre os políticos e estão perdendo suas audiências para serviços mais modernos e práticos com o NetFlix [17] e YouTube - para tentar impor esse modelo antiquado, lesivo ao usuário e, para piorar, que promove o atraso generalizado.

O desenvolvimento de nossa sociedade não pode ser amarrado por empresas anacrônicas como emissoras de TV aberta ou fechada. Que se adaptem à modernidade, que mudem de ramo ou que fechem suas portas. Não existe mais espaço para exigir que as pessoas aguardem acabar a "novela das oito" para assistir a um filme de quatro anos atrás; não existe mais espaço para obrigar artistas a pagarem produtoras e caríssimas distribuições físicas de CDs e DVDs; não existe mais espaço para que as pessoas sejam impedidas de fazer home office quando necessário.

A evolução é inexorável e a sociedade se recusará a retroceder à realidade do século XX.

[NOTAS]

1) Não acredite em mim... analise o ranking da velocidade de Internet do Brasil em 2014, da Veja.

2) Veja o que o G1 diz sobre as franquias de dados.

3) Não acredite em mim, veja a análise do CGI.Br em 2011 e a análise do G1 em 2015. Há uma análise comparativa do TecMundo, de 2014, também. Em termos de preço, veja análise no UOL, de 2013 ou a análise de 2011, da ViaWeb. Você pode sair por aí consultando os sites de empresas em outros países. Lembre-se, é claro, de dividir isso pela renda média do país... ou pelo menos comparar com o preço do BigMac.

4) Não acredite em mim! Conheça o Plano Nacional de Banda Larga, os incentivos fiscais para expansão da rede de fibra óptica, a Banda Larga Popular e o incentivo ao consumo de aparelhos de acesso à internet, como notebooks, tablets e celulares.

5) Veja a resolução da ANATEL que oficializa essa aproximação entre a velocidade contratada e a velocidade real.

6) Esse artigo explica um pouco mais sobre como fazer o cálculo do limite.

7) Apesar de "proibido" pelo Marco Civil da Internet, pode ser que a sua provedora pratique o traffic shaping. A TecMundo fala sobre isso e como verificar.

8) Conheça a Lei 12.965 de 2014, que ficou conhecida como Marco Civil da Internet.

9) Conheça mais sobre neutralidade da rede.

10) Não acredite em mim! Veja matéria de 2009, da TecMundo, já falando sobre franquia de dados.

11) Se tiver curiosidade, veja como funciona a rede de telefonia comutada.

12) Esse texto fala de "gato de internet", mas no quadro fala sobre a redução pelo compartilhamento... isso ocorre também com o cabo do seu provedor de internet.

13) Veja só a comparação esdrúxula do presidente da ANATEL.

14) Olhe a sugestão divertida do presidente da ANATEL.

15) Segundo a TecMundo, franquia na Internet fixa é, realmente, uma tendência mundial.

16) Olhe, como exemplo, a tabela do Vírtua, da NET.

17) Não acredite em mim, veja a matéria do site Adoro Cinema!

sábado, 23 de abril de 2016

A boa notícia é a juventude... Orgulho!...



 
por Artur Scavone, no Viomundo

 
O sonho de uma sociedade livre e solidária era muito forte entre nós. Che Guevara era nosso ídolo. Cuba era a referência de uma sociedade livre em que todos tinham saúde, educação, não conheciam a fome e tinham amor à pátria.

O império norte-americano dominava os territórios da América Latina, controlava nossos governos e treinava os torturadores locais. E sugava nossas riquezas em conluio com a burguesia local.

Nas universidades, fábricas, teatros, sindicatos e igrejas, o exército vigiava, prendia, torturava e matava. As grandes empresas – como a Folha e Ultragas – articularam-se com os DOI-CODI para dar-lhes estruturas que serviam para emboscar os que resistiam à ditadura. No Vietnã Ho Chi Min comandava a resistência à invasão imperialista. E nós éramos solidários. Criar um, dois, três, mil Vietnãs era a palavra de ordem do Che. Resistimos à ditadura assim como os jovens resistiram na Argentina, Chile, Uruguai e no restante da América Latina. Não aceitamos sua tentativa de legitimação. Fomos mortos e encarcerados.

No cárcere, a denúncia da existência de presos políticos teve solidariedade internacional. A resistência armada, depois a resistência dos movimentos sociais e o início das grandes greves, fizeram fraquejar a ditadura. No bojo da luta, constituiu-se uma grande frente que pactuou a esquerda e resultou no PT. Nesse meio tempo, o muro caiu. Enquanto o sonho socialista sangrava, o PT proclamava o socialismo como meta estratégica. Foi centro das atenções internacionais. Conquistamos um grande partido de massas. Elegemos Lula.

Essa vanguarda cumpriu seu papel, conquistou avanços, criou vícios e cometeu erros. Envelheceu. Não é mais capaz de apaixonar porque seus sonhos foram aos poucos sendo testados, cada um, e transformaram-se em realidades, algumas boas, outras ruins. A luta constante esvaiu sua capacidade de sonhar e cada vez que pisou com força o chão duro da realidade política, maior foi a angústia com os resultados conquistados. O sonho de uma sociedade libertária foi barrado pelo muro que caiu, pelas burocracias ossificadas e pelo poder do capital. Mas a luta contra a ditadura fez brotar frutos. No caminho marcado pelos corpos de muitos companheiros e companheiras que tombaram, nossas gerações conseguiram conquistar o direito de praticar políticas sociais inovadoras e mudar a cara do Brasil.

