por Cida de Oliveira, na Rede Brasil Atual
A fachada imponente do edifício Vital Brazil tem significado duplo para o Instituto Butantan, vinculado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Inaugurado em abril de 1914 para abrigar laboratórios para pesquisar soros, principalmente contra a peste bubônica, o centro de pesquisa deu origem a uma instituição que se tornaria uma das maiores referências em saúde, ciência e inovação no país. Cem anos depois, o avançado processo de sucateamento é evidenciado por rachaduras, infiltrações e mofo que tomaram conta das paredes e de partes do teto que parecem prestes a desabar, pelas imensas portas de madeira que apodrecem e por visíveis gambiarras na parte elétrica – como a de um aquecedor, segundo a perícia, que teria causado o incêndio no laboratório de répteis, em maio de 2010.
O descaso que destruiu o acervo e indignou a opinião pública resultou no indiciamento, pela Justiça, do então diretor-geral Otavio Azevedo Mercadante, ex-chefe de Gabinete de José Serra (PSDB) no Ministério da Saúde, além do diretor administrativo, Ricardo Braga de Souza, o diretor de um dos laboratórios, Otávio Augusto Vuolo Marques, da pesquisadora Selma Maria de Almeida Santos e do engenheiro Carlos Ely Almeida Correia.
Em condições precárias, o prédio abriga hoje a biblioteca, fechada ao público há anos e com parte do acervo no porão, além de salas onde pesquisadores se espremem para continuar trabalhando.
Na rua de trás, outras construções antigas, que deram lugar à produção de vacinas, como a BCG, contra a tuberculose, também estão abandonadas, carecendo de restauro urgente. A poucos metros dali, outro monumento ao descaso com o patrimônio público: numa área onde uma creche para filhos de funcionários e a sede da associação de servidores foram demolidas, um prédio moderno, de dois pavimentos, teve a obra embargada recentemente. Uma placa na entrada informa que os recursos vieram da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação – o logotipo do governo federal está apagado. O espaço seria suficiente para abrigar diversos laboratórios e tantas outras salas para finalidades afins.
Nas imediações do Hospital Vital Brazil, construído na década de 1940 e que até hoje atende pessoas picadas por cobras, aranhas, escorpiões e outros animais peçonhentos, cientistas trabalham em laboratórios apertados, com paredes mofadas, mobília e equipamentos carentes de manutenção. Pudera. As oficinas onde eram fabricados e reformados estão desativadas. Há ainda o desmonte do núcleo residencial de servidores, instituído há mais de 40 anos por decreto do governo estadual. Muitos dos antigos moradores não conseguiram resistir às pressões e deixaram as casas, que aos poucos vão sendo adaptadas em instalações administrativas e até mesmo laboratórios. Outros resistem.
Obras frenéticas
Nem tudo, porém, é sucateamento. Bem perto do hospital e do macacário, onde são criados os macacos rhesus para pesquisas com vacinas contra o vírus da aids, estão prédios novos, cujas placas indicam ser fábricas de vacinas e soros, além de modernas oficinas de manutenção e contêineres transformados em escritórios. Há grande movimento de veículos e pessoas, a maioria seguranças terceirizados, engenheiros e outros trabalhadores da construção. Frenéticas, as obras avançam sem limites, chegando a cortar árvores como o pau-brasil, o que é proibido por lei. A intervenção criminosa em área de preservação permanente está sendo investigada pela promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público Estadual.
Quem passa por ali tem a impressão de ser um complexo biotecnológico produzindo a todo vapor, mas não é preciso entrar para constatar exatamente o contrário: praticamente nada produzem atualmente. “Há dois anos, não se faz vacina contra hepatite. A única coisa que tem lá é o concentrado em pó, no congelador, que logo perde a validade. A água estava contaminada e a Anvisa não deu certificado de boas práticas. Teve de parar”, conta uma trabalhadora do setor. Como outros servidores, ela pede para não ser identificada, já que o assédio e as ameaças são frequentes.
