Um texto escrito pelo antropólogo judeu Marcelo Gruman se tornou viral
na internet. Nele, Gruman fala de suas relações com o judaísmo e de como
a sacralização do genocídio judaico estaria abrindo espaço para que
Israel aniquile o povo palestino. No texto, ele clama aos judeus para
que não aceitem mais a matança em seu nome. Leia abaixo:
Não em meu nome
Marcelo Gruman no Brasil 247
Na minha adolescência, tive a oportunidade de visitar Israel por duas
vezes, ambas na primeira metade da década de 1990. Era estudante de uma
escola judaica da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. As viagens foram
organizadas por instituições sionistas, e tinham por intuito apresentar
à juventude diaspórica a realidade daquele Estado formado após o
holocausto judaico da Segunda Guerra Mundial, e para o qual todo e
qualquer judeu tem o direito de “retornar” caso assim o deseje. Voltar à
terra ancestral. Para as organizações sionistas, ainda que não disposto
a deixar a diáspora, todo e qualquer judeu ao redor do mundo deve
conhecer a “terra prometida”, prestar-lhe solidariedade material ou
simbólica, assim como todo muçulmano deve fazer, pelo menos uma vez na
vida, a peregrinação a Meca. Para muitos jovens judeus, a visita a
Israel é um rito de passagem, assim como para outros o destino é a
Disneylândia.
A equivalência de Israel e Disneylândia tem um motivo. A grande maioria
dos jovens não religiosos e sem interesse por questões políticas
realizam a viagem apenas para se divertir. O roteiro é basicamente o
mesmo: visita ao Muro das Lamentações, com direito a fotos em posição
hipócrita de reza (já viram ateu rezando?), ao Museu da Diáspora, ao
Museu do Holocausto, às Colinas do Golan, ao Deserto do Neguev e a
experiência de tomar um chá com os beduínos, ir ao Mar Morto e boiar na
água sem fazer esforço por conta da altíssima concentração de sal, a
“vivência” de alguns dias num dos kibutzim ainda existentes em Israel e
uma semana num acampamento militar, onde se tem a oportunidade de atirar
com uma arma de verdade. Além, é claro, da interação com jovens de
outros países hospedados no mesmo local. Para variar, brasileiros e
argentinos, esquecendo sua identidade étnica comum, atualizavam a
rivalidade futebolística e travavam uma guerra particular pelas meninas.
Neste quesito, os argentinos davam de goleada, e os brasileiros ficavam
a ver navios.
Minha memória afetiva das duas viagens não é das mais significativas.
Aparte ter conhecido parentes por parte de mãe, a “terra prometida” me
frustrou quando o assunto é a construção de minha identidade judaica.
Achei os israelenses meio grosseiros (dizem que o “sabra”, o israelense
“da gema”, é duro por natureza), a comida é medíocre (o melhor falafel
que comi até hoje foi em Paris...), é tudo muito árido, a sociedade é
militarizada, o serviço militar é compulsório, não existe “excesso de
contingente”. A memória construída apenas sobre o sofrimento começava a
me incomodar.
Nossos guias, jovens talvez dez anos mais velhos do que nós, andavam
armados, o motorista do ônibus andava armado. Um dos nossos passeios foi
em Hebron, cidade da Cisjordânia, em que a estrada era rodeada por
telas para contenção das pedras atiradas pelos palestinos. Em momento
algum os guias se referiram àquele território como “ocupado”, e hoje me
envergonho de ter feito parte, ainda que por poucas horas, deste “finca
pé” em território ilegalmente ocupado. Para piorar, na segunda viagem
quebrei a perna jogando basquete e tive de engessá-la, o que, por outro
lado, me liberou da experiência desagradável de ter de apertar o gatilho
de uma arma, exatamente naquela semana íamos acampar com o exército
israelense.
Sei lá, não me senti tocado por esta realidade, minha fantasia era
outra. Não encontrei minhas raízes no solo desértico do Negev, tampouco
na neve das colinas do Golan. Apesar disso, trouxe na bagagem uma
bandeira de Israel, que coloquei no meu quarto. Muitas vezes meu pai,
judeu ateu, não sionista, me perguntou o porquê daquela bandeira estar
ali, e eu não sabia responder. Hoje eu sei por que ela NÃO DEVERIA estar
ali, porque minha identidade judaica passa pela Europa, pelos vilarejos
judaicos descritos nos contos de Scholem Aleichem, pelo humor judaico
característico daquela parte do mundo, pela comida judaica daquela parte
do mundo, pela música klezmer que os judeus criaram naquela parte do
mundo, pelas estórias que meus avós judeus da Polônia contavam ao redor
da mesa da sala nos incontáveis lanches nas tardes de domingo.
Sou um judeu da diáspora, com muito orgulho. Na verdade, questiono mesmo
este conceito de “diáspora”. Como bem coloca o antropólogo
norte-americano James Clifford, as culturas diaspóricas não necessitam
de uma representação exclusiva e permanente de um “lar original”.
Privilegia-se a multilocalidade dos laços sociais. Diz ele:
As conexões transnacionais que ligam as diásporas não precisam estar
articuladas primariamente através de um lar ancestral real ou simbólico
(...). Descentradas, as conexões laterais [transnacionais] podem ser tão
importantes quanto aquelas formadas ao redor de uma teleologia da
origem/retorno. E a história compartilhada de um deslocamento contínuo,
do sofrimento, adaptação e resistência pode ser tão importante quanto a
projeção de uma origem específica.