Inscrevemos direitos na constituição de 88. Mas não fizemos a reforma política. Não conseguimos avançar na organização popular. Não regulamos a mídia das seis grandes famílias. Nem avançamos como era necessário em outras frentes. Mais que isso, no exercício da política assumimos as práticas que combatíamos. Nossas formas de organização envelheceram. Erramos.

Mas a boa notícia é que há sangue jovem pulsando nas ruas: as novas gerações estão ocupando seus lugares históricos da resistência.

Com este ciclo fechado é preciso regar o novo que brota nas ruas e dar-lhes a confiança de que é preciso desobedecer e transgredir, duvidar e ousar pelo sonho de uma sociedade mais humana e libertária. Não é possível aceitar o retrocesso contra tudo – por pouco que tenha sido – o que conquistamos.

Não se pode aceitar um congresso corrompido ideológica e materialmente. Não é possível aceitar louvações a torturadores e à tortura. Menos ainda podemos aceitar a redução de direitos. Os fatos mais recentes mostram os custos de dormir com o inimigo: não é possível aceitar o conluio entre empresários e políticos. Não é razoável aceitar o fortalecimento dos preconceitos e do ódio contra os avanços libertários conquistados.

A força do novo está na juventude que resiste nas ruas. É preciso sugar a vontade de liberdade que ainda existe em todos nós para então construir sobre a experiência dessa velha vanguarda, fazendo a crítica de seus métodos e das suas formas de organização. É preciso inovar. É preciso empunhar com ousadia o vermelho rubro de quem acredita que um outro mundo é possível.

terça-feira, 19 de abril de 2016

O Neoliberalismo se esconde, mas caminha para o ocaso... e as Esquerdas não tem nada!...

Every morning I wake up on the wrong side of Capitalism.


Colapso financeiro, desastre ambiental e até mesmo o surgimento de Donald Trump – o neoliberalismo desempenhou o seu papel em tudo isso. Por que a esquerda não conseguiu chegar a uma alternativa?...



Por George Monbiot*, no The Guardian - tradução: Douglas Portari, publicado em lingua Tupinambá no blog do Nassif


Imagine se o povo da União Soviética nunca tivesse ouvido falar do comunismo. A ideologia que domina nossas vidas não tem, para a maioria de nós, nome algum. Mencioná-lo em uma conversa é ser recompensado com um encolher de ombros. Mesmo que seus ouvintes tenham ouvido o termo antes, será uma luta para que consigam defini-lo. Neoliberalismo: você sabe o que é?

Seu anonimato é tanto um sintoma quanto causa de seu poder. Ele desempenhou um papel importante em uma variedade notável de crises: o colapso financeiro de 2007-8, a evasão de riqueza e o deslocamento de poder para o exterior, dos quais os Panama Papers nos oferecem apenas um vislumbre, o lento colapso da saúde pública e educação, o ressurgimento da pobreza infantil, a epidemia de solidão, o colapso dos ecossistemas, a ascensão de Donald Trump. Mas nós reagimos a essas crises como se elas surgissem de forma isolada, aparentemente desavisados de que elas foram todas catalisadas ou agravadas pela mesma coerente filosofia; uma filosofia que tem – ou tinha – um nome. Que poder maior pode haver do que operar anonimamente?

O neoliberalismo se espalhou de tal forma que raramente o enxergamos como uma ideologia. Parece que aceitamos a proposição de que esta utopia, essa fé milenar, descreve uma força neutra; uma espécie de lei biológica, como a Teoria da Evolução de Darwin. Mas esta filosofia surgiu como uma tentativa consciente de remodelar a vida humana e alterar o foro de poder.

Ela enxerga a concorrência como a característica definidora das relações humanas. Ela redefine os cidadãos como consumidores, cujas escolhas democráticas são melhor exercidas por compra e venda, um processo que premia o mérito e pune a ineficiência. Ela sustenta que "o mercado" proporciona benefícios que nunca poderiam ser alcançados pelo planejamento [estatal].

Tentativas de limitar a competição são tratadas como inimigas da liberdade. Impostos e regulações devem ser minimizados, serviços públicos devem ser privatizados. Organizações do trabalho e negociações coletivas de sindicatos são retratadas como distorções de mercado que impedem a formação de uma hierarquia natural de vencedores e perdedores. A desigualdade é remodelada como algo virtuoso: recompensa pela utilidade e geradora de riqueza, que escorre para enriquecer a todos. Esforços para criar uma sociedade mais igualitária são tanto contraproducentes quanto moralmente corrosivos. O mercado garante que todos recebam o que merecem.

Nós internalizamos e reproduzimos suas crenças. Os ricos se convencem de que adquiriram sua riqueza através do mérito, ignorando as vantagens – como educação, herança e classe [social] – que podem ter ajudado a retê-la. Os pobres começam a se culpar por seus fracassos, mesmo quando podem fazer pouco para mudar suas circunstâncias.

