por Stela Goldenstein, no Valor - pescasdo no IHU
Um emaranhado de problemas técnicos, institucionais, jurídicos e culturais determinam a má qualidade das águas dos rios e córregos de nossas grandes cidades. Dados oficiais indicam que nas 100 maiores cidades do país, somente 36,28% do esgoto gerado é tratado.
As dificuldades não estão apenas no campo da engenharia sanitária e comento aqui algumas delas. Nossas águas urbanas, hoje muito degradadas, demandam avanços na gestão pública, ações integradas entre as esferas de governo e entre as políticas setoriais que incidem no território. As competências e responsabilidades sobre as águas são compartilhadas entre diferentes esferas e órgãos, mas o limite administrativo dos municípios não é uma boa base para entendermos os problemas que afligem os rios urbanos. As águas atravessam fronteiras levando consigo os problemas, de tal forma que a revitalização das águas de uma bacia hidrográfica deve ser discutida e assumida pelos municípios cujos territórios determinam a realidade de cada rio urbano. Está aí uma primeira explicação para tanta dificuldade em estabelecer estratégias eficazes para estes rios: no Brasil, a gestão metropolitana é frágil, carece de boa base jurídica, institucional e política que leve os municípios a enfrentar juntos suas mazelas e potencialidades. Mesmo sabedores de que os problemas das águas não se esgotam em seus limites, têm dificuldades em estruturar sistemas intermunicipais de gestão.
Nossa Constituição é omissa quanto às regiões metropolitanas e, oferecendo ampla autonomia municipal, dificulta decisões e investimentos de interesse comum. As disputas políticas e o desequilíbrio entre as cidades de cada região metropolitana trazem grandes dificuldades para formação de consensos sucessivos.
Alguns acordos exigem arbitramento para subsídios cruzados e o financiamento diferenciado entre segmentos do território, o que não facilita. Assim é que as metrópoles perdem funcionalidade e competividade com seus passivos ambientais e má qualidade de vida.
Outro desafio é a articulação das políticas setoriais que colidem, conflitam e deixam de criar sinergias. Não há bom equacionamento para as águas, esgotos, resíduos, drenagem, habitação e paisagem, se pensados isoladamente. Mas pensados na sua intersecção, têm belas soluções. As políticas de habitação, por exemplo, interferem diretamente na qualidade das águas: parcela significativa da população ocupa territórios sem infraestrutura, com perda de mananciais, assoreamento de rios e grandes dificuldades para instalar as redes de coleta de esgoto.
Também a drenagem urbana é gerenciada sem qualquer atenção às oportunidades de melhoria da qualidade das águas. É preciso ter água em abundância nas cidades, inclusive para que exerçam funções de autodepuração, afastamento e diluição da poluição. Mas, desde sempre, nossas cidades cuidaram de afastar as águas rapidamente, preferindo canalizações subterrâneas, seja para criar espaços edificáveis, seja para esconder os dejetos que levam.
Em São Paulo, por exemplo, a poluição é lançada em rios com muito pouca água. Isso pode surpreender os que se vêm às voltas com a sensação de risco de inundações e enchentes, mas o fato é que, na região de São Paulo, convivemos apenas cerca de 20 dias por ano com situações de muita água. No resto do ano, não temos água para diluir nossa poluição. Para termos mais água e não termos inundações será preciso grandes intervenções na paisagem urbana, recriando a permeabilidade dos solos e retendo água nos lugares mais altos.
São claras as responsabilidades sobre as políticas associadas a serviços, como lixo e saneamento. Mas políticas de recuperação de rios e mananciais não tem endereçamento ou responsabilização pública e orçamentária definidos. Os rios urbanos só serão revitalizados se alcançarmos acordos sistemáticos entre as empresas de saneamento e as esferas estaduais e municipais responsáveis por outras políticas urbanas, criando programas audaciosos e abrangentes de compromissos associados.
Um bom exemplo são as águas da bacia do Rio Pinheiros, envolvendo os municípios de São Paulo, Embu e Taboão da Serra. É uma das regiões com melhor padrão de urbanização no Brasil e, no entanto, as águas do Pinheiros e dos seus afluentes são muito poluídas. Nos córregos escondidos sob o asfalto há pequenos trechos já menos poluídos, prova do muito que é possível fazer.
Os dados da Cetesb indicam que a origem desta poluição é fundamentalmente o esgoto lançado sem tratamento. Mas não é desprezível a poluição oriunda da má varrição de rua, lixo não recolhido, entulho, poluição do ar que se deposita, vazamentos ocasionais e o que mais seja.
Por que, com tantos investimentos já realizados, ainda lançamos esgoto nas águas? Parte da resposta provavelmente será encontrada na década de 70, quando se optou pela implantação de grandes estações de tratamento de esgoto, afastadas da cidade. Concluídos estes investimentos de porte, nenhum esgoto era tratado e outros investimentos de fôlego ainda eram necessários para levar o esgoto até lá... É muito frágil a conexão entre as empresas ou autarquias de saneamento e as questões ambientais, do território e mesmo da gestão das águas. Historicamente, as nossas empresas de saneamento não têm compromissos, não assumem metas de qualidade das águas dos rios e sua equação financeira não inclui as duas pontas da cadeia produtiva da água nas cidades: a proteção dos mananciais e o tratamento do esgoto.
Esta realidade está consolidada a ponto de, curiosamente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ter considerado, ao analisar ação que solicitava reembolso pelo pagamento efetuado a serviços não prestados, que é legal cobrança de tarifa de tratamento do esgoto coletado, mesmo que não haja tratamento do esgoto e sim o seu despejo em um corpo d'água.
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