Há muita confusão quando se trata de definir o que é judaísmo, ou
melhor, o que é a identidade judaica. A partir da criação do Estado de
Israel, a identidade judaica em qualquer parte do mundo passou a
associar-se, geográfica e simbolicamente, àquele território. A
diversidade cultural interna ao judaísmo foi reduzida a um espaço físico
que é possível percorrer em algumas horas. A submissão a um lugar
físico é a subestimação da capacidade humana de produzir cultura; o
mesmo ocorre, analogamente, aos que defendem a relação inexorável de
negros fora do continente africano com este continente, como se a
cultura passasse literalmente pelo sangue. O que, diga-se de passagem,
só serve aos racialistas e, por tabela, racistas de plantão. Prefiro a
lateralidade de que nos fala Clifford.
Ser judeu não é o mesmo que ser israelense, e nem todo israelense é
judeu, a despeito da cidadania de segunda classe exercida por
árabes-israelenses ou por judeus de pele negra discriminados por seus
pares originários da Europa Central, de pele e olhos claros. Daí que o
exercício da identidade judaica não implica, necessariamente, o
exercício de defesa de toda e qualquer posição do Estado de Israel, seja
em que campo for.
Muito desta falsa equivalência é culpa dos próprios judeus da
“diáspora”, que se alinham imediatamente aos ditames das políticas
interna e externa israelense, acríticos, crentes de que tudo que parta
do Knesset (o parlamento israelense) é “bom para os judeus”, amém.
Muitos judeus diaspóricos se interessam mais pelo que acontece no
Oriente Médio do que no seu cotidiano. Veja-se, por exemplo, o número
ínfimo de cartas de leitores judeus em jornais de grande circulação,
como O Globo, quando o assunto tratado é a corrupção ou violência
endêmica em nosso país, em comparação às indefectíveis cartas de
leitores judeus em defesa das ações militaristas israelenses nos
territórios ocupados. Seria o complexo de gueto falando mais alto?
Não preciso de Israel para ser judeu e não acredito que a existência no
presente e no futuro de nós, judeus, dependa da existência de um Estado
judeu, argumento utilizado por muitos que defendem a defesa militar
israelense por quaisquer meios, que justificam o fim. Não aceito a
justificativa de que o holocausto judaico na Segunda Guerra Mundial é o
exemplo claro de que apenas um lar nacional única e exclusivamente
judaico seja capaz de proteger a etnia da extinção.
A dor vivida pelos judeus, na visão etnocêntrica, reproduzida nas
gerações futuras através de narrativas e monumentos, é incomensurável e
acima de qualquer dor que outro grupo étnico possa ter sofrido, e
justifica qualquer ação que sirva para protegê-los de uma nova tragédia.
Certa vez, ouvi de um sobrevivente de campo de concentração que não há
comparação entre o genocídio judaico e os genocídios praticados
atualmente nos países africanos, por exemplo, em Ruanda, onde tutsis e
hutus se digladiaram sob as vistas grossas das ex-potências coloniais.
Como este senhor ousa qualificar o sofrimento alheio? Será pelo número
mágico? Seis milhões? O genial Woody Allen coloca bem a questão, num
diálogo de Desconstruindo Harry (tradução livre):
- Você se importa com o Holocausto ou acha que ele não existiu?
- Não, só eu sei que perdemos seis milhões, mas o mais apavorante é saber que recordes são feitos para serem quebrados.
O holocausto judaico não é inexplicável, e não é explicável pela maldade
latente dos alemães. Sem dúvida, o componente antissemita estava
presente, mas, conforme demonstrado por diversos pensadores
contemporâneos, dentre os quais insuspeitos judeus (seriam judeus
antissemitas Hannah Arendt, Raul Hilberg e Zygmunt Bauman?), uma série
de características do massacre está relacionada à Modernidade, à
burocratização do Estado e à “industrialização da morte”, sofrida também
por dirigentes políticos, doentes mentais, ciganos, eslavos,
“subversivos” de um modo geral. Práticas sociais genocidas, conforme
descritas pelo sociólogo argentino Daniel Feierstein (outro judeu
antissemita?), estão presentes tanto na Segunda Guerra Mundial quanto
durante o Processo de Reorganização Nacional imposto pela ditadura
argentina a partir de 1976. Genocídio é genocídio, e ponto final.
A sacralização do genocídio judaico permite ações que vemos atualmente
na televisão, o esmagamento da população palestina em Gaza, transformada
em campo de concentração, isolada do resto do mundo. Destruição da
infraestrutura, de milhares de casas, a morte de centenas de civis,
famílias destroçadas, crianças torturadas em interrogatórios ilegais
conforme descrito por advogados israelenses. Não, não são a exceção, não
são o efeito colateral de uma guerra suja. São vítimas, sim, de
práticas sociais genocidas, que visam, no final do processo, ao
aniquilamento físico do grupo.
Recuso-me a acumpliciar-me com esta agressão. O exército israelense não
me representa, o governo ultranacionalista não me representa. Os
assentados ilegalmente são meus inimigos.
Eu, judeu brasileiro, digo: ACABEM COM A OCUPAÇÃO!!!
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