Não importa o desemprego estrutural: se você não tem um trabalho é porque não tem iniciativa. Não importam os custos impossíveis de habitação: se o seu cartão de crédito está no limite, você é irresponsável e imprevidente. Não importa que seus filhos já não tenham uma quadra de esportes na escola: se eles ficarem gordos, a culpa é sua. Em um mundo governado pela competição, aqueles que ficam para trás são tidos e autodefinidos como perdedores.

Como resultados, documentados por Paul Verhaeghe em seu livro What About Me?, estão epidemias de autoagressão, distúrbios alimentares, depressão, solidão, ansiedade por desempenho e fobia social. Talvez não surpreenda que a Grã-Bretanha, em que a ideologia neoliberal tem sido mais rigorosamente aplicada, seja a capital da solidão na Europa. Somos todos neoliberais agora.

***

O termo neoliberalismo foi cunhado em uma reunião em Paris, em 1938. Entre os delegados estavam dois homens que vieram a definir a ideologia, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Ambos exilados da Áustria, enxergavam a social-democracia, exemplificada pelo New Deal de Franklin Roosevelt e o gradual desenvolvimento do estado de bem-estar na Grã-Bretanha, como manifestação de um coletivismo que ocupava o mesmo espectro do nazismo e do comunismo.

Em O Caminho da Servidão, publicado em 1944, Hayek argumentava que o planejamento governamental, esmagando o individualismo, levaria inexoravelmente ao controle totalitário. Como Burocracia, livro de Mises, O Caminho da Servidão foi amplamente lido. Ele chamou a atenção de algumas pessoas muito ricas, que viram na filosofia uma oportunidade de se libertar da regulação e de impostos. Quando, em 1947, Hayek fundou a primeira organização que iria disseminar a doutrina do neoliberalismo – Sociedade Mont Pelerin – foi apoiado financeiramente por milionários e suas fundações.

Com a ajuda destes, ele começou a criar o que Daniel Stedman Jones descreve em Mestres do Universo como "uma espécie de Internacional neoliberal": uma rede transatlântica de acadêmicos, empresários, jornalistas e ativistas. Os ricos apoiadores do movimento financiaram uma série de think tanks que refinaram e promoveram a ideologia. Entre eles estavam o American Enterprise Institute, a Heritage Foundation, o Cato Institute, o Instituto de Assuntos Econômicos, o Centro de Estudos Políticos e o Adam Smith Institute. Eles também financiaram departamentos e postos acadêmicos, especialmente nas universidades de Chicago e Virgínia.

À medida que evoluía, o neoliberalismo tornou-se mais estridente. A visão de Hayek de que os governos deveriam regular a concorrência para evitar a formação de monopólios deu lugar – entre os apóstolos americanos, como Milton Friedman – à crença de que o poder do monopólio poderia ser visto como uma recompensa pela eficiência.

Outra coisa aconteceu durante essa transição: o movimento perdeu o seu nome. Em 1951, Friedman estava feliz por se intitular como um neoliberal. Mas logo depois disso, o termo começou a desaparecer. Mais estranho ainda, mesmo com a ideologia se tornando mais nítida e o movimento mais coerente, o nome perdido não foi substituído por qualquer alternativa comum.

No início, apesar do financiamento generoso, o neoliberalismo permaneceu às margens. O consenso do pós-guerra foi quase universal: as receitas econômicas de John Maynard Keynes foram amplamente aplicadas, o pleno emprego e a minoração da pobreza eram objetivos comuns nos EUA e em grande parte da Europa Ocidental, os tetos de impostos eram elevados e os governos procuravam resultados sociais sem constrangimento, desenvolvendo novos serviços públicos e redes de segurança.

Mas na década de 1970, quando as políticas keynesianas começaram a desmoronar e crises econômicas atingiram ambos os lados do Atlântico, as ideias neoliberais começaram a penetrar o mainstream. Como observou Friedman, "quando chegou o momento em que você tinha de mudar... havia uma alternativa pronta ali para ser pega". Com a ajuda de jornalistas simpatizantes e assessores políticos, elementos do neoliberalismo, especialmente suas prescrições para a política monetária, foram adotados pela administração de Jimmy Carter, nos EUA, e pelo governo de Jim Callaghan, na Grã-Bretanha.

Depois de Margaret Thatcher e Ronald Reagan assumirem o poder, o resto do pacote logo se seguiu: massivos cortes de impostos para os ricos, o esmagamento de sindicatos, desregulamentação, privatização, a terceirização e a concorrência nos serviços públicos. Por meio do FMI, do Banco Mundial, do Tratado de Maastricht e da Organização Mundial do Comércio, as políticas neoliberais foram impostas – muitas vezes sem o consentimento democrático – em grande parte do mundo. O mais notável foi sua adoção pelos partidos que pertenceram à esquerda: o Trabalhista [na Inglaterra] e os Democratas [nos EUA], por exemplo. Como Stedman Jones observa, "é difícil pensar em outra utopia que tenha sido tão plenamente posta em prática."

***

Pode parecer estranho que uma doutrina que promete escolha e liberdade possa ter sido promovida com o slogan "não há alternativa". Mas, como Hayek observou em uma visita ao Chile de Pinochet – uma das primeiras nações em que o programa foi amplamente aplicado – "a minha preferência pessoal se inclina para uma ditadura liberal do que em direção a um governo democrático desprovido de liberalismo". A liberdade que o neoliberalismo oferece, que soa tão sedutora quando expressa em termos gerais, acaba por significar liberdade para os tubarões, não para os peixinhos.