Há paralisação também na produção do imunizante contra difteria e tétano. O Butantan está colocando a marca em rótulo de vacina de uma empresa canadense, a Intervax, que compra de um laboratório da Bulgária, a BB-NCIPD. E existem vacinas cujo rótulo indica produção em 2013, período em que a fábrica desse imunizante estava interditada pela Anvisa.
Também está parada a produção dos soros antirrábico humano, antitetânico, antibotrópico (contra o veneno da jararaca), anticrotálico (da cascavel), antielapídico (coral) e antiloxoscélico e antiaracnídico, contra veneno de aranhas. Conforme a Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde (MS), “as instalações não estão de acordo com as normas legais vigentes das boas práticas de fabricação (BPF) exigidas pelas agências regulatórias e não puderam produzir”. Maior comprador, o ministério está recorrendo aos estoques da Organização Pan-Americana de Saúde para abastecer os postos de saúde, que, há pelo menos um ano, tem os estoques abaixo do necessário.
De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no início deste ano o Butantan obteve certificado de boas práticas de fabricação em algumas linhas. Já a produção de insumos monovalentes da vacina fragmentada e inativada contra gripe tipo A/H1N1, A/H3N2 e tipo B expiram em novembro próximo. Quanto aos registros, vacinas e soros estão dentro do período de validade. A maioria vence a partir de 2017, exceto as da gripe, da raiva e o soro contra botulismo.
O aracnólogo Rogério Bertani, do Laboratório de Ecologia e Evolução, ressalta que a autorização é dada a partir das condições constatadas em inspeções. “Mas isso não garante que os produtos estão sendo fabricados ali. Parece que o instituto usa essas brechas entre as competências dos diversos órgãos”, diz. Segundo ele, a Anvisa fiscaliza as condições do local, o MS paga e recebe as vacinas e soros, mas não sabe de onde vieram, se de indústria nacional ou de fora.
O médico aposentado do Hospital Vital Brazil, João Luiz Costa Cardoso, autor de diversas obras sobre animais peçonhentos, explica que o problema na produção de vacinas vai ganhar a devida importância quando afetar diretamente a elite. "Enquanto pessoas pobres atendidas no serviço forem prejudicadas, a coisa cai rapidamente no esquecimento."
A falta de transparência nas informações, segundo ele, pode esconder esquemas para elevar o preço no mercado. Ele menciona o caso da vacina Onco BCG, distribuída pelo SUS para o tratamento de pacientes com câncer de bexiga, que deixou de ser fabricada pelo Butantan há cinco anos, sob pretexto de modernização da fábrica. Coincidência ou não, passou a ser fabricada pela Fundação Ataulpho de Paiva, do Rio de Janeiro, que hoje fornece as vacinas BCG para o Ministério da Saúde. Segundo o médico, o custo de cada dose ao SUS, que era de R$ 3 quando produzida em São Paulo, subiu para R$ 100.
Por meio do governo federal, o Butantan assinou acordo de transferência de tecnologia com o laboratório Merck, Sharp & Dohme para a produção da vacina contra quatro tipos de vírus da família HPV. Com isso, segundo o MS, o faturamento do instituto será quase que triplicado em cinco anos, passando de R$ 348 milhões em 2013 para R$ 1,1 bilhão em 2018 – valor correspondente a 36 milhões de doses da vacina.
Bertani, porém, é cético quanto ao preparo do Butantan para a parceria. Isso porque, segundo ele, há histórias mal contadas, como problemas na transferência de tecnologia para vacina Influenza, com o laboratório francês Sanofi, que levou mais de dez anos para se concretizar parcialmente, a ponto de as vacinas virem da França apesar dos recursos federais para a fábrica da vacina da gripe H1N1, que foram mal empregados e estão sendo investigados pela Justiça. “A impressão que tenho é que são criados aqui problemas com a produção para atrasar a vacina nacional”, opina.
