O lançamento, na semana passada, da seção em português da edição de internet do jornal espanhol El Pais, elucida e ilustra, com clareza, a visão neocolonial e rasteira que continua dominando o comportamento dos espanhóis com relação ao Brasil — apesar da condição de crise e de extrema fragilidade que caracteriza a Espanha neste momento.
Sem entrar nos detalhes do regabofe promovido pelo Grupo Prisa em São Paulo, vale a pena analisar o fato, e o que se pode ler nas entrelinhas do evento e da publicação.
Controlado em pouco mais de 30% pela família Polanco, e com o restante do capital na mão de investidores e fundos internacionais — não espanhóis — o Grupo Prisa, que edita o El Pais, tem atravessado sucessivas crises nos últimos anos.
Em 2008, o valor de suas ações despencou 80%, o lucro diminuiu em 56%, foi preciso suspender o pagamento de dividendos aos acionistas e vender ativos imobiliários, entre os quais a própria sede do jornal El Pais, no valor de 300 milhões de euros, para fazer frente a compromissos.
Isso não impede, no entanto, que o Grupo Prisa seja conhecido tanto pelos altíssimos salários que paga aos seus executivos — Juan Luis Cebrian ganha mais de 1 milhão de euros por mês — quanto pelos problemas que tem com os sindicatos locais.
Os jornalistas do grupo têm ido às ruas protestar contra as frequentes ondas de demissões que varrem as redações de suas publicações e emissoras. A última, no mês passado, atingiu a revista ON Madrid.
Com uma dívida de mais de 3 bilhões de euros, o Prisa multiplicou por 6 suas perdas até setembro deste ano. El Pais perdeu 25% de sua circulação desde 2008. A circulação do diário esportivo AS caiu 23% e a do diário econômico Cinco Dias, quase 30%, e o faturamento em publicidade — segundo informa também o jornalista Pascual Serrano, na revista asturiana Atlántica XXI — diminuiu pela metade nos últimos anos.
Na mesma matéria, Serrano relata como coube a Javier Moreno — o mesmo executivo que veio lançar a seção em português do El Pais em São Paulo — em outubro do ano passado, explicar a seus jornalistas que o Grupo Prisa estava “arruinado”, para justificar a demissão de quase um terço do pessoal.
Isso não impediu, no entanto, Moreno de adotar um tom entre paternal e triunfalista no seu pequeno discurso na capital paulista, para um grupo de seletos convidados. O viés neocolonial fica claro quando ele se refere ao El Pais como um veículo, procurado por inúmeros “intelectuais, artistas e políticos” de nossa região, para “defender seus projetos e conectar suas inquietações com o resto do mundo ibero-americano”, e expõe o caráter intervencionista — considerando-se que se trata de uma publicação estrangeira — quando diz que o jornal estará ligado às “inquietações e batalhas — da sociedade brasileira — para consolidar seus avanços econômicos e sociais, e as liberdades democráticas”.
Dá a entender que a imprensa do Brasil não é livre, ou competente, na medida em que afirma que “centenas de milhares de brasileiros se informaram na edição América de El Pais, sobre as maciças manifestações de julho passado” — como se no Brasil houvesse censura ou necessidade de recorrermos a publicações estrangeiras para saber o que ocorre por aqui. E, finalmente, dispensou a modéstia quando se referiu “às expectativas que o projeto — de lançamento do El Pais Brasil — suscitou em amplos segmentos da sociedade brasileira”.
Pelo hábito se reconhece o monge. Como se pode ver pelas primeiras matérias, o El Pais está vindo ao Brasil para defender nossas minorias; lembrar que o presidente Peña Nieto está — segundo o FMI — se comportando melhor do que o Brasil, embora o México vá crescer menos da metade do que nós neste ano; que gastamos muito com nossos estádios na Copa; que não conseguimos reduzir a criminalidade; que temos o menor crescimento entre os países emergentes, etc, etc, etc .
A verdade sobre a Espanha dos dias de hoje não está no coquetel servido aos convidados em São Paulo, pago com o lucro auferido aqui mesmo no Brasil por empresas como a Vivo — devedora em mais de 1 bilhão de dólares do BNDES — ou do Grupo Indra, também espanhol, cuja publicidade já começa a aparecer na edição “brasileira” de El Pais.
A Espanha real está na ausência sutil — como um elefante, desses que o pai gosta de abater — do príncipe Felipe, que deveria ter vindo ao Brasil na mesma ocasião, para abrir um seminário econômico e participar do lançamento de El Pais.
Pouco antes da decolagem, foi localizada uma avaria em um flap do avião que deveria transportá-lo a São Paulo. Ao procurar o avião substituto, do mesmo modelo, descobriu-se que ele também estava em solo, sem condições de voar. Mecânicos tentaram, durante mais de sete horas, consertar o problema, sem conseguir, até que o infante e sua comitiva desistissem de fazer a viagem e voltassem para casa para desfazer a bagagem.
Por causa do problema do avião, em solo e sem manutenção como o próprio país, no lugar de sua majestosíssima presença, o príncipe teve de mandar, ao Brasil, uma mensagem em vídeo pela internet.
Tudo somado, pelo que se pode ver pelo lançamento de sua seção em português, o El Pais, apesar de, aparentemente, abrir espaço para comentaristas de diferentes tendências — até artigo do Lula já saiu na edição em português — continuará, agora na língua de Machado de Assis, fazendo o que sempre fez: defendendo e protegendo a cada vez mais combalida “Marca Espanha”; atuando como um Cavalo de Tróia dos interesses neoliberais e eurocêntricos em nosso continente; e das empresas espanholas — com milhares de reclamações de consumidores como o Santander e a Telefónica (do qual o próprio Grupo Prisa é acionista)— que atuam no Brasil.
Nesse contexto, o melhor negócio que os futuros leitores podem fazer é “comprar” a Espanha pelo que vale — altamente endividada e com um crescimento de menos 1,6% este ano, segundo o FMI — e vender pelo preço que o El Pais acha que vale. Com a imagem e o valor que vai tentar nos impingir.
Por que essa fobia toda? Uma fonte a mais de informação, desirmanada dos locais, deveria ser comemorada.
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