Livre de sindicatos e de negociação coletiva significa liberdade para suprimir salários. Livre de regulamentação significa a liberdade de envenenar os rios, por trabalhadores em risco, cobrar taxas de juros iníquas e criar instrumentos financeiros exóticos. Livre de impostos significa a liberdade de fugir da distribuição de riqueza que tira as pessoas da pobreza.

Como Naomi Klein documenta em seu livro A Doutrina do Choque, os teóricos neoliberais defendem o uso de crises para impor políticas impopulares, enquanto as pessoas estão distraídas: por exemplo, em seguida ao golpe de Pinochet, na Guerra do Iraque e quando do furacão Katrina, que Friedman descreveu como "uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional" em Nova Orleans.

Onde as políticas neoliberais não podem ser impostas localmente, elas são impostas de fora, por meio de tratados comerciais nos quais estão incorporadas "soluções de disputas investidor-Estado":  foros internacionais em que as empresas podem pressionar pela remoção de proteções sociais e ambientais. Quando parlamentos votaram para restringir vendas de cigarros, proteger o abastecimento de água contra empresas de mineração, congelar contas de energia ou impedir que companhias farmacêuticas explorassem o Estado, as empresas entraram com processos, muitas vezes tendo sucesso. Democracia é reduzida a teatro.

Outro paradoxo do neoliberalismo é que a concorrência universal depende de quantificação universal e comparação. O resultado é que trabalhadores, candidatos a emprego e serviços públicos de todo tipo estão sujeitos a um regime de chicana opressiva de avaliação e monitoramento, concebido para identificar os vencedores e punir os perdedores. A doutrina que Von Mises propôs que iria nos libertar do pesadelo burocrático do planejamento central em vez disso criou um.

O neoliberalismo não foi concebido como uma oportunidade de se dar bem em cima de outros, mas rapidamente se tornou uma. O crescimento econômico tem sido marcadamente mais lento na era neoliberal (desde 1980 na Grã-Bretanha e nos EUA) do que era nas décadas anteriores; mas não para os muito ricos. A desigualdade na distribuição de renda e riqueza, após 60 anos de declínio, subiu rapidamente nesta época, devido ao esmagamento dos sindicatos, reduções de impostos, aumento dos aluguéis, privatização e desregulamentação.

A privatização ou mercantilização dos serviços públicos, como energia, água, trens, saúde, educação, estradas e prisões permitiu que empresas montassem cabines de pedágio em frente a bens essenciais e cobrassem rentabilidade econômica por sua utilização, quer pelos cidadãos ou pelo governo. Rentabilidade econômica é outro termo para rendimentos de capital. Quando você paga um preço inflacionado por um bilhete de trem, apenas uma parte da tarifa compensa os operadores pelo dinheiro gasto em combustível, salários, locomotivas e outros gastos. O resto reflete o fato de que você não tem alternativa alguma.

Aqueles que possuem e administram serviços privatizados ou semiprivatizados no Reino Unido fazem fortunas estupendas investindo pouco e cobrando muito. Na Rússia e na Índia, oligarcas adquiriram bens do Estado por meio de saldões de salvados. No México, Carlos Slim conseguiu o controle de quase todos os serviços de telefonia fixa e celular e logo se tornou o homem mais rico do mundo.

A financeirização, como Andrew Sayer observa em Why We Can't Afford the Rich, teve um impacto similar. "Como a rentabilidade econômica", argumenta ele, "os juros são... rendimentos de capital que revertem sem qualquer esforço". Como os pobres ficam cada vez mais pobres e os ricos se tornam mais ricos, estes aumentam seu controle sobre outro ativo crucial: o dinheiro. Os pagamentos de juros, predominantemente, são uma transferência de dinheiro dos pobres para os ricos. Como os preços dos imóveis e a retirada de financiamento pelo Estado sobrecarregam as pessoas com dívidas (pense na mudança de bolsas de estudo para empréstimos estudantis), os bancos e seus executivos fazem a festa.

Sayer argumenta que as últimas quatro décadas têm sido caracterizadas por uma transferência de riqueza não só dos pobres para os ricos, mas dentro das fileiras dos ricos: desde aqueles que fazem seu dinheiro por meio da produção de novos bens ou serviços para aqueles que fazem seu dinheiro controlando ativos já existentes e colhendo rentabilidade econômica, juros ou ganhos de capital. Rendimentos do trabalho foram suplantados por rendas do capital.

As políticas neoliberais estão em todos os lugares assolados por falhas de mercado. Não apenas os bancos são grandes demais para falir, mas também as corporações que agora são responsáveis pela prestação de serviços públicos. Como Tony Judt apontou em I'll Fares the Land, Hayek se esqueceu de que os serviços nacionais vitais não podem entrar em colapso, o que significa que a concorrência não se aplica. As companhias levam os lucros, o Estado fica com os riscos.

Quanto maior o fracasso, mais extremista a ideologia se torna. Os governos usam crises neoliberais tanto como desculpa como oportunidade para cortar impostos, privatizar serviços públicos ainda existentes, criar buracos na rede de segurança social, desregulamentar corporações e re-regular cidadãos. O Estado que se auto-odeia agora afunda seus dentes em todos os órgãos do setor público.