Reconstruir as fábricas
Ex-presidente da fundação e ex-diretor do instituto, o médico Isaías Raw diz que o Butantan saiu de uma crise em 1984 e que, em 2009, entrou em outra, apesar do padrão internacional. “Sair delas não é fácil. Além de faltarem recursos, tem a concorrência dos grandes laboratórios, a quem não interessa que um laboratório público, que desenvolveu tecnologias e produz muita pesquisa, continue operando e vendendo mais barato”, comenta Raw, que não acredita na lisura dos contratos de transferência de tecnologia. “É preciso inovar porque tecnologia não se compra. Tecnologia vendida é um mecanismo perverso em que não se transfere tudo e quem recebe é controlado pelo resto da vida pelo dono da tecnologia que quer o país como comprador e não como fabricante, como parceiro.”
Segundo ele, ainda não há recursos nem instalações para produzir a vacina contra HPV no Butantan. Nem vacina, nem fábrica. “Precisamos reconstruir todas as fábricas, fazer o prédio da pneumonia porque a vacina que está aí não presta, mas é necessário dinheiro, que ninguém dá.”
Controverso, Raw foi afastado da fundação em 2009, durante o escândalo dos R$ 30 milhões que vinham sendo desviados desde 2007 - para funcionários, a cifra chega a R$ 100 milhões. Na época, o Ministério da Justiça descobriu que o dinheiro ia para uma conta inativa, que não aparecia na contabilidade, para a qual eram enviados os recursos pagos pelo Ministério por lotes de vacinas e soros. A superintendente técnica da fundação, Hisako Higashi, que acumulava o cargo de diretora do instituto, foi exonerada.
Em dezembro de 2011, ele publicou artigo em que afirmava que a Sanofi, gigante multinacional de medicamentos, ofereceu ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), R$ 4,5 bilhão pela compra da divisão bioindustrial do instituto. A notícia não foi confirmada nem pela farmacêutica, nem pelo governo estadual, que chegou a afirmar que o Instituto Butantan estava à venda. Em nota, o governo ainda chamou de irresponsável a afirmação de Raw.
Para os trabalhadores, muitos dos quais integram a Frente em Defesa dos Institutos de Pesquisa e Fundações de São Paulo, que conta também com deputados estaduais, as palavras de Raw têm um fundo de verdade. E o que se assiste ali é a criatura engolindo o criador. Constituída em 1988 para apoiar o instituto do ponto de vista administrativo e financeiro, a fundação tem hoje mais de 60% dos funcionários, todos contratados pela CLT, não realiza concursos, gasta dinheiro com carros de luxo e dá todas as cartas com mão de ferro.
Segundo o Sindicato dos Químicos de São Paulo, a fundação não dialoga, não abre as contas, persegue quem se manifesta e demite quem pode demitir. Entre janeiro e julho, 59 trabalhadores foram demitidos. À frente da defesa dos institutos, trabalhadores disseram que, além da dificuldade de fixação dos servidores, está em curso um processo de desvalorização profissional e desvios de função, no qual os concursados para postos de nível médio são pressionados a atuar em áreas que exigem formação superior.
Presidente do Instituto e da Fundação Butantan, o médico Jorge Kalil não atendeu a reportagem. Em junho, em reunião com o presidente da frente, deputado Carlos Neder (PT), e alguns integrantes, ele afirmou que são discutidos diversos aspectos em termos de recursos humanos, como a dificuldade de reposição do quadro de funcionários, mérito e remuneração. E que há estudos para recuperar toda a estrutura, que padece da redução de investimentos. Disse, ainda, que, além da carreira, é debatida a figura jurídica do Butantan. Segundo relatório da reunião, a tendência é o Butantan se tornar autarquia especial e, assim, unificar a gestão.
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ex-diretor do Incor e amigo do ex-secretário de Saúde do governo Alckmin, Giovanni Cerri, Kalil assumiu o Butantan depois da morte do ex-secretário Luiz Barradas, em 2010. Na época, segundo pesquisadores, havia mais dinheiro para a pesquisa e tudo parecia entrar nos eixos.
Porém, nada melhorou. Um ex-pesquisador, hoje professor na USP, vê o sucateamento como pretexto para a venda do setor de vacinas. Exatamente como foi com outras empresas do setor financeiro, elétrico e de telefonia, privatizadas no anos 1990. Num futuro próximo, ele prevê a placa de uma multinacional do setor no portão do instituto público símbolo de pesquisa em saúde no Brasil durante quase 100 anos.
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