Talvez o impacto mais perigoso do neoliberalismo não seja a crise econômica que tem causado, mas a crise política. Como o poder do Estado é reduzido, a nossa capacidade de mudar o rumo de nossas vidas através de votação também se contrai. Em vez disso, a teoria neoliberal afirma, as pessoas podem exercer a sua escolha através do consumo. Mas alguns têm mais dinheiro para gastar do que outros: nesta grande democracia do consumidor ou do acionista os votos não são igualmente distribuídos. O resultado é uma perda de poder dos pobres e da classe média. Como tanto partidos da direita quanto ex-partidos de esquerda adotam políticas neoliberais semelhantes, a perda de poder se transforma em privação de direitos. Um grande número de pessoas foi descartado da política.

Chris Hedges afirma que "movimentos fascistas montam sua base não dos politicamente ativos, mas dos politicamente inativos, os 'perdedores' que sentem, muitas vezes corretamente, que não têm voz ou papel a desempenhar no campo político". Quando o debate político não fala a nós, as pessoas passam então a responder a slogans, símbolos e sensações. Para os admiradores de Trump, por exemplo, fatos e argumentos parecem irrelevantes.

Judt explicou que quando o grosso tecido de interações entre pessoas e o Estado foi reduzido a nada, apenas a autoridade e obediência, a única força restante que nos une é o poder [coercitivo] do Estado. O totalitarismo que Hayek temia é mais provável emergir quando os governos, tendo perdido a autoridade moral que surge a partir da prestação de serviços públicos, são reduzidos a "manipulação, ameaça e, finalmente, coação das pessoas para lhe obedecer."

***

Tal qual o comunismo, o neoliberalismo é o deus que fracassou. Mas a doutrina-zumbi se arrasta, e uma das razões é o seu anonimato. Ou melhor, um conjunto de anonimatos.

A doutrina invisível da mão invisível é promovida por apoiadores invisíveis. Lentamente, muito lentamente, começamos a descobrir os nomes de alguns deles. Nós sabemos hoje que o Institute of Economic Affairs, que veementemente debateu contra uma maior regulamentação da indústria do tabaco, tem sido secretamente financiada pela British American Tobacco desde 1963. Nós descobrimos que Charles e David Koch, dois dos homens mais ricos do mundo, fundaram o instituto que criou o movimento Tea Party. Nós descobrimos que Charles Koch, na criação de um de seus think tanks observou que "a fim de evitar críticas indesejáveis, a forma como a organização é controlada e dirigida não deve ser amplamente divulgada."

As palavras usadas pelo neoliberalismo muitas vezes escondem mais do que esclarecem. "O mercado" soa como um sistema natural que pode agir sobre nós igualmente, como a gravidade ou a pressão atmosférica. Mas é repleta de relações de poder. O que "o mercado quer" tende a significar o que as corporações e seus patrões querem. "Investimento", como Sayer observa, significa duas coisas completamente diferentes. Uma é o financiamento de atividades produtivas e socialmente úteis, o outro é a compra de ativos existentes para ordenhar rentabilidade econômica, juros, dividendos e ganhos de capital. Usar a mesma palavra para diferentes atividades "camufla as fontes de riqueza", levando-nos a confundir extrativismo da riqueza com criação de riqueza.

Um século atrás, os novos-ricos foram ridicularizados por aqueles que tinham herdado o seu dinheiro. Empresários procuravam aceitação social fazendo-se passar por rentistas. Hoje, a relação se inverteu: os rentistas e herdeiros denominam-se empresários. Eles afirmam ter trabalhado por seus rendimentos de capital.

Esses anonimatos e confusões se enredam com a falta de nome e de pertencimento do capitalismo moderno: o modelo de franquia que garante que os trabalhadores não saibam para quem trabalham; empresas registradas através de uma rede de regimes de sigilo offshore tão complexa que até mesmo a polícia não consegue descobrir os beneficiários; um regime fiscal que trapaceia os governos; produtos financeiros que ninguém entende.

O anonimato do neoliberalismo está fortemente guardado. Aqueles que são influenciados por Hayek, Mises e Friedman tendem a rejeitar o termo, dizendo – com alguma justiça – que é usado hoje só pejorativamente. Mas eles não nos oferecem nenhum substituto. Alguns se descrevem como liberais clássicos ou libertários, mas essas descrições são tanto enganosas quanto curiosamente humildes, como se eles sugerissem que não há nada de novo sobre O Caminho da Servidão, Burocracia ou clássico de Friedman, Capitalismo e Liberdade.

***

Por tudo isso, há algo admirável sobre o projeto neoliberal, pelo menos em seus estágios iniciais. Era uma filosofia distinta, inovadora e promovida por uma rede coerente de pensadores e ativistas com um plano claro de ação. Ela foi paciente e persistente. O Caminho da Servidão tornou-se a estrada para o poder.

A vitória do neoliberalismo também reflete o fracasso das esquerdas. Quando o laissez-faire levou à catástrofe de 1929, Keynes concebeu uma teoria econômica abrangente para substituí-lo. Quando o gerenciamento keynesiano da demanda chegou no limite nos anos 1970, havia uma alternativa pronta. Mas quando o neoliberalismo se desfez em 2008, havia... nada. É por isso que o zumbi neoliberal ainda caminha. A esquerda e o centro não produziram nenhum novo pensamento econômico nos últimos 80 anos.

Cada invocação de lorde Keynes é uma admissão de fracasso. Propor soluções keynesianas às crises do século 21 é ignorar três problemas óbvios. É difícil mobilizar as pessoas em torno de velhas idéias; as falhas expostas na década de 1970 não desapareceram; e, mais importante, elas não têm nada a dizer sobre a nossa situação mais grave: a crise ambiental. Keynesianismo funciona estimulando a demanda para promover o crescimento econômico. A demanda dos consumidores e o crescimento econômico são os motores da destruição ambiental.

O que a história de ambos, o keynesianismo e o neoliberalismo, mostra é que não são suficientes para se opor a um sistema falido. Uma alternativa coerente tem de ser proposta. Para os Trabalhistas, os Democratas e a esquerda em geral, a tarefa central deveria ser o de desenvolver um Programa Apollo [programa norte-americano que levou o homem à Lua] na economia, uma tentativa consciente de criar um novo sistema, adaptado às exigências do século 21.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

O que vai sobrar depois do domingo 17 de abril??...



por Leonardo Sakamoto, em seu blog no UOL Notícias


Independentemente do que aconteça, neste domingo (17), com a votação do impeachment de Dilma Rousseff, os dois partidos políticos que foram a maior esperança do país e em torno do qual a democracia brasileira se consolidou nos últimos 20 anos caminharam para uma Destruição Mútua Assegurada.

Segundo essa doutrina militar, conhecida por quem viveu o horror da Guerra Fria, como cada um dos lados (EUA e União Soviética) tinha armamentos nucleares suficientes para destruir o outro e que, uma vez atacado, retaliaria com força igual ou maior, a escalada resultante levaria ao fim de ambos. E talvez do mundo como o conhecíamos.

Esse medo também levou o outro lado a, sabendo disso, evitar ao máximo começar um ataque. Um equilíbrio tenso mas, ainda assim equilíbrio.

O momento em que vivemos é fruto muito mais da escalada de ataques sujos e rasteiros, analógicos e virtuais, das eleições polarizadas de 2014 (e seus desdobramentos) do que das manifestações de junho de 2013, que ajudaram ao debate político sair do armário no Brasil.

A guerra suja aberta por PSDB e PT abriu caminho para que se jogasse a criança fora com a água suja do banho, ou seja, para que instituições democráticas fossem criticadas e menosprezadas na campanha e depois dela.

Pessoas decretam a inutilidade não só do parlamento, mas também da própria atividade política – que, teoricamente, deveria ser uma das mais nobres práticas humanas. Outros solicitam que se encontre um “salvador da pátria'' que nos tire das trevas, sem o empecilho de pesos e contrapesos. Ou que Jesus volte.

A corrupção minou bastante a credibilidade de instituições. Mensalões, Trensalões, Lavas-Jato e a maioria dos escândalos, que permanecem longe dos olhos do grande público, foram relevantes. Mas a incapacidade da classe política de garantir que a população mais pobre não sofreria de forma tão violenta os efeitos da crise econômica é o motor da insatisfação da maioria dos brasileiros.

A maior parte do povão, a maioria amorfa em nome do qual tudo isso é feito, mas que raramente se beneficia do grosso do Estado, não foi às ruas nem pró, nem contra o governo. Continua onde sempre esteve: trabalhando pelo bem-estar de uma minoria e assistindo a tudo bestializado pela TV.

Nesse contexto, qualquer pessoa com posicionamento político tem sido criticada pesadamente. Ter opinião virou crime, defender um ponto de vista agora é delito, abraçar uma ideologia é passível de morte. Ou, em outras palavras, “fazer política é escroto''.

Ou, pior, caminho para o enriquecimento ilícito. Ou seja, espalha-se a percepção de que quem se engaja na política, partidária ou não (porque muitos fazem questão de resumir toda política à partidária), tem interesses financeiros. Porque muita gente não consegue entender que a vontade de participar dos desígnios da pólis não seja apenas por ganho pessoal.

O parlamento deveria ser o centro da vida política do país e não um estábulo de interesses pessoais. Mas a roda-viva da terra arrasada agora gira por conta própria.

O problema é que alguns grupos que viviam à sombra de partidos, de um lado e de outro do espectro ideológico, mas principalmente entre os conservadores, se alimentaram desse processo. Muitos não querem diálogo, querem sangue. Quanto pior, melhor.

Os partidos acharam que estavam reunindo as forças ao seu lado para a guerra. O problema é que, agora, começaram a perceber que podem sair desse caos como coadjuvantes.

O PSDB (Aécio, Alckmin e Serra) amarga índices ridículos na última pesquisa Datafolha – e com tendência descendente. O povo percebeu que o partido está envolvido na mesma corrupção que denuncia. E o PT, ah o PT… Esse desidrata em público, por seus próprios erros e delitos. Ainda depende de Lula para continuar respirando por aparelhos. Em outras palavras, seu futuro depende do fato de ele não estar inelegível em 2018.

Com tudo isso, é possível imaginar que, ao final dessa guerra nuclear política, dessa Destruição Mútua Assegurada, sobrarão muitas baratas.

Baratas, que serão referência política. Baratas, que serão eleitas.

Porque, se por um lado, são asquerosas, por outro, são resistentes. Estavam lá antes de nós e estarão muito depois de todos irmos embora.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Capitalismo e modernidade viram outra coisa - será o futuro melhor do que o presente?...








por Peppe Salvà, blog da Boitempo








“O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o consumo, a penitência o trabalho e cujo objeto de veneração é o dinheiro”, afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News, 16-08-2012.

Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, foi definido pelo Times e pelo Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.

Segundo ele, “a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governabilidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas”. Assim, “a tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben.

A tradução é de Selvino J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC [e tradutor de três das quatro obras de Agamben publicadas pela Boitempo], para o site do Instituto Humanitas Unisinos.

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O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na Itália. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?

“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. “Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.

Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.

A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?
A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado. Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato de que o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e o passado têm um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.

O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar) têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com as autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade.

Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.

A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos?

Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder. Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política. O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.

O mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano comum se põe frente ao mundo da política tem a ver especificamente com a condição italiana ou é de algum modo inevitável?
Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.

O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?
Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos. Poucos sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmeras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão.

A grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do que o presente?

Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: “a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.

sábado, 9 de abril de 2016

A volta dos que não foram - O resgate de espécimes do Brasil Profundo




Esqueça os folclóricos tipos urbanos produzidos pela recente onda do neoconservadorismo político e cultural como, por exemplo, os coxinhas, coxinhas 2.0, simples descolados etc. Esses tipos ainda são de um “Brasil Renitente”. Com o baixo astral generalizado posto em prática pela grande mídia, a pesada atmosfera psíquica nacional revela agora novos espécimes, dessa vez de um “Brasil Profundo”: retrofascistas e protofascistas, tipos-ideais mais perigosos e beligerantes: pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que confundem militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas de toda sorte. Todos, ao mesmo tempo, parecem ter sido resgatados do ostracismo e infernos pessoais graças à incansável atividade da grande mídia em produzir novos personagens que sustentem suas pautas.


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por Wilson Roberto Vieira Ferreira, no sempre ótimo Cinegnose


Depois desses tempos de neoconservadorismo político e cultural nos brindar com uma rica fauna urbana composta por coxinhas 1.0, coxinhas 2.0, novos tradicionalistas, simples descolados, “rinocerontes” etc. (sobre esses tipos urbanos clique aqui, aqui e aqui), a pesada atmosfera psíquica que baixou no País, decorrente da polarização política e da intensa atividade do contínuo midiático para gerar baixo astral, produziu o habitat perfeito para novos e exóticos espécimes.

Eles vieram do Brasil Profundo! Vamos listar alguns desses exemplares:


Espécime 1Nome: Ju Isen. Modelo anônima, famosa por tirar a roupa em uma das manifestações Anti-Dilma na Avenida Paulista em São Paulo, tentou repetir a dose como destaque no desfile da Unidos do Peruche e foi expulsa do Sambódromo. Outras modelos desconhecidas tentaram seguir o exemplo em outro protesto da mesma avenida de São Paulo, seminuas e segurando cartazes anti-PT ostentando enormes óculos de marca. Uma se excedeu ao ficar totalmente nua e foi levada presa pela Polícia Militar.

Espécime 2Nome: Junior de França. Ajuda a organizar o acampamento de manifestantes pró-impeachment em frente ao prédio da Fiesp em São Paulo. Às vezes se passa por jornalista, outras vezes por ator, mas na verdade recruta homens e mulheres para participar de feiras. É acusado de estelionato e de tentar fazer sexo com modelos, segundo matérias na TV Record e no Portal R7 – clique aqui.

Espécime 3Nome: Douglas Kirchner. Transformado em personagem nacional atuando em parceria com a revista Época no vazamento de denúncias contra Lula, o procurador do Ministério Público Federal Douglas Kirchner tem uma controversa militância religiosa e uma conturbada vida amorosa. Fiel de uma seita denunciada por explorar crianças e adolescentes, foi acusado de agredir fisicamente a esposa e mantê-la em cárcere privado no interior de uma das igrejas da seita. Ministra o seminário “Casamento Gay e Marxismo Cultural” onde ataca a igualdade de sexos e defende que o feminismo é um “ideal agnóstico das esquerdas” – sobre a história desse espécime clique aqui.

Espécime 4Nome: Janaina Paschoal. Assustando até os apoiadores do impeachment da presidenta Dilma, numa performance resultante do cruzamento de Death Metal com o desempenho da atriz Linda Blair no filme O Exorcista, a professora de Direito Janaina Paschoal fez um discurso em ato de apoio ao impeachment na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco em São Paulo. Transtornada e transfigurada fez alusões ao poder de uma “cobra” que mantém o país no “cativeiro de almas e mentes”. “Acabou a República da Cobra!”, gritava ensandecida em um discurso que lembrava um bispo evangélico fora do controle.


De onde vem essa gente?...

Como perguntou certa vez o Homem-Aranha, cansado depois de enfrentar o Monstro de Areia e o Venomn: “de onde vem toda essa gente?...”.

Pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que confundem militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas de toda sorte.

Todos de repente parecem ter sido resgatados, todos ao mesmo tempo, de seus ostracismos, infernos e limbos pessoais para serem reciclados, ressignificados pela grande mídia e se tornarem a esperança de um futuro melhor – ou uma “ponte para o futuro”, bordão que subliminarmente vem repetindo a todo momento, em alusão ao documento do PMDB divulgado como proposta para um futuro governo pós-impeachment.

Em toda a crise política, talvez a melhor contribuição dada pela grande mídia foi a de trazer à tona esses personagens do Brasil Profundo, pescados nas águas turvas de uma conturbada psicologia de massas.

Uma verdadeira contribuição no campo da Etnografia e da Antropologia Urbana: ressuscitar espécimes que estavam em estado latente, hibernos, apenas esperando a atmosfera ideal para que voltassem a respirar em plenos pulmões. Espécimes redivivos que agora podemos finalmente ter a oportunidade de estuda-los in loco.



Brasil Renitente e Brasil Profundo

Por “Brasil Profundo” não estamos nos referindo a uma referência geográfica como um “interior” ou “periferia”. Mas como o ponto mais profundo de um inconsciente coletivo ou “sombra”, no sentido dado pela psicanálise junguiana.

Muito mais profundo do que o imaginário da “Casa Grande e Senzala” de um país ainda marcado pelos signos de distinção de classes (elevador social, uniformes de empregadas domésticas etc.), marcas de uma antiga ordem escravocrata. Onde até mesmo um publicitário como Nizan Guanaes (Publicidade, símbolo de uma suposta modernidade brasileira) é capaz de revelar esses velhos estereótipos em sua coluna na Folha, reclamando sobre o fim das empregadas domésticas: “Preciso de uma Dona Flor, mas que não precisa ter o corpo da Sônia Braga – precisa é cozinhar”, explicou. – Folha, 16/11/2011.

Esse não é ainda o Brasil Profundo, é o Brasil Renitente.


Ego embrutecido

“Quem é duro consigo mesmo, também é com os demais”, dizia o sociólogo Theodor Adorno na sua célebre fórmula do psiquismo do nazi-fascismo. Certamente esta fórmula poderia ser aplicada nesse estudo dos espécimes do Brasil Profundo.

Em comum, todos eles vieram do esquecimento e obscurantismo. São pessoas apegadas aos valores da meritocracia e competição, o que mais torna essa condição de anonimato em profunda frustração de um ideal de ego também atormentado por um profundo ressentimento.

Ju Isen busca a oportunidade que lhe proporcione, pelo menos, a condição de sub-celebridade; Kirchner, o típico concurseiro de editais públicos, espécime que massacra o próprio psiquismo em busca da aprovação – após a vitória, com o ego tão embrutecido e encouraçado, torna-se frio, indiferente em diversos graus, como, por exemplo, no conservadorismo político e de costumes.

Janaina Paschoal, com seu ego igualmente embrutecido em um meio tão competitivo e masculinizado como o campo do Direito; e Júnior de França, oportunista de ocasião no mundo das sub-celebridades que vivem a fama como farsa.

Ressuscitados do seu estado de torpor pela eletricidade das mídias, descobriram que tinham nas mãos uma hiper-tecnologia: redes sociais e dispositivos móveis para poderem amplificar em tempo real seu ódio e ressentimento.


Retrofascismo

Como alertava o sociólogo canadense Arthur Kroker no final do século passado, o futuro seria do “retrofascismo”: uma situação ambivalente de hiper-tecnologia e primitivismo. Kroker dizia que “o fascismo é a revoltados derrotados”. A vida dirigida pelo ódio de si mesmo (o ressentimento pelo ostracismo e obscurantismo) vingando-se através da destruição do outro - leia KROKER, Arthur. Data Trash, New York: Saint Martin's Press, 1994.

Como nos informa o prefixo “retro”, esses espécimes protofascistas são nostálgicos de um passado de pureza onde supostamente haveria lei e ordem. Nos nazifascistas do trágico passado, a pureza da raça em um Idade do Ouro; nos retrofascistas, a ordem militar que nos mantinha seguros de feministas, gays e comunistas - sobre o conceito de retrofascismo clique aqui.


Brasil Profundo e Neodesenvolvimentismo

Ao contrário do Brasil Renitente, o Brasil Profundo foi parido nessa última década. A inclusão de milhões de brasileiros à sociedade através do consumo (que o economicismo e neodesenvolvimentismo faziam o PT acreditar que por si só geraria consciência política e de cidadania) na verdade produziu um perverso efeito inverso: despolitização por meio da percepção de que qualquer direito seria um oportunista substituto do mérito e do trabalho.

Estado policial e militarismo é a atmosfera ideal para esses espécimes protofascistas – a oportunidade de destruir o outro mandando à favas todas as formas de direitos e garantias sociais. Destruir todos esses preguiçosos corruptos que vivem à sombra do Estado com bolsas famílias e créditos educativos.

A ironia é que esses espécimes são perdedores na corrida meritocrática: concurseiros que se mataram em concursos públicos para conseguirem estabilidade dentro de um Estado tão odiado, pequenos escroques, oportunistas intelectuais e acadêmicos condenados à própria mediocridade, além de roqueiros esquecidos pelo mercado.

Ressuscitados por uma grande mídia ávida por novos personagens que deem sustentação às suas pautas, sentem na nova atmosfera a chance de vingar no outro a dureza com que tratam a si mesmos.

Fora de suas tocas onde se mantiveram hibernos, hoje esperam uma tradução política para, mais uma vez na História, ocuparem o Estado.